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3 OS DISCURSOS PELA REFUNDAMENTAÇÃO E VIGÊNCIA DA

3.3 A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA E

3.3.1 A conceituação do signo Educação Popular no discurso da

3.3.1 A conceituação do signo Educação Popular no discurso da refundamentação e vigência

Historicamente, na América Latina e Caribe, a prevalência do discurso pela EP ganha força a partir da emergência de governos autoritários, repressores e silenciadores daqueles discursos que não se enquadravam na ordem social implantada na época. “Os governos autoritários reprimiam formas libertárias de educação” (BRANDÃO, 1994, p. 45). No cenário brasileiro, a emergência da EP “[...] resultou de fatores econômicos conhecidos, associados a um período de hegemonia populista” (BRANDÃO, ibidem). Isto significa que a visibilidade da EP se deu a partir do instante em que a ordem do discurso populista lhe possibilitou ascender ao cenário educacional brasileiro como um paradigma para a educação vigente na época. Mesmo na era populista, o discurso veiculado em prol da EP era concebido como a educação para os pobres, principalmente para os jovens e adultos analfabetos.

A alfabetização, por conseguinte, era o foco, haja vista sua função para aumento do contingente de eleitores, como também atender aos interesses provenientes do processo de industrialização (Cf. PAIVA, 2003). À época, não se permitia o exercício do voto às pessoas que não soubessem ler nem escrever. Com a ascensão do governo militar no Brasil (1964- 1985), o discurso pela EP passa a veicular enunciados os quais reforçam as ideias liberais de “educação para todos”; de educação que visa manter o poder dominante na condição de dominador, e o oprimido, na condição de passividade/subalternidade. Em síntese, como uma educação destinada a pessoas pobres, conforme define Paiva (2003, p. 56), na seguinte citação:

Entende-se por educação popular, freqüentemente, a educação oferecida a toda a população, aberta a todas as camadas da sociedade de forma gratuita e universal. Também [...] seria aquela destinada às chamadas „camadas populares‟ da sociedade: a instrução elementar, quando possível, e o ensino técnico profissional tradicionalmente considerado, entre nós, como ensino „para os desvalidos‟ [...].

A partir do conceito indicado por Paiva, observa-se, inicialmente, que o termo EP está empregado de modo amplo, considerando todo o povo, independentemente de sua classe social. É a veiculação do discurso pela educação enquanto direito de todos, segundo o ideário liberal. No segundo momento, a EP adquire um sentido pejorativo, de que é uma educação para o povo pobre – “os desvalidos” – da sociedade, a qual visa instruí-lo para o mercado de trabalho. Isto porque, no Brasil, final do século XIX e início do XX, a educação elementar não era universal. Sendo assim, “[...] defendeu-se a extensão da educação elementar a maiores parcelas das „camadas populares‟”, confirma Paiva (2003, p. 57). A EP, a partir da Educação de Adultos, começou a ser difundida como “[...] um meio de proporcionar recursos humanos para o desenvolvimento e a industrialização do país” (PAIVA, ibidem, p. 208).

Mas, hoje, como os discursos latino-americanos e caribenhos conceituam a EP? Ou qual a compreensão que se tem de EP? Estes discursos compreendem que EP não possui um conceito acabado ou um conceito/compreensão homogêneo (CARRILLO, 2009; HURTADO, 2005a, 2005 b; MEJÌA, 2009; SOUZA, 2007, entre outros sujeitos enunciadores). Observa-se, ainda, que há uma certa dificuldade sobre como conceituar a EP, em decorrência de suas múltiplas práticas no continente, conforme já enunciado por Beisiegel em 1979, segundo nos revelam os estudos de Fleuri (1988). Portanto, os discursos que procuram conceituar a EP, tanto no Brasil como na “América Latina, não são lineares. Formas, modelos e agências de produção-difusão de ideias, propostas e práticas não se

sucedem ordenada e definitivamente”, como nos lembra Brandão (1994, p. 45). Este modo/forma de se por em prática o ideário da EP, em conjunto com a vontade de verdade de seus protagonistas, tem lhe custado caro, em virtude de críticas quanto a sua pulverização e em função de experiências diversas que tem se apoiado sob o rótulo da Educação Popular.

Reforçando esta formação discursiva, temos: “De esta convergência emergieron múltiples sentidos de la educación popular de acuerdo com las exigencias del momento histórico, del cual son resultados” (MUÑOZ, 2009, p. 39-40). Deste modo, ao se debruçar sobre o conceito de EP, identificam-se as seguintes formações discursivas sobre esta questão:

a) EP como metodologias ou dinâmicas;

b) EP compreendida como Educação de Jovens e Adultos;

c) EP situada no espaço de outras modalidades educativas: educação especial, educação à distância etc. (HURTADO, 2005b, p. 7-8).

Ainda há uma outra formação discursiva que a compreende nas seguintes vertentes:

a) EP identificada com a ampliação escolar para todos os cidadãos; b) EP como educação de adultos;

c) EP constituída pelo conjunto de práticas educativas desenvolvidas pelas próprias classes populares (FLEURI, 1988, p. 36-42).

