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3 OS DISCURSOS PELA REFUNDAMENTAÇÃO E VIGÊNCIA DA

3.3 A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA E

3.3.5 Educação Popular e a valorização da sua experiência acumulada

A Educação Popular possui um acumulado em termos de pensamento pedagógico e crítico pelo qual tem a oportunidade de rever sua reconceitualização para orientação de ações com populações específicas (CARRILLO, 2009).

O discurso pela valorização da experiência acumulada historicamente pela EP está associado ao discurso que aponta para a necessidade de se fazer um exercício crítico para se reconhecer a conjuntura atual do capitalismo e, assim, poder produzir as resistências frente às novas formas de poder e controle social. Nesse caso, os enunciados são (MEJÍA, 2009, p. 44, tradução nossa):

 reconhecer as mudanças estruturais que ocorrem na sociedade, derivadas das modificações geradas pelo processo de organização desta dada sociedade, devido às mudanças atuais, as mutações históricas etc.;

 compreender o novo projeto de controle e dominação para refazer uma leitura crítica do pensamento marxista, afim de permitir tirar das entranhas os novos processos existentes nas formas do capitalismo cognitivo;

 recuperar a tradição crítica latino-americana para tê-la como base de uma releitura para entender como essas novas realidades chegam ao nosso contexto;

 analisar como, atualmente, se produz esse projeto de transnacionalização, a maneira como são apropriadas por nossas tecnocracias nacionais e daí a

capacidade de ler, como os grupos dos setores populares voltam a formular as lutas para esta nova realidade, a partir do pensamento crítico, o qual possa reconduzir estas práticas de resistências que sinalizem seu quefazer também para outras práticas e outras leituras críticas.

Conclui Mejía (ibidem, p. 45), afirmando que se vive um novo tempo (denominado por ele de arco íris) pelo qual é possível construirmos conjunturas, observar um mundo mais transdisciplinado e mais transversal para a construção do humano em sua capacidade plena e, não apenas, do humano instrumental, ao serviço do controle e do poder do capitalismo cognitivo. Logo, cabe à EP, a partir de sua tradição, dialogar com outros paradigmas críticos, para poder refundamentar e manter sua vigência no continente da América Latina (MEJÍA, 2009). Como exemplo, Carrillo (2009) cita autores como Foucault, Deleuze, Guattari e Derrida, os quais indicam lentes de leitura para se questionar o poder e o capitalismo.

Por otro lado, desde algunas perspectivas investigativas desarrolladas por fuera y en oposición a las disciplinas sociales, como el feminismo, los estudios de género, los estudios culturales, los estudios postcoloniales y los estudios subalternos, se han hecho serios cuestionamientos al universalismo y objetivismo de la ciencia social moderna y se ha puesto en evidencia su carácter patriarcal, eurocentrista, colonialista y elitista. En consecuencia, se proponen prácticas alternativas que visibilizan y cuestionan dichas relaciones de subordinación, a la vez que abren nuevas posibilidades emancipadoras (CARRILLO, ibidem, p. 20).

Assim, concordando com o discurso de Mejía (ibidem, p. 45): “[...] la educación popular hoy aporta una forma específica de hacer educación, desde uns opciones e intereses que, con un ethos popular buscan realizar prácticas educativas críticas y transformadoras de nuestras realidades”. Ainda, concernente ao discurso que propaga a necessidade de buscar a experiência acumulada pela EP ao longo de sua trajetória histórica, Mejía (2009, p. 45-47), como sujeito enunciador, aponta algumas pistas, apresentadas no Quadro 10.

O discurso pela busca do acumulado histórico da EP revela sua coerência com seu princípio filosófico: o partir da realidade de vida e das experiências dos sujeitos para a construção do saber ou de mudanças, como também o seu inacabamento enquanto paradigma educacional, uma vez que a EP está em processo. Os sujeitos enunciadores são unânimes em afirmar que, para a EP superar suas fragilidades e acompanhar as novas mudanças e realidades sociais, deverá levar em consideração todo o seu acumulado de experiências. Pois, sem considerar os alicerces construídos ao longo de seu percurso histórico, a EP poderá sentir

dificuldades maiores para acompanhar esta nova realidade social, formada por novos sujeitos, novas demandas e por um capitalismo mais consistente. Dialogar com outros paradigmas alternativos e emancipadores significa, para a EP, sair de seu reducionismo, tão criticado por seus opositores, rumo a outras possibilidades.

