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3 OS DISCURSOS PELA REFUNDAMENTAÇÃO E VIGÊNCIA DA

4.1 O TRATAMENTO DOS DADOS: O CORPUS DOCUMENTAL, O PERFIL

4.1.3 Os enunciados: identificação, descrição e análise

Para que fosse possível identificar o enunciado, descrevê-lo e analisá-lo, foi preciso obter a compreensão de que ele não é uma proposição e muito menos se pode “[...] definir um enunciado pelos caracteres gramaticais da frase” (ibidem, p. 93). Isto nos levou, ainda, a entender que os enunciados transpõem as frases, as regras gramaticais, uma palavra etc. Além disso, tivemos que considerar que tudo que é passível de materialização suplementar, pode conter um dado enunciativo, isto é,

[...] uma árvore genealógica, um livro contábil, as estimativas de um balanço comercial, são enunciados [...]; uma equação de enésimo grau ou fórmula algébrica da lei da refração devem ser consideradas como enunciados [...] Finalmente, um gráfico, uma curva de crescimento, uma pirâmide de idades, um esboço de repartição, formam enunciados [...] (FOUCAULT, 2000a, p. 93).

Vê-se, desse modo, que o enunciado é muito mais amplo que uma frase ou uma proposição lógica. Ele pode ser encontrado “[...] onde não se pode reconhecer nenhuma frase; encontramos mais enunciados do que os speech acts que podemos isolar [...]” (FOUCAULT, 2000a, p. 95). Logo, declara Foucault (Ibidem, p. 96): “O limiar do enunciado seria o limiar da existência dos signos”.

Assim, os enunciados vão existir a partir de uma materialidade, mas também a partir da contribuição do indivíduo que assumirá a função do autor, uma vez que nada se registra, nada se escreve, nada se produz, se estamos estudando as Ciências Humanas, sem a colaboração do sujeito humano. Desse modo, ressalta Foucault (2000a) que, para um dado enunciado existir, se faz necessária uma materialidade expressa através dos signos. Isto é, para que uma sequência de elementos linguísticos (relação de signos, frases ou proposições) possa ser analisada como enunciado, exige-se que ela apresente as seguintes características70:

a) um espaço correlato ou um referencial: “um conjunto de domínios em que tais objetos podem aparecer e em que tais relações podem ser assinaladas [...]”. Sendo assim, a questão que erguemos, quando se pretende analisar um enunciado, é: um dado enunciado nos remete a que ou a qual referencial? O referencial, de acordo com Foucault (2000a, p. 104),

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Um estudo que pode servir para consulta e consequente aprofundamento da questão em foco, sob inspiração da leitura de Arqueologia do Saber, é o primeiro capítulo da dissertação defendida por Márcia Vescovi Fortunato, no Programa de Pós-Graduação em Educação da USP, em 2003, intitulado Autoria sob a

[...] não é constituído de „coisas‟, de „fatos‟, de „realidades‟, ou de „seres‟, mas de leis de possibilidades, de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas. O referencial do enunciado forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a instância de diferenciação dos indivíduos ou de objetos, dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado; define as possibilidades de aparecimento e de delimitação do que dá à frase seu sentido, à posição seu valor de verdade.

É um conjunto que caracteriza o nível enunciativo da formulação. Não é nem seu nível gramatical e muito menos seu nível lógico. Logo, “[...] a descrição do nível enunciativo [se faz através da] análise das relações entre o enunciado e os espaços de diferenciação, em que ele mesmo faz aparecer as diferenças” (FOUCAULT, ibidem, p. 105).

O espaço correlato pode se configurar em dimensões políticas, educacionais, econômicas, sociais etc. Em síntese, esses campos, tomados como exemplos, são referências que formam um lugar, uma condição, um destaque que diferencia os enunciados, mas, no entanto, se reúnem em um feixe de relações entre si.

No diagrama 3, apresentamos um exemplo para ilustrar nossa compreensão sobre o assunto em questão. As setas indicam o espaço correlato ou referencial existentes.

