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Os princípios da responsabilidade e da filantropia para

No documento Nathalie Beghin Tese de Doutorado (páginas 68-71)

1. Construção teórico-histórica, metodológica e conceitual do objeto de pesquisa

1.4 Dois modelos-tipo de intervenção no social: o da responsabilidade e o da solidariedade

1.4.2 O modelo-tipo da responsabilidade

1.4.2.2 Os princípios da responsabilidade e da filantropia para

Segundo Ewald (1996), a chave da sociabilidade liberal é o princípio da responsabilidade. Trata-se de uma maneira de definir a liberdade como a proibição de jogar

em outrem a culpa pela sua condição: cada um deve ser responsável por sua vida. Nessa perspectiva, o princípio da responsabilidade possibilita desenvolver uma autorregulação social baseada na contínua procura pelo progresso e pelo aperfeiçoamento, tanto individual como coletivo. Com isso, tem-se uma visão harmônica da sociedade na qual se estabelecem acordos entre as diferentes esferas de atividades e entre os diferentes modos de qualificar as condutas sociais: nesse universo, a moral se articula com o direito que, por seu turno, se articula com a economia, num todo convergente, num circulo virtuoso. Ao descarregar nos outros a culpa pela vida miserável, rompe-se a essência da ordem social, a de possibilitar a contínua melhora individual e coletiva. Graças a esse mecanismo, a intervenção liberal define seu modo de regulação social, a saber, sempre dar um jeito de que os homens encontrem em si próprios a solução para corrigir sua conduta.

O princípio de responsabilidade permite, ainda, entender a pobreza como questão de conduta do pobre. Para fazer face a eventuais incertezas que a vida em sociedade traz, é preciso adotar uma postura de previdência. Para os liberais, a previdência é uma virtude necessária para garantir a liberdade: graças a ela, o ser humano deixa de viver no dia a dia, no imediatismo e se projeta no futuro. É por meio dela que é possível libertar-se dos caprichos do destino, de ganhar autonomia e soberania. Segundo Ewald (1996), é a presença ou a ausência de previdência que define o grau das desigualdades. Riqueza e pobreza têm mesma origem: a liberdade. O pobre poderia ser rico graças à virtude que fez a riqueza do rico. Nesse sentido, prevenir-se, proteger-se é tarefa individual.

O princípio de responsabilidade não somente responsabiliza o pobre pela sua situação como desresponsabiliza o rico pelas causas da miséria. Com efeito, a liberdade de produzir, trabalhar e consumir pode resultar em problemas para determinados pessoas ou grupos de pessoas: essa é uma consequência inelutável da liberdade. Portanto, não é possível culpar um indivíduo por um mal que não quis causar. O erro somente deve ser punido pelo sistema jurídico quando se pode provar que houve intenção de causar danos, de prejudicar o outro.

Um dos desdobramentos do princípio de responsabilidade é a filantropia: é, em grande parte, graças a esse binômio que se torna possível gerenciar a miséria e evitar a desordem. A filantropia oferece ao pobre a possibilidade de encontrar soluções aos seus problemas, pois o provê de recursos para que entre no ciclo da previdência permitindo, se assim o desejar, que escape da sua condição de miserável. No entendimento dos liberais, para funcionar como princípio de socialização, a filantropia não pode ser obrigatória e isso por duas razões, escreve Ewald (1996: 42). A primeira delas porque violaria o princípio de justiça: a assistência como direito desobriga o pobre de prover-se jogando essa atribuição nas costas daqueles que são

previdentes. Em outras palavras, os responsáveis pagariam pelos erros dos irresponsáveis. Em segundo lugar, a filantropia legalizada destruiria seu princípio de socialização, pois eliminaria a relação de reconhecimento e afeto mútuos que se estabelece entre o benfeitor e seu beneficiário, fonte de liame social. É essa relação, de aliança de classe e de integração das desigualdades, que possibilita a harmonia social (PROCACCI, 1993).

