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As contradições da modernidade líquida e as possibilidades

No documento Nathalie Beghin Tese de Doutorado (páginas 59-64)

1. Construção teórico-histórica, metodológica e conceitual do objeto de pesquisa

1.3 Contexto histórico-conceitual no qual se inserem as parcerias

1.3.2 As contradições da modernidade líquida e as possibilidades

As ambivalências, as tensões e as contradições que caracterizam os tempos de modernidade líquida abrem possibilidades que devemos explorar, porque somos modernos. Como escreve Bauman (2000: 37), ser moderno significa ser incapaz de parar e de ficar parado. Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num estado de constante transgressão; ser moderno também significa ter uma identidade que só pode existir com um projeto não realizado. A “modernidade líquida” traz, ainda, o entendimento de uma permanente revisão, pois, como “modernidade”, se caracteriza pela superação de seus próprios fundamentos e, como “líquida” expressa um momento de crise de seus elementos constitutivos anteriores, mas, também, de possibilidades. Na fase líquida da modernidade, os processos “derretem” os “sólidos”, transformam-nos em fluidos para, depois, transformá-los em outros sólidos. Trata-se de uma autotransformação complexa e ambivalente, cujos

resultados ninguém pode prever e antecipar, um processo pelo qual a modernidade será forçada à abertura, à adoção de outra visão de mundo, à autocrítica e, talvez, até mesmo, à autorrenovação, inclusive no âmbito institucional. É nesse contexto que se estruturam as parcerias entre organizações governamentais e empresas privadas para combater a pobreza.

Assim, se por um lado, como vimos até agora, existe uma alta probabilidade de involução diante do esfacelamento e da transformação das instituições da fase sólida da modernidade, como o Estado, o Estado Social, a cidadania social, os partidos políticos e os sindicatos, de outro, verificamos brechas e fissuras nesse movimento que podem alterar seu curso. Identificamos quatro contramovimentos que, a depender de sua intensidade, podem mudar os rumos dessa fase líquida da modernidade.

O primeiro deles refere-se às dramáticas consequências resultantes da implementação da agenda global de desregulamentação, privatização e liberalização. Não somente não foram alcançados os patamares de crescimento econômico prometidos, como acabou gerando, como vimos, uma tal precarização dos laços sociais, tanto em âmbito nacional quanto global, que a coesão social está profundamente abalada. E mais: os países que estão apresentando os melhores resultados do ponto de vista econômico são justamente os que menos seguiram a “Cartilha Neoliberal”, como a China e a Índia. Os desastrosos resultados da globalização e do neoliberalismo podem ser verificados na multiplicação de crises que eclodem na primeira década do século XXI: crise ambiental e climática, crise energética, crise dos preços dos alimentos e crise financeira. Ainda que o neoliberalismo continue conservando posição de poder, seus argumentos estão progressivamente se esgotando. Uma expressão clara desse limite pode ser verificada na recente declaração do Presidente francês Nicolas Sarkozy, conhecido defensor das elites globais, em relação à crise financeira desencadeada nos Estados Unidos em 2008: “A ideologia da ditadura dos mercados e a impotência pública morreram com a crise financeira e, frente a isso, se desenha uma nova relação entre a democracia e a economia”40. Vê-se que os efeitos perversos resultantes do neoliberalismo e próprios da modernidade líquida acabam gerando um “efeito bumerangue”: mais cedo ou mais tarde, aqueles que espalharam insegurança, incerteza e instabilidade não conseguem escapar das consequências de seus atos. Aí começam a cair os valores de suas ações, a marca da empresa é ameaçada, o medo atinge as vidas e os sonhos dos ricos e, então, começa a mudar o modo de pensar. Essa mudança de pensamento ganha densidade, porque a individualização tem

40 Citação extraída do Globo On Line, de 23 de outubro de 2008: “Sarkozy cria fundo estratégico de

outra faceta, que Beck (2003) chama de experimental-social ou altruísta. Conforme destaca Nogueira (2007: 50), “Essa ‘segunda’ individualização articula-se com democratização”.

