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A Comunidade Solidária

No documento Nathalie Beghin Tese de Doutorado (páginas 133-136)

3. Atores, ideias, interesses, motivações e instituições na construção das parcerias

3.2 A parceria como princípio da ação governamental

3.2.2 A Comunidade Solidária

A ideia da parceria Estado/sociedade no campo social é não somente retomada como reforçada no âmbito da estratégia de combate à pobreza do governo Fernando Henrique Cardoso, só que em outras bases. Tal estratégia, batizada de Comunidade Solidária, reproduziu o desenho do governo anterior ao manter a sua frente duas instâncias: uma Secretaria-Executiva, subordinada à Casa Civil da Presidência da República, encarregada de coordenar as ações governamentais de combate à fome e à pobreza, e um Conselho Consultivo, presidido por Ruth Cardoso – Primeira Dama do país –, formado por ministros de Estado e por personalidades da sociedade civil, com a missão de fortalecer a sociedade civil. A diferença desse modelo em relação ao anterior é que o Conselho mantinha distância em relação à Secretaria-Executiva, pois entendia que não devia envolver-se com o desenho, a implementação e o acompanhamento das ações de governo.

No âmbito da Secretaria-Executiva, a parceria com o setor empresarial constituía-se em uma de suas frentes de atuação: buscava-se por meio desse mecanismo, melhorar as condições de vida das populações mais pobres e ampliar o alcance dos programas governamentais de combate à fome e à pobreza considerados como prioritários (PELIANO,

ROCHA; BEGHIN, 1998). Algumas iniciativas151 nessa direção foram desenvolvidas, cabendo destacar que os esforços da Secretaria-Executiva estavam, sobretudo, voltados para articulação e coordenação de ações governamentais nos três níveis de governo. Nesse sentido, atividades de cooperação com organizações empresariais – absolutamente marginais em relação ao volume total de recursos públicos envolvidos na implementação da estratégia governamental da Comunidade Solidária – eram sempre destinadas a fortalecer ou complementar a implementação de políticas públicas152.

Foi o Conselho da Comunidade Solidária que se empenhou na promoção e na difusão da parceria Estado/sociedade. Isso porque, no entender da direção desse colegiado, observava- se no Brasil um crescente protagonismo dos cidadãos e de suas organizações, e esse ativismo civil era avaliado como estratégico para o desenvolvimento do país (CARDOSO et al., 2002). Diferentemente do CONSEA, o Conselho da Comunidade Solidária optou por não participar da formulação e da implementação de políticas governamentais de combate à pobreza; definiu estratégias próprias, voltadas para a sociedade. Nesse contexto, o Conselho orientou suas ações, durante seus oito anos de existência, em torno de três grandes eixos:

(i) a promoção do diálogo entre governo e instituições da sociedade civil, batizado de “interlocução política”. Tratava-se de um espaço de debates sobre temas considerados estratégicos, tais como reforma agrária, criança e adolescente, segurança alimentar e nutricional, alternativas de ocupação e renda e marco legal do terceiro setor. Reconhecendo conflitos e buscando convergências procurava-se chegar a uma agenda consensual de medidas de responsabilidade tanto do governo como da sociedade; (ii) o fortalecimento da sociedade civil que se articulou em torno de três componentes, a

saber: (a) a revisão da legislação que regulamenta as atividades do chamado “terceiro setor”, que resultou na Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e na criação do termo de parceria153, instrumento que legaliza e normatiza esse tipo de aliança entre organizações sem fins lucrativos e entidades governamentais; (b) o estímulo ao trabalho voluntário com a criação do Programa

151 Entre as parcerias realizadas pela Secretaria-Executiva pode-se citar como exemplos: (i) a parceria com a

Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas (ABIFARMA) que equipou, entre os anos de 1996 e 1998, com bicicletas, jalecos, cronômetros, termômetros e balanças, cerca de 60 mil Agentes Comunitários de Saúde existentes no país; e, (ii) a parceria com a Associação Nacional dos Procuradores de Autarquias e Fundações (ANPAF) que criou, em 1997, a “Procuradoria Solidária” cujo objetivo era auxiliar, gratuitamente, os estados e municípios com atividades de assessoria na área jurídica.