Diagrama 3 – Síntese do espaço correlato ou referencial, baseado em Foucault (2000a)

b) um sujeito enunciativo ou “autor”

Para Foucault (2000a, p. 107), o sujeito enunciativo Princípios e práticas de movimentos sociais populares Legislação educacional oficial Organizações governamentais Formação do educador popular

[...] é uma função determinada, mas não forçosamente a mesma de um enunciado a outro; na medida que é uma função vazia [ou seja, não possui um dono, um proprietário], podendo ser exercida por indivíduos, até certo ponto, indiferentes, quando chegam a formular o enunciado; e na medida em que um único e mesmo indivíduo pode ocupar, alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes posições e assumir o papel de diferentes sujeitos.

Assim, pode-se entender que o sujeito enunciativo é uma função ocupada em um dado momento para poder proferir um determinado enunciado.

Não é preciso, pois conceber o sujeito do enunciado como idêntico ao autor da formulação, nem substancialmente, nem funcionalmente. Ele não é, na verdade, causa, origem ou ponto de partida do fenômeno da articulação escrita ou oral de uma frase [...]. É lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes [...]. Esse lugar é uma dimensão que caracteriza toda formulação enquanto enunciado, constituindo um dos traços que pertencem exclusivamente à função enunciativa e permitem descrevê-la (FOUCAULT, 2000a, p. 109).

O filósofo nos leva a entender que tudo que propagamos é influenciado pelo lugar, ou seja, pela posição social que ocupamos. São essas instâncias sociais que produzem os enunciados. Nós apenas atuamos na condição função sujeito, função autor ou sujeito enunciador.

c) campo associado ou domínio associado: segundo Foucault, é o que oportuniza ao enunciado ser diferente de um conjunto de signos, de uma frase e de uma proposição. Assim, o campo associado é o que possibilita a um dado enunciado costurar uma teia de relações com outros enunciados. Desse modo, o enunciado,

[...] desde a sua raiz, ele se delineia em um campo enunciativo onde tem lugar e status, que lhe apresenta relações possíveis com o passado e que lhe abre um futuro eventual. Qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja [Logo] não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistência, efeitos de série e de sucessão, uma distribuição de funções e de papéis (FOUCAULT, 2000a, p. 113-114).

Em síntese, o filósofo reforça sua ideia de que, para que uma sequencia de elementos linguísticos possa ser analisada como um enunciado deverá estar inserida em um

campo associado, ou seja, articulada a outros enunciados, mas não sendo os outros, muito menos, sua continuidade. Sendo assim, podemos exemplificar que um dado enunciado do campo jurídico faça associação com enunciados do campo educacional, do campo da ética e da moral etc. Diante disto, o enunciado, ou um grupo de enunciados são multiplicidades (DELEUZE, 2006). Isto é, eles existem a partir de um feixe de relações com outros enunciados em tempos e espaços distintos. Não há, então, uma necessidade cronológica entre os enunciados, mas a busca de uma certa regularidade entre eles.

d) possuir existência material: o enunciado posto, colocado, deverá, portanto, ser apresentado através de uma espessura material. E, tal materialidade, não é dada apenas em forma suplementar, apesar de ser uma parte que constitui o enunciado (FOUCAULT, 2000a). Desse modo, entendemos que a materialidade de um enunciado está em sua existência como tal (ou como ente). “As coordenadas e o status material do enunciado fazem parte de seus caracteres intrínsecos” (ibidem, p. 115).

Portanto, o enunciado, em parte materializado através de suplementos diversos e em parte materializado em sua existência enquanto um ente é o que o faz existir na condição de enunciado. Com tudo isso, afirma Foucault (2000a, p. 116) que a materialidade “[...] é constitutiva do próprio enunciado: o enunciado precisa ter uma substância, um suporte, um lugar e uma data”.

Desse modo, pensar a materialidade do enunciado é pensar que ela não se circunscreve apenas ao que é sensível, palpável ou através de uma espessura material. Em síntese, a materialidade do enunciado é constituída, parcialmente, por uma dada espessura material e pela própria identidade do enunciado. Há, aí, portanto, uma relação de interdependência: a identidade do enunciado entendida como sendo a presentificação do mesmo. Ao detectá-lo, eis que ele se materializa na condição de identidade, de ser, e, para isto, necessita de um suplemento, seja através de uma foto, ilustração, charge, texto, palavras, frase, enfim.