Assim, chegamos a segunda contradição que diz respeito às tensões que atravessam a individualização. Com efeito, para além da individualização neoliberal, existe outra, que é realizada e praticada no sentido de as pessoas desenvolverem uma sensibilidade para os contextos sociais, de perceberem a individualização como necessidade, tarefa e aventura para redescobrirem o social e com ele se harmonizarem com o resto do mundo. As pessoas que experimentam esse sentimento escutam os outros e percebem suas necessidades, tanto que só conseguem organizar a própria vida enredando-se com os outros (BECK, 2003). Essa individualização, altruísta ou social-experimental, associada à exclusão social de grupos inteiros da população global, levanta a questão da responsabilidade, e a opinião pública mundial passa a problematizar cada vez mais o caráter unidimensional do pensamento e da política neoliberais, em diversos espaços da vida social: nos domicílios, nas organizações da sociedade civil, nas escolas e nas universidades, nos sindicatos e nas ruas, entre outros. Assim, ainda que as instituições políticas tradicionais da modernidade sólida tenham sido esvaziadas, espraia-se um processo que Beck (2003) chama de subpolitização. Emerge uma pluralização de lugares políticos para além dos partidos tradicionais: a política se diversifica na sociedade em múltiplos espaços de participação e controle democráticos. Isso não significa, necessariamente, que já se tenha implementado uma política adequada, mas em muitas partes do planeta se pergunta: como viabilizar uma outra globalização, socialmente justa e ambientalmente sustentável?

A terceira contradição tem a ver com as externalidades da globalização. Pois é, os mesmos avanços nas tecnologias da informação e da comunicação que impulsionaram a globalização do capitalismo neoliberal, também alimentaram a criação e a expansão de um movimento de resistência, um contramovimento, ainda muito frágil, de uma outra globalização. Um conjunto de movimentos sociais, organizações e práticas se encontram, por toda parte, lutando contra injustiças, desigualdades e discriminações. Conforme ressalta Santos (2002a), a globalização neoliberal constitui-se num importante fator explicativo dos processos econômicos, sociais, culturais e políticos das sociedades nacionais contemporâneas. Contudo, apesar de hegemônica, essa globalização não é única. De acordo com o autor (SANTOS, 2002a: 13):

De par com ela e em grande medida por reação a ela está emergindo uma outra globalização, constituída pelas redes e alianças transfronteiriças entre movimentos, lutas e organizações locais ou nacionais que nos diferentes cantos do globo se mobilizam para lutar contra a exclusão social, a precarização do trabalho, o declínio das políticas públicas, a destruição do meio ambiente e da biodiversidade, o

desemprego, as violações dos direitos humanos, as pandemias, os ódios interétnicos produzidos direta ou indiretamente pela globalização neoliberal.

Há, assim, prossegue o autor, uma globalização alternativa, contra-hegemônica. Essa globalização é apenas emergente: ela nasce do próprio enfraquecimento do Estado, provocado pela globalização neoliberal. Como escreve Dupas (2003: 92), “Embora desordenada e fragmentada, surge uma nova voz das ruas”. Ainda que despontem como um movimento de resistência à nova ordem global, não se sabe ao certo qual será seu futuro. Entretanto, devido à fragilidade das instituições que fazem as leis e daquelas que fazem cumprir a lei, abre-se um flanco para as transnacionais que, em muitos casos, não têm como se proteger das ações dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil, especialmente daqueles que têm domínio e acesso aos meios de comunicação de massa.

As organizações da sociedade civil podem atingir os calcanhares de Aquiles dos conglomerados transnacionais, pois estes não possuem mecanismos de proteção contra os ataques dessas organizações. Essa dialética no espaço transnacional significa que as empresas são obrigadas a empregar as mais diversas estratégias, conforme ressalta Beck (2003). Podem tentar uma estratégia de confronto, mas isso as expõe a riscos consideráveis. Afinal, elas atuam em um vácuo de legitimação capaz de desembocar rapidamente no colapso dos seus mercados. Elas podem, ao contrário, tentar encetar alguma forma de diálogo com esses grupos da sociedade e, com isso, criar novas regulamentações. Mas, à medida que fazem isso, são obrigadas a observar determinados padrões ambientais, econômicos e sociais e a se sujeitar, cada vez mais, a uma lógica e a uma dinâmica próprias, nas quais os aparentemente todo poderosos agentes do mercado passam permanentemente pelo crivo de novos movimentos sociais legitimados que, por sua vez, têm a possibilidade de usar o espaço livre de jurisdição para lhes obrigar a importantes concessões.