152 Note-se que a partir de 1999, a Secretaria-Executiva da Comunidade Solidária passou a concentrar seus

esforços numa estratégia de desenvolvimento local intitulada “Comunidade Ativa”. Para mais informações, ver Cardoso et al. (2002).

Voluntários e de uma rede de Centros de Voluntariado em todo o país, bem como a mobilização em torno da aprovação da Lei nº 9.608/98, que veio normatizar o trabalho voluntário definindo-o como atividade não remunerada e sem geração de vínculo empregatício nem obrigação de natureza trabalhista, previdenciária ou afim; e, (c) o apoio a produção e disseminação de conhecimentos e informações sobre e para o terceiro setor por meio da Rede de Informações do Terceiro Setor (RITS);

(iii) a implementação de programas, em parceria com empresas privadas e organizações sem fins lucrativos, voltados para o segmento jovem da população brasileira, quais sejam: o Alfabetização Solidária, o Capacitação Solidária, o Universidade Solidária e o Artesanato Solidário.

A direção do Conselho entendia que a Comunidade Solidária era um novo modo de ver e agir que tinha como sentido estratégico a consolidação de um novo padrão de relacionamento entre Estado e sociedade154. As críticas que muitos de seus integrantes

apresentavam ao Estado Social brasileiro, considerado ineficiente, clientelista, assistencialista e apropriado por interesses corporativistas, fizeram com que acabassem defendendo uma proposta que contribuía para a despolitização da questão social. As soluções para as mazelas sociais eram apresentadas como sendo essencialmente técnicas e não políticas. Consistiam num receituário simples: abaixar custos por meio da concorrência de projetos e da celebração de parcerias; focalizar as ações para não desperdiçar recursos; e, avaliar e divulgar as intervenções de modo a manter as ações accountables. Como o Estado não era confiável, os projetos eram incubados e testados na sociedade para depois, uma vez comprovada sua eficácia, replicá-los em grande escala pelos organismos governamentais. Para que tal estratégia funcionasse, era preciso fortalecer a sociedade civil, torná-la “madura”. Não se tratava de consolidar as organizações que lutavam pela ampliação dos direitos, mas, sim, aquelas que prestavam serviços, pois eram elas que, no entender da Comunidade Solidária, estavam mais próximas das demandas e das necessidades das populações em situação de pobreza.

Esse modelo de intervenção estava alinhado com o projeto de reforma do Estado desencadeado na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso. Tal projeto enfatizava, especialmente, a redução do déficit público por intermédio da diminuição do papel do Estado e o consequente estímulo a maior participação do mercado e das organizações da sociedade na provisão de bens e serviços sociais. Nesse período, consolidou-se a utilização do termo

terceiro setor, como cresceram substancialmente as parcerias das organizações governamentais com empresas privadas, especialmente as de grande porte, que se sintonizaram com o discurso da Comunidade Solidária. Com efeito, o deslocamento do debate público sobre a pobreza do campo político para um campo propositivo, do tipo “ganha- ganha”, possibilitou não somente evitar os questionamentos sobre o papel central do setor privado na produção e na reprodução das desigualdades, como resignificar a palavra “cidadania”, transformando-a em nova forma de integração social incapaz de ser provida somente pelo Estado. Dessa feita, gerou-se, na opinião pública, uma demanda por responsabilidade apenas secundariamente dirigida às instituições públicas. Essa demanda se materializa no apelo ao voluntariado e à responsabilidade social, e os princípios de ética, solidariedade, parceria, focalização nos mais necessitados, traduzem-se, no senso comum, na disposição altruísta de um indivíduo, de uma organização sem fins lucrativos ou de uma empresa, entendidos como sinônimos de cidadania.

No documento Nathalie Beghin Tese de Doutorado (páginas 133-136)