Para que o princípio da responsabilidade possa ser exercido na sua plenitude, é preciso que o princípio da liberdade seja respeitado e, para isso, torna-se necessário que o poder público assegure as condições de livre e bom funcionamento do mercado. Tais condições requerem medidas de segurança e de estabilidade para as empresas privadas. Estas medidas, que devem ser sancionadas em lei, visam garantir a propriedade privada, a segurança pública e a seguridade civil dos trabalhadores. Interações, combinações e articulações permanentes desses mecanismos possibilitam o reforço mútuo dos interesses – públicos e privados, dos capitalistas e dos trabalhadores. Trata-se de torná-los solidários e indissociáveis (Ewald, 1996). Tanto para Procacci (1993) como para Ewald (1996), a assistência social na perspectiva liberal se destina aos “verdadeiros pobres”, isto é, aqueles que não estão aptos a trabalhar, como crianças, idosos, doentes e pessoas com deficiência. A assistência social liberal também se caracteriza por um processo pedagógico de conversão do pobre: trata-se de educá-lo, de introduzi-lo às leis da economia, de resgatar sua dignidade e de mostrar-lhe que seu destino lhe pertence. Esse é o papel da filantropia: sem negar a importância do interesse individual para o sistema econômico, ela elabora, pragmaticamente, uma referência ao interesse coletivo, fora da esfera política, que é o de reduzir a miséria e o perigo social que ela representa. Entre a noção econômica de interesse individual e a jurídica do direito, a filantropia desenvolve práticas que promovem a síntese entre interesse individual e interesse geral. A filantropia não interfere nos interesses econômicos e não se opõe ao Estado; ao contrário, protege o Estado de uma dívida em relação aos seus pobres. A filantropia deve contornar os riscos decorrentes do mercado autorregulável e os de uma visão jurídica das relações sociais. Onde a intervenção jurídica criaria novos direitos, a filantropia, ao contrário, mantém sob tutela os pobres, de modo a confirmar suas necessidades, ao invés de afirmar o direito de sair dessa situação.

O principio da responsabilidade e seus correlários, a previdência, a filantropia e a liberdade, criam as bases para a estruturação de um sistema liberal de intervenção estatal, no qual o combate à pobreza ocupa lugar central. A pobreza é o lugar privilegiado no qual a sociedade descobre sua verdade e toma consciência de seus deveres. Conforme destaca Ewald (1996: 48):

Dire, comme on l’a fait, que le libéralisme rêverait de la fin du politique est donc tout à fait contestable. Le diagramme libéral, ordonné au tour du principe de responsabilité, propose, comme tout diagramme, um schéma d’autoregulation. Il n’élimine pas pour autant la nécessité d’une action gouvernementale; il l’a fonde, au contraire. (...) Cela confere aux politiques de sécurité civile, aux politiques de secours, aux politiques de la pauvreté une place centrale dans la problématique politique libérale. Autant dire que le social constitue une préocupation essentielle de la philosophie politique libérale. Celle qui concerne la gestion du lien ou du contrat social. En fait, la politique libérale est une politique sociale”43.

Ewald mostra que a economia política liberal é muito mais complexa do que a lógica econômica do laissez faire. Trata-se de uma forma de articular e integrar a moral e o direito, as práticas das desigualdades com as da igualdade, tornando-os indissociáveis e mutuamente dependentes: estabelece-se um limite da atuação do Estado e um modo de desenhar sua intervenção. Para manter esse limite, para conter os movimentos igualitários que demandam mais Estado, faz-se constantemente apelo à generosidade individual e aos bons sentimentos. Assim, o princípio de responsabilidade assenta-se na previdência, constitutiva de uma propriedade lucrativa, e na obrigação moral da caridade no que se refere à transferência voluntária do rico para o pobre. A atitude dos liberais não é a de negar a pobreza, nem de desinteressar-se por ela, nem de fugir de seu enfrentamento: ela cristaliza uma experiência da pobreza, uma sensibilidade que não a coloca na periferia do corpo social, mas, ao contrário, posiciona-a no seu centro.

1.4.2.3 O princípio de responsabilidade em tempos de modernidade líquida: o

No documento Nathalie Beghin Tese de Doutorado (páginas 68-71)