E, por fim, EP como: a) educação para o povo, como preparação para o mundo do trabalho (modernização da produção do Século XVIII); b) educação escolar de raízes anglo- saxã e francesa tratando de propostas alternativas para o sistema escolar (meados do século XX); c) filiação política de toda a prática educativa (MUÑOZ, 2009, p. 39). Dada a multiplicidade de experiências, faces e práticas de EP, conceituá-la não é uma tarefa fácil.

Apesar disso, vamos aqui considerar alguns dos principais discursos de intelectuais e teóricos da EP. Inicialmente, Sales (1999), ao alimentar o debate em torno da conceituação de EP, a entende como um modo de atuação na perspectiva da apuração, da organização, do aprofundamento do sentir, pensar e agir daqueles excluídos do modo de produção do capital, com vistas, não em conceber tais protagonistas como meros produtores, mas como seres humanos, produzindo para o bem coletivo. O autor, junto com outros, também advoga a ideia de que é possível fazer EP, tanto nos espaços formais como não formais de educação (LEDEZMA, BAZÁN, 2005; LOMBERA, 2005; PAIVA, 2003; PONTUAL, 2005).

O pensar EP, sob a ótica destes autores, amplia o seu conceito rumo a uma sociedade mais humanamente justa para todos indistintamente. Uma sociedade na qual a EP

não seja uma bandeira de luta das camadas populares apenas, mas um modo de pensar e fazer educação para toda a sociedade, respeitando as diversidades culturais e as contradições existentes nessa mesma sociedade. “Educação Popular é produção de uma cultura ou de um modo de sentir/pensar/agir mais coerente. É a formação de bons lutadores” (SALES, 1999, p. 119). Reforçando este discurso, encontramos a seguinte regularidade enunciativa, a qual também atribui à EP, na contemporaneidade, o papel de formação de pessoas e de transformação social, pautada em seus princípios teórico-práticos:

La educación popular, entonces, es una propuesta teórico-práctica, siempre en construcción desde cientos de prácticas presentes en muy diversos escenarios de nuestra América (y más allá). Su visón es integral, comprometida social y políticamente. Parte y se sustenta desde una posición ética humanista. Asume una posición epistemológica de caráter dialético, rechazando por tanto el viejo, tradicional y todavia “consagrado” marco positivista. En consecuencia, desarrolla una propuesta metodológica, pedagógica y didáctica basada en la participación, en el diálogo, en la complementación de distintos saberes. Y todo ello desde y para una opción política que ve el mundo desde la óptica de los marginados y excluídos y que trabaja en función de su liberación (HURTADO, 2005b, p. 7-8).

Nesse discurso, observam-se enunciados, os quais identificam a EP com o povo ou com as suas formas de organização, com o propósito de inclusão social, emancipação e valorização do sujeito humano, inserido em uma sociedade capaz de ser justa socialmente e de se desenvolver economicamente, sem desvencilhar-se da justiça social. Este discurso entende a EP como um paradigma que está para além de uma postura tradicional, limitada ou exclusiva ao espaço de atuação das organizações não governamentais e de estar à margem das políticas públicas do Estado (GOHN, 2002). O discurso atual concebe a EP como um movimento (teórico-prático) de luta pela inclusão social, através da formação político- pedagógica de sujeitos críticos-reflexivos e construtores de sua história, inclusive, valorizando-a, sem menosprezarem outras existentes ou os demais atores sociais surgentes.

A EP, por conseguinte, possui o ideário de poder contribuir para a solidificação de um poder mais justo e participativo. O Estado deixou de ser um “inimigo” (discurso bastante presente no seio dos movimentos sociais, desde o período do governo militar no Brasil, sobretudo), para se tornar parceiro nas ações com as ONG‟s e demais entidades da sociedade civil organizada. A propósito, Silva (2003), em sua dissertação de mestrado, trata, nas Considerações introdutórias, dessa questão, a partir do paradigma dos Novos Movimentos Sociais (NMS). Os NMS surgem na Europa após a II Guerra Mundial, quando entram em cena novas manifestações da sociedade (movimento estudantil, de liberação sexual, de lutas

ecológicas, de mobilização de consumidores e usuários de serviços, de minorias étnicas e linguísticas, de gays e lésbicas etc.). Essa nova forma de organização e bandeira de luta da sociedade, a partir daquela época, fugia aos padrões clássicos de conceituação de movimentos sociais. Suas principais características são a fragmentação dos movimentos e a parceria com o Estado64.

Isto revela que a EP, através de suas práticas discursivas e não discursivas, tem acompanhado as transformações políticas ocorridas a partir do final do século XX, portanto, procurando mudar sua forma de luta, sem perder de vista seus princípios ainda vigentes. “Este debate denominado refundamentação da Educação Popular buscou redefinir seu papel, suas tarefas, sua concepção metodológica e criar novos instrumentos para sua intervenção” (PONTUAL, 2005, p. 96). Mas, como afirma Carrillo (2009), não é suficiente, para a EP, o discurso que apenas reconhece sua contribuição para a construção de um pensamento crítico e de uma racionalidade epistêmica alternativa ao discurso denominado de pensamento único hegemônico. “Es necesario generar propuestas de formación que posibiliten el reconocimiento, apropiación y construcción de racionalidades y subjetividades emancipadoras por parte de los educadores populares – y consecuentemente, de los sujetos de sus prácticas educativas” (ibidem, p. 26).

