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1. Construção teórico-histórica, metodológica e conceitual do objeto de pesquisa

1.4 Dois modelos-tipo de intervenção no social: o da responsabilidade e o da solidariedade

1.4.1 O tipo ideal

Diante das características da modernidade líquida nos perguntamos, considerando nosso objeto de investigação, de que forma os poderes públicos, em seus diferentes âmbitos de atuação (locais, nacionais, regionais e internacionais), associam-se a empresas privadas para enfrentar a pobreza, a exclusão e a crescente sensação de desesperança que se espalham pelo mundo, ameaçando a coesão social. Mas, para poder responder a essa indagação precisamos, antes, verificar, de maneira mais geral, como as sociedades contemporâneas vêm buscando se organizar para não ser aniquiladas pela ameaça de fratura social que acompanha o fenômeno da globalização. Quais são os laços de pertencimento social que vêm sendo construídos para garantir uma vida em sociedade pacífica?

42 No seu livro A Grande Transformação, Polanyi discute as dramáticas consequências sociais resultantes da

Revolução Industrial e, para tanto, faz a seguinte pergunta: “Que ‘moinho satânico’ foi esse que triturou os homens transformando-os em massa?” (POLANYI, 1980: 51).

É sabido que o processo de institucionalização da ajuda aos pobres acompanha o modo de produção capitalista. Na modernidade, os mecanismos de combate à pobreza resultam da permanente tensão entre as dimensões da igualdade e da liberdade. Como lembra Jaccoud (2001), à afirmação da soberania do indivíduo, base do projeto político das sociedades modernas e fundamento do governo representativo, corresponde a afirmação da igualdade como valor e como fonte de liame social. A contradição entre os processos de autonomia e de igualdade dos indivíduos – reafirmados na esfera política, mas negados na esfera econômica – baliza as percepções sobre a pobreza e a miséria e as formas de enfrentá-las. Entre a economia – que produz riqueza, mas também pobreza – e a política – que emancipa o indivíduo e o transforma tanto em fonte de legitimidade do poder político quanto em sujeito de direitos inalienáveis e universais – aparece a necessidade de intervir no campo social, de definir mecanismos que possibilitem enfrentar a miséria e as desigualdades que o capitalismo produz e estabelecer os laços sociais que mantêm sua coesão. Ainda que certamente existam diversos modelos de intervenção sobre o social, propomo-nos aqui a analisar dois deles: de um lado, a resposta neoliberal à questão social, cujo modelo-tipo é o da responsabilidade e, de outro, uma resposta (neo)socialista cujo modelo-tipo é o da solidariedade ampliada.

Recorremos ao conceito weberiano de tipo ideal, de modo a tentar identificar os traços “típicos” encontrados em diferentes formas de intervenção sobre o social existentes em tempos de modernidade líquida. Trata-se de um instrumento de ordenação da realidade que serve como “guia” para a compreensão do nosso objeto de estudo, isto é, das contradições verificadas no processo de institucionalização das parcerias que organizações governamentais celebram com empresas privadas para combater a pobreza. O tipo ideal está longe de qualquer imposição normativa dos fenômenos que se propõe a estudar; ele corresponde a uma démarche que abstrai de fenômenos concretos o que existe de particular, constituindo, assim, um conceito individualizante ou, nas palavras do próprio Weber, um “conceito histórico concreto”. Para Weber (1999: 137),

Obtém-se um tipo ideal, acentuando unilateralmente um ou vários pontos de vista, encadeando uma multidão de fenômenos isolados, difusos e discretos que se encontram ora em grande número ora em pequeno número até o mínimo possível, que se ordenam segundo os anteriores pontos de vista escolhidos unilateralmente para formarem um quadro de pensamento homogêneo.

Um tipo ideal é construído pela abstração e pela combinação de um indefinido número de elementos que, embora encontrados na realidade, são raramente ou nunca descobertos nessa forma específica. Um tipo ideal não é nem uma “descrição” de um aspecto definido da realidade, nem, segundo Weber, é uma hipótese; mas ele pode ajudar tanto na descrição como

na explicação e na compreensão. Um tipo ideal não é “ideal” em sentido normativo: ele não traz a conotação de que sua realização seja desejável. Um tipo ideal é um “puro tipo” no sentido lógico e não exemplar. A criação de tipos ideais não é um fim em si mesmo e o único propósito de construí-los é para ajudar na interpretação das contradições que perpassam a celebração de parcerias entre organizações governamentais e empresas privadas no combate à pobreza no Brasil. É verdade que, diante da complexidade e da heterogeneidade dos fenômenos sociais, os esquemas classificatórios não abrangem todo o espectro de relações a que se referem e correm o risco de simplificações excessivas. Entretanto, apesar de limitar a análise, os tipos-ideais têm papel importante quando auxiliam o pesquisador a se aproximar da realidade.

De modo a buscar manter coerência metodológica e analítica, propomo-nos, neste capítulo, a estruturar os dois modelos-tipo escolhidos em torno das principais categorias criadas por Kingdon (1984) e adaptadas por Carvalho et al. (2006). Ou seja, tratamos de identificar para cada um dos modelos-tipo – o da responsabilidade e o da solidariedade apliada – qual o problema central que buscam enfrentar, quais as motivações e os interesses que fundamentam tais abordagens e quais as principais instituições representativas dessa forma de conceber a coesão social. Note-se que a categoria “contexto” não será aqui tratada, pois foi detalhadamente abordada no item anterior quando discutimos o que representa a fase líquida da modernidade para as sociedades contemporâneas. A seguir, apresentamos um quadro-síntese das principais características dos dois modelos-tipo que desenvolveremos ao longo deste item:

Quadro 1.4 – Síntese das principais características dos modelos-tipo da responsabilidade e da solidariedade ampliada

Categorias

(Kingdon, 1984 adaptado por Carvalho et al., 2006)

Modelo-tipo da responsabilidade

(Ewald, 1996; Procacci, 1993; Nogueira, 2003)

Modelo-tipo da solidariedade ampliada

(Fraser, 1997, 1998, 2001, 2002, 2003, 2005a, 2005b, 2007; Nogueira, 2003) Problema O problema central é o da pobreza visto

como fenômeno natural, o preço a ser pago pela eficiência econômica.

O problema central é o da injustiça resultante de um duplo déficit: déficit de distribuição (injustiça econômica e social) e déficit de reconhecimento (injustiça cultural).

Motivações e interesses Construir uma sociabilidade fora da esfera dos direitos, estruturada em torno do dever moral, da previdência individual e da filantropia.

Construir uma sociabilidade que possibilite, simultaneamente, (i) o enfrentamento coletivo dos riscos individuais, promovendo uma distribuição igualitária dos recursos e dos direitos; (ii) a

Sociabilidade liberal.

conquista da igualdade de status social entre os diferentes grupos da sociedade. Sociabilidade (neo)socialista.

Instituições Estado gerencial.

Sociedade civil liberista. Cidadania cívica.

Estado social radicalizado, democrático e participativo assentado no princípio da participação paritária.

Múltiplas soberanias.

Sociedade civil político-estatal. Cidadania civil.

Fonte: Elaboração própria.

No documento Nathalie Beghin Tese de Doutorado (páginas 64-67)