Quadro 10 – Pistas referentes à necessidade de buscar a experiência acumulada pela EP ao longo de sua trajetória histórica

A EP tem um campo de ação e

uma concepção própria de

educação

O campo de ação da EP são todos os espaços educativos. Ela é consciente de que, se a educação não mudar, em uma perspectiva transformadora, as realidades das pessoas e da sociedade, o mundo igualmente não passará por mudanças. A EP tem como meta ético-político e pedagógica “[...] cambiar las personas que hacen presencia [en muchos] espacios [educativos], fruto de la acción de la educación popular, para que ellas construyan la opción en sus espacios de práctica de transformar el mundo” (p. 45) A EP é um trabalho político e cultural através dos meios educativos

O trabalho educativo é político por sua intencionalidade e cultural por envolver os diversos sujeitos humanos em suas idiossincrasias. Neste sentido, a EP propõe construir outro tipo de vida mais humana, mais livre, justa, mais solidária e mais crítica. Nesse sentido, ela é considerada como um ato político que busca ser coparticipante na recriação de paradigmas que planejam outro mundo possível (p. 45-46).

A EP tem como cenário de atuação os múltiplos espaços educativos da sociedade

Por sua ação e intenção política (em transformar a sociedade e em defesa dos interesses das classes populares) é que a EP não reduz sua ação ao trabalho com as classes populares e suas formas de organização diversas. Ela participa do restante da sociedade, colocando esta concepção em distintos campos de atuação, assim como em sua atividade diária e cotidiana (p. 46). A EP tem como ponto de partida de suas ações a realidade para transformá-la

A EP busca transformar o sistema de educação em todos os níveis e, por esse meio, a sociedade. Ela reconhece sua prática como exercício cultural, através de um processo de educação crítica, que considera os educandos como atores ativos. Logo, a “participação”, em sua proposta político-pedagógica. O autor ressalta que a participação dos sujeitos humanos não se limita a ações didáticas ou dinâmicas de grupos. A participação é pela mudança dos indivíduos, a partir de uma educação integral, crítica e criativa (p. 46).

A EP reconhece o pedagógico como um campo

de dispositivos de saber e poder

O pedagógico na EP possui uma intencionalidade: a formação de sujeitos críticos, emancipados e atuantes em sua realidade, tornando-os solidários, aprendendo a trabalhar em grupo etc. Logo, o pedagógico na EP constrói subjetividades nos diferentes espaços educativos onde se atua. Por isso, a EP é uma educação que cria atores sociais que, com sua ação, mostram que outra educação é possível e que através dela outro mundo emerge (p. 47).

Fonte: Mejía (2009, p. 45-47).

A vigência da EP, no contexto latino-americano e caribenho atual e mundial, não deixou de existir após a queda do muro de Berlim, da dissolução da antiga União Soviética e do processo de redemocratização dos países sul-americanos. Pois, a atual sociedade, pautada no modelo econômico neoliberal, considerada injusta e excludente, faz com que se reafirmem os princípios e as propostas da EP, conforme enuncia Hurtado (2005b).

Portanto, manter seu vínculo com a construção da emancipação das classes populares, a partir da valorização do saber popular, constitui-se em uma das suas metas. Assim, os princípios da EP, a partir dos enunciados que compõem a sua formação discursiva, têm como núcleo principal o elemento humano e, com ele, toda a sua história de vida,

principalmente no que diz respeito à formação política e à formação pedagógica do mesmo e à transformação social, para um outro modelo de sociedade, antagônico ao modelo capitalista neoliberal global. Esta é uma das grandes intencionalidades de cunho político da EP.

Com o exposto até momento, resta-nos assinalar que a concepção de Educação Popular, adotada nesta tese, afina-se com a concepção freireana a qual compreende a EP como: “[...] um esforço no sentido da mobilização e da organização das classes populares com vistas à criação de um poder popular” (FREIRE, 2002b, p. 74). Em outras palavras: “como um paradigma educacional, cuja metodologia visa atuar com o povo e nunca para o povo; como uma educação que parte dos níveis de percepção em que se encontram os educandos, os grupos populares, e com eles ir avançando e transformando em rigor científico o que era, no ponto de partida, senso comum” (ibidem, p. 83). E, tecendo os fios discursivos sobre esta mesma concepção de EP, vamos concebê-la como

[...] um processo de humanização que pressupõe uma longa, complexa e ininterrupta experiência de formação, contemplando o desenvolvimento das mais distintas dimensões e potencialidades do ser humano, protagonizada por sujeitos individuais e coletivos, cuja prática aponte necessariamente, desde as relações do dia-a-dia, para o alvo desejado, ou seja, a construção de uma sociedade economicamente justa, socialmente solidária, politicamente igualitária e culturalmente plural (CALADO, 2008, p. 240-241).

Enfim, pode-se concluir que a EP procurou mudar algumas de suas bases ideológicas e práticas (concepção de sociedade hegemônica, visão de sociedade sob as lentes exclusivas do marxismo, reconhecimentos de sujeitos diversos e plurais, práticas não restritas ao seio dos movimentos sociais, mas também nas instituições estatais etc.). Ela procurou levar em consideração as mudanças ocorridas na sociedade, a partir da década de 1990 até o presente momento histórico. Ela tem procurado dialogar com outros paradigmas emancipadores para refundamentar, atualizar e dar vigência a sua prática no contexto atual. Inclusive, esta tem sido a posição de seus estudiosos, contudo, sem perder os propósitos de transformação da sociedade numa outra possível, alicerçada na justiça econômica, social, política e cultural.

