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A pobreza como injustiça, como resultado da má

No documento Nathalie Beghin Tese de Doutorado (páginas 76-79)

1. Construção teórico-histórica, metodológica e conceitual do objeto de pesquisa

1.4 Dois modelos-tipo de intervenção no social: o da responsabilidade e o da solidariedade

1.4.3 O modelo-tipo da solidariedade ampliada

1.4.3.1 A pobreza como injustiça, como resultado da má

Embora Fraser (1997, 2003, 2005b) não trate diretamente da questão da pobreza, mas sim da injustiça, seu entendimento sobre a fratura social, sobre os elementos que ameaçam a coesão de uma sociedade estão relacionados à presença de um duplo déficit: de distribuição (oriundo da desigualdade de renda, da exploração, da privação, da marginalização e da exclusão do mercado de trabalho) e de reconhecimento (que resulta de hierarquias institucionalizadas a partir de valores culturais que se expressam por meio de processos de subordinação de status, como, por exemplo, o patriarcalismo, a homofobia, o racismo, o etnocentrismo e o colonialismo). Assim, para a autora, os pobres ou os “injustiçados” são aqueles que são destituídos de poder econômico, de status social e de poder político.

Para enfrentar esse duplo déficit, a autora propõe um modelo de justiça social que abranja as duas dimensões simultaneamente: a da redistribuição e a do reconhecimento. Nenhuma sozinha é suficiente. Fraser (1997, 2003, 2005b) defende uma visão dialética das duas dimensões, onde os aspectos emancipatórios das duas problemáticas (má distribuição e negação do reconhecimento) devem integrar-se em um único marco referencial. Do ponto de vista teórico, a meta é construir uma concepção bidimensional de justiça que possa acomodar tanto as demandas por igualdade social como as demandas por reconhecimento das diferenças. Do ponto de vista prático, o objetivo é conceber uma orientação política

programática que possa integrar os melhores aspectos das políticas de redistribuição com os melhores aspectos das políticas de reconhecimento47.

Quando a redistribuição e o reconhecimento são tratados conjuntamente, a justiça emerge como categoria com duas dimensões (bidimensional) que responde as demandas de ambos os tipos. Para articular essas duas perspectivas num pé de igualdade, Fraser (1997, 2003, 2005b) propõe o princípio da “participação paritária”. Segundo esse princípio, a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) de uma sociedade interagir entre sim como pares. Para que a participação paritária possa acontecer, pelo menos duas condições devem ser satisfeitas. A primeira, chamada de “objetiva”, refere-se ao campo econômico: a distribuição de recursos materiais deve ser feita de tal forma que assegure independência e voz aos participantes. Essa condição permite combater formas e níveis de dependência e de desigualdade que impedem a paridade na participação; permite, pois, combater arranjos sociais que institucionalizam a privação, a exploração e as disparidades de riqueza e de renda e que impossibilitam importantes grupos da população de ter acesso a meios e oportunidades para interagir com outros grupos como semelhantes (pares).

A segunda condição, chamada pela autora de “intersubjetiva”, requer que a institucionalização de padrões de valores culturais expresse um respeito mútuo entre os participantes, bem como a igualdade de oportunidade para alcançar estima social. Essa condição elimina valores institucionalizados que, sistematicamente, discriminam determinados grupos da sociedade e desqualificam características que lhes são associadas; elimina, portanto, valores institucionalizados que negam a determinados grupos sociais o

