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CAPÍTULO I Estatuto e conteúdo do juízo estético puro

2. Os objetos da arte e o objeto da complacência da beleza

2.2. Limites de um sistema do juízo de gosto

Parece haver um descompasso entre o que os artistas fazem ao impregnar formalmente uma matéria e a subjetividade reflexiva enunciada por Kant. O estatuto da beleza precisa ainda dirimir certas contradições entre sua exigência inexponível e a constante necessidade do artista em materializar uma obra.

Kant sugere que pratiquemos um ato de esvanecimento27 sistemático da

referência ao objeto de arte, o que contudo não parece ser, intuitivamente, algo que a história da arte venha a contemplar. Quando imaginamos que um objeto de arte possa vir a guardar uma ‘mensagem’, ou mesmo um conteúdo em sua forma, Kant propõe que isto, a que artistas e críticos procuravam arduamente, se encontrava o tempo todo em uma legalidade subjetiva. Ou seja, esta inscrição misteriosa só poderia ser decifrada se decifrassem a essência do próprio juízo de gosto.

Alguns comentadores se empenharam, não pela mesma problemática que expomos, em desvendar sob termos semânticos e sintáticos o juízo estético puro. A motivação destes pesquisadores parece de cunho reativo a trabalhos da filosofia analítica. Mas se temos que compreender de que modo o juízo estético possa carregar

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O esvanecimento é a mudança gradual, ao longo de repetições sucessivas, de um estímulo que controla a resposta, de maneira que a resposta eventualmente ocorre diante de um estímulo parcialmente modificado ou completamente novo. (Deitz & Malone: 1985)

algum conteúdo, de acordo com a filosofia kantiana, só poderíamos compreender este conteúdo a partir da operação reflexiva do juízo estético. E é neste sentido que lançamos mão destas investigações:

A estranheza dos juízo de gosto vem desse “como se”, que transforma “belo” em um quase-predicado. Kant trata do mesmo assunto num outro trecho, onde diz que, num juízo estético, o “sentimento de prazer (ou desprazer)”, que acompanha a representação (percepção) do objeto, “faz as vezes do predicado [statt Prädicats dient].” (Loparic 2001:12)

Segundo Loparic, esta característica cíclica não impossibilitaria o juízo estético de possuir denotação e sentido, dado sua definição deste juízo: “representações perceptivas das formas de objetos sensíveis ligadas a priori a sensações ou sentimentos de comprazimento e de desprazimento desinteressados.” (Loparic 2001). O que está sendo denotado, segundo o autor, é a própria operação da reflexão ligada ao intuído, porém de modo desinteressado, e seu sentido é propriamente o sentimento que depreende de tal operação.

Antes de prosseguirmos temos que destacar o caráter especulativo do projeto de Loparic, pois que alicerçado em um princípio descartado por Kant para o caso do juízo de gosto em geral. No parágrafo §37 a relação entre o juízo de gosto e o objeto, e mesmo qualquer relação semântica está expressamente definida:

O fato de que a representação de um objeto seja ligada imediatamente a um prazer somente pode ser percebido internamente e, se não se quisesse denotar nada além disso, forneceria um simples juízo empírico. (CFJ:149)

No juízo de gosto, portanto, a representação é tão somente o prazer, e não denota mais nada que este sentimento interno, enquanto um juízo de gosto.

De toda forma o objeto ocupa um lugar muito desconfortável na teoria kantiana e inevitavelmente provoca contradições em sua definição. Qual a justificativa da ligação a priori da ‘forma de um objeto sensível’ a um ‘sentimento’ que não seja a própria forma do objeto intuído mas justamente o ‘desinteresse’ dele?

A insistência que vemos em Loparic de querer ligar denotativamente o juízo da beleza insere-se nesta problemática. Pois porque querer reatar um resquício do intuído quando ele é justamente o que Kant parece querer subtrair?