Essa “outra globalização” tem encontrado eco em brechas que se abriram no sistema político global formado pelas Nações Unidas. Ainda que também fortemente golpeadas pela onda desregulamentadora e privatizante, as instituições do Sistema ONU acabaram realizando, nas décadas de 1990 e 2000, uma série de cúpulas e de conferências em diversas áreas, tais como meio ambiente, desenvolvimento social, alimentação e segurança alimentar, população, gênero, raça/etnia, juventude, criança, migração, saúde, educação e financiamento para o desenvolvimento41. Esses eventos não somente envolveram, direta ou indiretamente,

41 As principais Conferências, Cúpulas ou Assembleias da ONU nos anos de 1990 e 2000 estão listadas no

diversos atores da sociedade civil como produziram um conjunto de espaços públicos de debates, de normas e de convenções que vêm contribuindo para minimizar os efeitos da desregulamentação e da liberalização.

Por fim, mencionam-se as próprias ambivalências e ambiguidades da sociedade de consumo que constitui-se em sistema de dominação que permeia a sociedade em tempos de modernidade líquida e também representa um espaço de conflito social. Esse é o caso dos organismos de defesa do consumidor que nasceram, justamente, dos excessos da desregulamentação e da privatização. Ao mesmo tempo em que é construído e manipulado como objeto pelo sistema produtivo, o consumidor se transforma, pela interiorização dos seus direitos (i. é, processos de subpolitização), em ator ativo que estende os direitos de cidadania ao sistema produtivo. As organizações de consumidores passaram a participar da definição de temas que anteriormente pertenciam quase que exclusivamente ao âmbito do Estado ou da empresa. Sua força vem de sua centralidade como ator da modernidade líquida. Como um dos

Tema Local Ano de realização

Criança Nova York/USA 1990

Países Menos

Desenvolvidos Paris/França e Bruxelas/Bélgica 1990, 2001 Desenvolvimento

Sustentável Rio de Janeiro/Brasil, Joanesburgo/África do Sul 1992, 1997 e 2002 Comércio e

Desenvolvimento Cartagena/Colômbia, Midrand/África do Sul, Bangkok/Tailândia, São Paulo/Brasil, Accra/Ghana

1992, 1996, 2000, 2004 e 2008 Direitos Humanos Viena/Áustria 1993 População Cairo/Egito, Nova York/USA 1994, 1999 Desenvolvimento Social Copenhagen/ Dinamarca 1995

Gênero Beijng/China 1995 Assentamentos Humanos (Habitat) Istambul/Turquia 1996 Alimentação e Segurança Alimentar Roma/Itália 1996, 2002 e 2008 Educação Dakar/Senegal 2000

Declaração do Milênio Nova York/USA 2000

Hiv/Aids Nova York/USA 2001 e 2008

Racismo Durban/África do Sul 2001

Financiamento para o

Desenvolvimento Monterrey/México 2002

Terceira Idade Madri/Espanha 2002

Informação e Comunicação Geneva/Suíça, Tunis/Tunísia 2003 e 2005 Saúde A Organização Mundial de Saúde (OMS) organiza assembleias anuais

com os países bem como Conferências Globais na Prevenção à Saúde (1991, 1997, 2000 e 2005)

Trabalho A Organização Internacional do Trabalho (OIT) organiza assembleias anuais com os países e representantes dos trabalhadores e dos empregadores

Fontes: http://www.un.org/esa/devagenda/index.html, http://www.who.int/healthpromotion/conferences/en,

http://www.unctad.org/Templates/Page.asp?intItemID=3375elang=1,

principais agentes do “supercapitalismo”, o consumidor é frequentemente lesado pelas empresas privadas e, por isso, se organiza para proteger seus direitos. A constituição do consumidor como sujeito social é um longo processo histórico no qual a experiência americana, berço do supercapitalismo, figura como matriz; mas à medida que se globaliza, adquire características locais.

Com vimos ao longo desse item sobre o contexto histórico-conceitual no qual se inserem as parcerias, as transformações sociais provocadas pela globalização e pelo neoliberalismo causam uma desarticulação social de enormes proporções, esgarçando o tecido social até então vigente: é o nosso “moinho satânico”42 dos tempos de modernidade líquida. Nesse sentido, o “princípio de proteção social” de Polanyi (1980) é uma ferramenta atual para ajudar a entender os dias de hoje. As contradições e as tensões que atravessam nossas sociedades ocidentais criam as condições para se formular a hipótese de que o conceito de uma sociedade desregulada e privatizada é utópico e de que seu progresso será obstruído pela autoproteção realista da sociedade. Entretanto, as possibilidades ambíguas e ambivalentes que se abrem na modernidade líquida nos fazem vislumbrar diferentes formas de intervenção para enfrentar a questão social. É o que veremos no próximo item.

1.4 Dois modelos-tipo de intervenção no social: o da responsabilidade e o da

No documento Nathalie Beghin Tese de Doutorado (páginas 59-64)