A EP, neste novo momento de conceituação e refundamentação, têm o desafio e a necessidade de rever novas possibilidades de ação, para além do circunscrito aos espaços tradicionais de luta.

A educação latinoamericana passa por um período de profunda refundamentação que, apesar das incertezas que gera, também cria a oportunidade para se abrir novos rumos de ação. Nesse contexto, a Educação Popular também se vê atingida por esse clima de instabilidade e de incertezas, sentindo-se ao mesmo tempo historicamente provocada a posicionar-se perante os desafios da atualidade, até porque os períodos de crise também podem inspirar atitudes propositivas em busca de sua superação (IRELAND, 1995, p. 10 apud SOUZA, 2007, p. 100-101).

Este discurso evidencia que estão se construindo outras formas de lutas, considerando que a EP está procurando manter-se atualizada e vigente no atual desenho em que a sociedade tem se configurado. Não mais de repressão e opressão explícitas, mas da nova face do capitalismo global e neoliberal, caracterizado por sua sutileza aguda e, ao mesmo tempo, perversa, além de reforçar o fosso social, no campo discursivo da educação, como

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Para maior aprofundamento do conceito, sugerimos os seguintes autores: Gohn (2000); Melucci (2001) e Scherer-Warren (1996, p. 49-64).

enuncia McLaren (2000), também reduzindo a educação a um dispositivo projetado para criar consumidores e, assim, reforçar a lógica do mercado nas relações humanas. Talvez, agora, as armas tenham que confrontar um “inimigo” que ora está à mostra, ora está à espreita. E neste contexto, como definir a EP e fazer dela um instrumento crítico para a mudança social e a libertação dos seres humanos? Frente às mudanças na concepção e no entendimento de EP, vivenciada atualmente na América Latina e no Caribe, e em decorrência da mudança dos regimes políticos totalitários para democráticos, Carrillo (2000, p. 9) nos lembra que,

[...] se ha venido resquebrajado frente a la evidencia de las crecientes desigualdades e injusticias sociales que ha traído la implantación generalizada del modelo neolibeal. Transcurridas dos décadas de la aplicación de las políticas de ajuste, los indicadores de desigualdad social se han disparado en todos los países, el desempleo y la informalidad pasaron a ser los rasgos predominantes del mundo laboral; el poder jubilarse o acceder servicios de salud son un privilegio en vía de extinción, mientras que la pobreza y la indigencia alcanzaron dos terceras partes de la población del continente.

Assim, a EP, diante de uma realidade ainda mais gritante, possui desafios que não lhe são novos. A face da exploração e da luta entre classes antagônicas pela emancipação do homem/mulher ainda faz parte da utopia concreta no discurso daqueles que sonham em viver em uma sociedade mais justa para todos. A utopia, entendida como algo realizável, possível, porque parte do concreto e de realidades sociais humanas e, ainda, como categoria “[...] que se inscreve na vida e na obra de Paulo Freire representa grande contribuição à formação com educadores e educadoras, tendo em vista o fortalecimento da práxis transformadora diante do cenário da globalização econômica e da mercantilização da educação” (FREITAS, 2008, p. 417).

Neste novo momento em que está inserida a EP, os discursos enunciados por Guevara (2005), Gohn (2002), Freire (2002a; 2002b) e Brandão (1989) revelam que o princípio de sua sustentação é o saber popular (o senso comum), construído através das experiências de vida dos homens. O senso comum é o ponto inicial para a aquisição do saber científico.

Por conseguinte, a EP procura partir do concreto, do mundo dos sujeitos dos setores populares, tendo na relação dialógica sua base de construção e exercício da cidadania. Assim, a EP considera os sujeitos populares como protagonistas do seu próprio aprendizado, produtores de saberes e atores da sua emancipação, procurando valorizá-los enquanto seres

humanos em sua totalidade socio-histórica e, nesse contexto, como produtores de conhecimento.

Sendo assim, intensifica-se o discurso que reforça haver diferentes concepções sobre o que venha a ser a EP. Ora, ela consiste na aplicação de determinadas técnicas ou ferramentas didáticas para facilitar e tornar mais eficiente o processo de ensino-aprendizagem. Ora, ela é conhecida como educação de adultos, ou seja, como processos formais que se realizam informalmente fora da sala de aula escolar e horários flexíveis. Mas, sem dúvida alguma, este tipo de educação, na maioria de suas práticas, é realizada junto aos setores populares, marginais e dentro de esquemas informais e normalmente com adultos pobres (HURTADO 2005b). Desse modo, a EP, como uma teoria pedagógica, é algo muito mais complexo e difícil de conceituar, considerando os seguintes elementos que a caracterizam como tal: sua meta política, o perfil dos sujeitos, sua intencionalidade etc.

3.3.2 Educação Popular: da superação das antigas lentes de leitura de mundo à vigência