Uma solução bem mais razoável para montar esta problemática, que se esbarra em Kant sempre que ele pretende definir o estético a furtar-se do objeto, encontra-se

nesta passagem de Türcke:

O que Kant chama de gosto reflexivo não passa do gosto sensorial que cresceu além de si mesmo e sublimou-se: não é um estado natural, mas um estado altamente artificial do sensorium humano. Estão excluídos todos os que não dispõem de uma oportunidade para cultivar os seus sentidos [...] O ponto frágil de Kant está no fato dele reconhecer erroneamente nesse gosto reflexivo uma disposição natural dos homens, existente à parte. Seu ponto forte, no fato de que ele vê, graças a esse equívoco, luzir algo no privilégio social que cabe a todas as pessoas. (Türcke 1999:82)

Seu ponto de vista perfaz mesmo uma genealogia do próprio juízo de gosto. Türcke indica que o gosto reflexivo não é mais do que o produto de uma cultura situada em um momento histórico, ao mesmo tempo em que este produziu um tipo específico de gosto sensorial. Neste sentido não é sem propósito que Kant se refere sempre a um objeto quando quer justamente abrir mão dele, Kant denega, pois que a educação do gosto prega justamente este exercício.

Resta ver se este tipo de exercício justificaria um estatuto que em seu modelo prega uma necessidade de desinteresse de modo a priori. Pois o ato de retirar referências objetivas de um objeto poderia ser igualmente explicado enquanto ato lógico da abstração.

Porém, se pretendemos caracterizar o prazer enquanto sentido semântico de algo, como quer Loparic, e descolar ele da própria percepção de um livre jogo das faculdades fazendo este jogo de ‘objeto’ denotado, então restam ainda mais questões a tratar.

A análise semântica de Loparic não faz mais do que por em termos diferentes a mesma questão que movia Lyotard, que, de acordo com ele, estatuto e conteúdo se identificam. A denotação pensada por Loparic faz criar um círculo, do estatuto reflexivo orientado para a intuição em um esquematismo, sendo este o verdadeiro objeto da complacência pura da beleza. Neste sentido, mesmo que seja duvidoso reconhecer tal processo como algo denotável, ele não é capaz de mostrar o motivo porque a beleza é sacada de tal processo, do porque a beleza poder se referenciar a um processo e não a um objeto.

Esta ligação com o sentimento de prazer, pensa Vieira, não segue nenhum padrão já apresentado por Kant.

Mas isto não está por sua vez assegurado de antemão, pois não se pode distinguir, no nível fenomenológico, “deleite”, “comprazimento” e

“aprovação” – para fazer uso da terminologia proposta por Kant no §5. As diferenças entre estas três espécies de prazer só fazem sentido através de uma referência a determinadas relações entre as faculdades cognitivas que não se faz presente quando pretendemos simplesmente julgar a beleza. (Vieira 2003: 66)

É justamente este o ponto. Diante da falta de componentes essenciais para uma interpretação lógico/lingüística em um modelo denotativo, o sentimento da beleza assim como postulado por Kant, faz dispensar um modo de hipotipose seja esquemática ou simbólica, sendo sua exibição justamente um sentimento condicionado transcendentalmente que, contudo, parece difícil vir a levantar uma prova e mesmo aplicação desta estrutura em uma experiência que poderíamos colocar em evidência.

Se a estrutura do juízo da beleza não aponta para nada a não ser a própria atividade subjetiva fugindo de definições conceituais, a reflexão e seu caráter cíclico e tautológico concorrem, a nosso ver, em uma direção também contrária a qualquer relação semântica. Não é sem propósito que Lyotard classifica de ‘pausa’ o que se passa com o sujeito que contempla a beleza. Kant mesmo parece não ter dado importância em fundamentar uma hipotipose para a beleza.

Parece que o limite para uma arte que tenha como objetivo sacar uma experiência inexponível, acaba por afastar qualidades possíveis a esta experiência e se atém em um sentimento, acompanhando Lyotard, de suspensão de todas as faculdades, uma pausa em favor de um gosto puro, subjetivamente encerrado.

Torna-se assim impossível que esta experiência da beleza nos diga algo, denote ou se imponha à realidade. Se a teoria estética kantiana pôde inspirar novas formas artísticas, como quer dizer Rufinoni (2010) foi justamente por uma teoria nada impositiva em seu sentido lógico, porém, verificamos, altamente restritiva quanto a postura do espectador.

Há portanto duas facetas do juízo da beleza, uma implicando a autonomia do juízo, e outra implicando uma nulidade do processo consciente do sujeito no que Lyotard caracteriza como pausa.

Ativemo-nos aqui em possibilidades de inferências e deduções que o trabalho kantiano viria a permitir. Nossa estratégia quer que princípios teóricos estabelecidos no trabalho de Kant e dos comentadores deixem-nos um leque aberto de possibilidades para compreendermos o que se passa em uma experiência musical concreta, para então pensar um modelo epistemológico para esta atividade.