47 Fraser detecta um amplo processo de politização da cultura, especialmente nas lutas relacionadas a identidade

e a diferença, chamadas de “lutas por reconhecimento”. Tais lutas têm explodido em tempos recentes articulando-se em torno de temas, como, religião, multiculturalismo, gênero, raça/etnia, sexualidade, direitos humanos e autonomias regionais. Essas batalhas são heterogêneas e envolvem uma ampla gama de questões que vão desde movimentos sociais emancipatórios legítimos até processos absolutamente condenáveis. Entretanto, o que essas lutas têm em comum é o forte ressurgimento das políticas de status. Fraser avalia que da forma como estão sendo empreendidas nos dias de hoje as lutas por reconhecimento têm contribuído pouco para enriquecer as lutas por uma redistribuição equitativa. Ao contrário: em um contexto de fortalecimento do neoliberalismo e de globalização, estas lutas estão servindo para substituir as demandas por igualdade. Neste caso, ao invés de ampliar o horizonte interpretativo e de transformação, que seja capaz de abarcar tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, está se trocando uma abordagem truncada, economicista, por uma outra abordagem truncada, culturalista. O resultado dessa substituição seria desastroso: os importantes avanços recentemente obtidos no eixo do reconhecimento coincidiriam com grandes retrocessos no eixo da redistribuição. Para Fraser, a supervalorização do reconhecimento pode resultar em aumento da desigualdade: a excessiva ênfase na cultura está contribuindo para reificar identidades coletivas pondo em risco as lutas pela universalização dos direitos humanos. Bauman (2005: 43) partilha dessa visão quando destaca que: “A guerra por justiça social foi, portanto, reduzida a ume excesso de batalhas por reconhecimento”. Além disso, prossegue Fraser, como muitas lutas por justiça social estão ignorando contestações referentes a relações de opressão produzidas fora das relações de classe, põe-se em risco o escopo da justiça ao excluir importantes atores sociais. Daí que a autora defende uma visão dialética das duas dimensões, de redistribuição e de reconhecimento, onde os aspectos emancipatórios das duas problemáticas (má distribuição e negação do reconhecimento) devem integrar-se em um único marco referencial.

status de parceiros plenos na interação social (contribui para eliminar hierarquias de status culturalmente definidas). As duas condições são independentes, mas o sucesso somente será alcançado se as duas forem implementadas ao mesmo tempo.

Mas isso ainda não é suficiente. Fraser (1997, 2003, 2005b) alerta para o fato de que atualmente, diante da globalização e da explosão das diferenças para além das fronteiras, o Estado-nação não é mais o único locus para enfrentar as injustiças. As arenas de enfrentamento das injustiças são múltiplas, desde o âmbito subnacional, passando pelo nacional e indo para espaços supranacionais e globais. No geral, eles são tratados em marcos equivocados, especialmente o marco nacional. Assim, por exemplo, alguns movimentos defendem enclaves étnicos no momento exato em que a mistura de populações possibilita a construção de projetos utópicos. E alguns defensores da redistribuição buscam soluções nos marcos nacionais quando as causas da má distribuição ocorrem em espaços transnacionais. Nesses casos, o resultado não é o da promoção da participação paritária, mas, sim, o da exacerbação das disparidades impondo marcos nacionais em processos que são claramente transnacionais.

Para enfrentar esse problema é preciso pôr em marcha uma concepção de justiça social descentrada do marco ou do foco nacional (i. é, instituições regionais e globais, tais como comunidades regionais e judiciários globais) e que considere múltiplos espaços de interação social. Ou seja, o exercício pleno da participação paritária deve ocorrer nos diversos espaços da vida social (desde o local até o global): na escola, no mercado de trabalho, nas relações sexuais, na vida familiar, na esfera pública, nas organizações da sociedade civil e nos meios de comunicação. Entretanto, em cada uma dessas arenas a participação ocorre de maneira diferente. Assim, o sentido da paridade e o tipo de participantes são dados pelo contexto específico da participação (por exemplo, os participantes e o formato da paridade necessários à deliberação no espaço familiar são bem diferentes do que deveria acontecer no mercado de trabalho). É por isso que uma teoria de justiça social deve considerar múltiplos espaços ou marcos de soberania. Para cada questão deve-se buscar responder as perguntas: quem são os sujeitos relevantes desse problema? Qual o alcance do problema? Quem são os atores sociais que devem participar em igualdade de condições no processo democrático de tomada de decisões?

1.4.3.2 O princípio da solidariedade ampliada e o enfrentamento da injustiça: o

No documento Nathalie Beghin Tese de Doutorado (páginas 76-79)