A EP, a partir dos discursos e vozes latino-americanos e caribenhos, demonstra que não ficou obsoleta, como alguns discursos contrários pretendem até hoje sustentar. Pelo contrário, a partir de sua experiência acumulada ao longo de seu percurso histórico, a EP tem sido motivada a renovar-se e a atualizar-se.

A concepção de EP, aqui adotada e norteadora desta investigação, pode ser sintetizada no Quadro 11.

Quadro 11 – Inspirado em textos diversos: FIALLOS (2005); FREIRE, Paulo (1958; 2002a; 2002b; 2005); HURTADO (2005); SOUZA (2005; 2007)

Concepção/entendimento de Educação Popular

a) Processo que oportuniza a formação de seres humanos para a vida em sociedade (in) dissociada da sua realidade histórico-social;

b) Processo que não se limita apenas ao ato de transmissão de conhecimentos ou a escolarização;

c) Processo compromissado com as massas populares.

Princípios filosóficos da Educação Popular

a) “[...] paradigma do bem comum, da justiça, da equidade, da liberdade, do respeito, da democracia e da solidariedade [...]” (FIALLOS, 2005, p. 165); b) Seu ponto de vista é o dos “Condenados da Terra”: os excluídos;

c) Tem na realidade concreta dos sujeitos (práxis), concebidos como seres produtores de sua história, a base para a construção de sua teoria crítica.

Objetivos da Educação Popular

a) Aplica-se à realidade dos sujeitos históricos, ajustando-se as suas cores e notas (FREIRE, 1958);

b) Conhecer, criticamente, as peculiaridades regionais brasileiras;

c) Desenvolver os seres humanos ao ponto de atingir a emancipação (de objeto pensante para ser sujeito de seu próprio pensamento (PINTO, apud FREIRE et al. 1958, p. 1);

d) Discutir com os homens e mulheres sua realidade social concreta, com vistas às mudanças;

e) Construção de uma sociedade economicamente justa, socialmente solidária, politicamente igualitária e culturalmente plural (CALADO, 2008, p. 240- 241).

Conteúdos pedagógicos

Conteúdo educacional:

a) Integração do homem ao processo de desenvolvimento;

b) “que estimule no brasileiro à colaboração, à decisão, à participação, a responsabilidade social e política” (FREIRE, 1958, p. 3).

Conteúdo operativo:

a) Projeto que priorize o fazer com, mergulhado na realidade concreta; b) Programas planejados em parte com as instituições da comunidade e com os alunos e que respondam à sua realidade existencial;

c) Trabalhar com os sujeitos históricos e não para os sujeitos.

Dispositivos de diferenciação pedagógica

a) Questionar a realidade na qual os sujeitos estão inseridos e com ela dialogar;

b) Geração de emprego e renda, com base em uma economia solidária, aliada ao processo de educação escolar;

c) Formação política dos sujeitos;

d) Emancipação, libertação e empoderamento dos sujeitos.

O conhecimento construído sobre a EP, desde os anos 1950, revela um saber que não deixou de levar em consideração questões como: o processo de conscientização e formação crítica de seus atores sociais; o olhar em favor das dimensões holística da realidade ecológica, da relação de gênero, da sexualidade, da afetividade e subjetividade; da inter/multi/transculturalidade, da relação do micro com o macro, do diálogo como dispositivo metodológico e educativo. Tal diálogo envolverá outros elementos metodológicos e

pedagógicos tais como: participação democrática, pedagogia da escuta, libertação, emancipação, empoderamento e viabilidade de uma sociedade para todos e todas.

Em síntese, a EP, apesar de suas práticas discursivas e não discursivas, plurais, difusas e diversas, tanto em órgãos não governamentais, como também governamentais, como nos espaços não formais e também formais, não deixou de ser uma utopia possível para os seus militantes e, diante do que analisamos no corpo deste capítulo, a concebemos como um paradigma educacional na perspectiva crítica, a qual possui elementos pedagógicos importantes para o processo de formação de professores no campo da EJA, especialmente, a formação inicial promovida pelas universidades.

Por fim, nosso entendimento compõe a formação discursiva pela qual entende a EP como um paradigma teórico-prático pedagógico da EJA, presente em diversas práticas formativas de professores, seja na academia ou fora dela, a exemplo das práticas formativas de professores alfabetizadores de EJA do Projeto Escola Zé Peão. Ainda, como um paradigma que visa à formação humana emancipatória e cidadã dos sujeitos, a valorização dos saberes adquiridos ao longo de suas histórias de vida, da pluralidade cultural, em suas complexas dimensões humano-tecnológica e científica.