No campo da Educação Popular, vamos buscar entender a materialidade dos enunciados, concernentes à formação de professores para a EJA, presente tanto nos suplementos (pareceres, leis, artigos, relatórios, propostas pedagógicas, pautas de oficinas pedagógicas, relatos orais transcritos etc.), os quais são provenientes de práticas, de ações (formações não discursivas) de determinadas experiências formativas de professores de EJA, de instituições governamentais, bem como na própria existência do enunciado.

O enunciado não é algo simples e fácil de ser estabelecido, identificado, afirma Foucault (2000a). Por isso, ele o insere naquilo que denomina de função enunciativa, a qual põe em jogo unidades.

[...] elas podem coincidir às vezes com frases, às vezes com proposições; mas são feitas às vezes de fragmentos de frases, séries ou quadros de signos, jogo de proposições ou formulações equivalentes [...] Em suma, o que se descobriu não foi o enunciado atômico – com seu feito de sentido, sua origem, seus limites e sua individualidade – mais sim o campo de exercício da função enunciativa e as condições segundo as quais ela faz aparecerem unidades diversas (que podem ser, mas não necessariamente, de ordem gramatical ou lógica) (FOUCAULT, 2000a, p. 122).

No Diagrama 4, apresentamos uma síntese do que estamos expondo sobre os requisitos para se examinar os enunciados, segundo a compreensão foucaultiana.

Diagrama 4 – Síntese dos requisitos para o exame dos enunciados, segundo Foucault (2000a)

Por fim, a AAD nos orientou a analisar os enunciados, considerando-os nas formas de raridade, de exterioridade e de acúmulo. O efeito de raridade significa entender que nem todos os enunciados estão ainda em circulação.

Muitos enunciados estão adormecidos em suas instâncias proliferadoras. É preciso, portanto, pô-los em circulação; fazer com que eles apareçam e sejam revelados. A esse respeito, a pesquisa tem um importante papel, pois ela colabora com o processo de fazer circular os enunciados, tornando-os conhecidos, independentemente do seu lugar de emergência (seja ele acadêmico ou não acadêmico).

Referente ao efeito de exterioridade, Foucault não vincula os enunciados a um sujeito, a um ser ou a um cogito. “Não importa quem fala, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar. É considerado, necessariamente no jogo de uma exterioridade” (FOUCAULT, 2000a, p. 142). Nesse caso, tivemos que nos preocupar, como já citamos anteriormente no corpo deste texto, em fazer uma descrição do cenário discursivo, pelo qual possibilitou o aparecimento do dado enunciativo. E, essa descrição, portanto, é histórica, uma vez que a AAD “[...] se desdobra na dimensão de uma história geral; [...]; o que ela quer revelar é o nível singular em que a história pode dar lugar a tipos definidos de discursos que têm, eles próprios, seu tipo de historicidade e que estão relacionados com todo um conjunto de historicidades diversas” (FOUCAULT, 2000a, p. 189).

E por fim, o efeito de acúmulo, pelo qual os enunciados formam um conjunto, cujos elementos ora se aproximam e se completam, ora estão distantes. Isso porque a linguagem é movimento, não está inerte. Há um acúmulo de enunciados proferidos, ditos, dispersos em um dado tempo e espaço. Para isso, tivemos que levar em conta que o enunciado deve ser considerado em sua remanência, isto é, entender que os enunciados não se encontram apenas no campo da memória. Mas que eles estão preservados em “[...] um certo número de suportes e de técnicas materiais [...] segundo certos tipos de instituições [...] e com certas modalidades estatutárias [...]” (FOUCAULT, 2000a, p. 143).

Em seguida, os enunciados são analisados, segundo a forma da aditividade que lhes é específica. Tal especificidade deve ser entendida como algo peculiar ao próprio enunciado. Não se podem analisar os enunciados pensando em fazer um amontoado, uma simples justaposição de elementos contínuos. Tivemos, portanto, que considerar sua dispersão, sua evolução e: “Além do mais, [considerar que] as formas de atividade não se apresentam de forma definitiva para uma categoria determinada de enunciados [...]” (FOUCAULT, ibidem). Os próprios exemplos, apontados por Foucault, nos asseguram que os enunciados evoluem, não seguem uma mesma regra, não são contínuos. Ou seja, não podem ser analisados como uma sequência lógica e cronologicamente linear. A história possui picos, podendo haver cortes das sequências. Lembramos, mais uma vez, tanto da característica da dispersão dos enunciados como do efeito da raridade. Eles nos anunciam as

especificidades de cada enunciado existente. Não há como querer concatená-los, justapô-los, como se todos fossem uma sequência fácil para se fazer isso.

E, terceiro e último aspecto: levamos em consideração os fenômenos de recorrência. Para se entender esse aspecto, deve-se atentar para o campo de elementos antecedentes que compreende todo enunciado pelos quais se situa. Este mesmo campo de elementos “[...] tem o poder de reorganizar e de redistribuir segundo relações novas [A recorrência constitui o passado do enunciado] coloca o passado enunciativo como verdade adquirida, como um acontecimento que se produzia [...] como um objeto de que se pode falar” (FOUCAULT, ibidem, p. 143).

E, por último, a remanência, a aditividade e a recorrência são aspectos importantes a serem considerados para se analisarem os enunciados. São eles que nos permitem observar o efeito de acúmulo. Portanto, descreve-se um conjunto de enunciados, consequentemente, “[...] para aí reencontrar não o momento ou a marca da origem, mas, sim, as formas específicas de um acúmulo [...]” (FOUCAULT, Ibidem, p 144), e assim encontrar sua positividade ou o efeito de sentido de um dado discurso.

Deste modo, a proposta de análise arqueológica foucaultiana, a AAD, busca nos textos descobrir a regularidade de uma prática discursiva, anterior ou posterior, pondo-os em confronto, pois, como afirma Foucault (2000a), as regularidades postas em oposição a outras regularidades de enunciados caracterizam outros enunciados. A regularidade não acontece de modo que possa ser mensurável, “[...] não pode, pois, valer como índice de frequência ou de probabilidade; especifica um campo efetivo de aparecimento. Todo enunciado é portador de uma certa regularidade e não pode dela ser dissociado” (FOUCAULT, ibidem, p. 165).

Por conseguinte, a arqueologia busca definir os próprios discursos enquanto práticas que obedecem a regras, pois o discurso, para Foucault, é considerado como monumento. Sendo assim, a Arqueologia do saber não se constitui em uma disciplina interpretativa, apesar de que o analista do discurso descreve para poder analisar/interpretar. O discurso, portanto, não é um documento, ou signo de outra coisa, mas é tratado em seu próprio volume. A arqueologia também é uma análise diferencial das modalidades de discurso. E, finalmente, a arqueologia é a descrição sistemática de um discurso-objeto. Foucault (2000a, p. 160) revela que não é interesse da arqueologia “[...] reconstituir o que pôde ser pesado, desejado, visado, experimentado, almejado pelos homens no próprio instante em que proferem o discurso [...]”. Segundo ele, a arqueologia é uma reescrita, mantida na forma da exterioridade, ou seja, “[...] uma transformação regulada do que foi escrito” (ibidem). E que, ainda, os enunciados possuem o poder de serem repetidos em espaços e

tempos diferentes, e as regiões ou campos dos enunciados devem ser encarados como domínios ativos.

Assim sendo, o presente capítulo apresentou o percurso teórico-metodológico pelo qual identificamos, descrevemos e analisamos os enunciados presentes nas práticas discursivas do Projeto Escola Zé Peão. Apresentamos as categorias e os principais conceitos da AAD que embasaram e nortearam esta proposta de investigação. Temos ciência de que tal empresa foi desafiadora em virtude dos limites postos à nossa condição de pesquisador.

Por fim, ao longo do texto da tese, ressaltamos que, o que se segue é o resultado de uma investigação que se direciona no sentido de extrair dos discursos proferidos pelos sujeitos enunciadores e seus respectivos lugares os enunciados que revelam uma prática em relação à formação de professores alfabetizadores de EJA, na perspectiva da Educação Popular. Isto porque, “[...] a partir dos próprios discursos, da materialidade dos enunciados, de suas condições de produção, pode-se descrever a trama de coisas ditas a respeito de uma época” (FISCHER, 1996, p. 125). Assim, os textos estudados e analisados, oriundos de documentos como de depoimentos orais e escritos, permitiram conhecer mais do objeto em foco. Assim sendo, está posto nosso desafio, ou seja,

Agora, chegamos ao teste maior: fazer essas afirmações e sugestões de análise da realidade tornarem-se operacionais, tanto quanto isso for possível. Não se verá uma „aplicação‟ de Foucault, nas análises a seguir. Mas um modo próprio de „trabalhar com‟ o autor, abrir-se à sua forma precária, inconclusa e criativa de operar sobre os documentos, refazendo os caminhos sempre que necessário e não temendo expor as errâncias (FISCHER, 1996, p. 129).

Com estas afirmações e os desafios postos, passaremos a etapa posterior desta pesquisa, considerando todo o percurso até aqui executado.

5 O PROJETO ESCOLA ZÉ PEÃO

No presente capítulo, objetivamos introduzir e analisar nosso objeto de estudo, a formação de professores de EJA na perspectiva da Educação Popular, no cenário discursivo do Projeto Escola Zé Peão. Para isso, reforçamos nossos argumentos de escolha por este e não por outro projeto de alfabetização, posicionando o PEZP na condição de acontecimento discursivo. Apresentamos, inicialmente, o cenário discursivo da construção civil e o fenômeno do analfabetismo; em seguida, a criação e a ordem de funcionamento do Projeto (salas de aulas, os cursos de alfabetização e pós-alfabetização, os trabalhadores educandos, a equipe pedagógica, os financiamentos e parcerias).

O PEZP possui uma materialidade histórica que propiciou emergir seu discurso em um determinado tempo e espaço. O Projeto, portanto, se configura em “um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos” (FOUCAULT, 2000a, p. 62). Isto é, este discurso somente é possível graças ao feixe de relações que estabelece com outros discursos dispersos em tempos e espaços diferenciados. Portanto, são analisadas as práticas formativas do PEZP em sua evidência e existência histórica, em sua condição de acontecimento discursivo (Cf. FOUCAULT, 2000b, p. 57).

Sendo assim, este capítulo se propõe a apresentar o referido projeto, desde a sua ordem de funcionamento até os enunciados que revelam a intencionalidade para a formação de professores no campo da EJA.

5.1 O PROJETO ESCOLA ZÉ PEÃO NA CONDIÇÃO DE ACONTECIMENTO DISCURSIVO

Em 1997, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) divulgou, em um de seus suplementos, intitulado La Educación de Adultos en un Mundo en Vías de Polarización, que trabalhadores brasileiros aprendem a fazer-se escutar. Estava posto um discurso de projeção internacional sobre o PEZP, pelo qual se reconhecia a sua ação alfabetizadora, como se constata na seguinte citação:

[...] um Estado da região nordestina (Paraíba), cuja metade da população era analfabeta, em especial, nas zonas rurais, de onde são oriundos grande parte dos operários da indústria da construção civil; a atuação do sindicato da categoria (SINTRICOM) ao encabeçar uma campanha de alfabetização de seus membros, somando forças com a Universidade Federal da Paraíba,

implanta salas de aulas no próprio ambiente de trabalho destes operários da construção civil; a utilização de estudantes universitários como professores de leitura e de escrita elementar (alfabetização) e de disciplinas científicas, e; o êxito que obteve o referido sindicato e a equipe universitária com a mobilização de trabalhadores-operários da construção civil é uma prova de que a determinação constitui um fator crucial no sucesso de qualquer esforço de alfabetização de adultos (UNESCO, 1997, p. 34).

Estes enunciados reconhecem a ação alfabetizadora do PEZP como uma das mais importantes no combate ao analfabetismo no estado da Paraíba que, segundo o PNAD, de 1998, desenhava o seguinte quadro: taxa nacional de analfabetismo de 13,8%; da Região Nordeste, de 27,5%, e do estado da Paraíba, com 28,7% de sua população, de 15 anos ou mais, por gênero e raça (PNAD, 1998)71. Esses dados reforçam o efeito de sentido e a existência do PEZP como experiência que tende a contribuir para o processo de escolarização/alfabetização do operário da construção civil, pois, por ser, em sua maioria de origem rural, tal condição reforça ainda mais o fenômeno do analfabetismo nesta indústria.

Outro dado que provoca também efeito de sentido, tanto internacionalmente, como nacional e local, e posiciona o PEZP na condição de acontecimento discursivo, são as produções acadêmicas (artigos, monografias de graduação e especialização, dissertações e trabalhos apresentados em eventos). São informações referentes tanto a origem do grupo