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CAPÍTULO I Estatuto e conteúdo do juízo estético puro

1. O juízo estético

1.1. O estatuto do juízo da beleza

1.1.1. O conteúdo expresso no juízo da beleza

Já sabemos de antemão que o conteúdo expresso no estatuto do juízo estético puro é o próprio sentimento da beleza. Mas em que consiste este sentimento e como se relaciona aos demais conteúdos de nossa Gemüt veremos neste tópico.

Comecemos por relacionar este conteúdo da beleza com o objeto real, fático. O

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Este caráter negativo do estatuto indica mesmo o processo de não subsunção, que embora não seja processo algum, se destaca de outros estatutos justamente por especificamente se voltar para a conformidade a fins reflexionantemente, sem contudo encontrar um conceito.

princípio do desinteresse já havia afastado do juízo da beleza uma forma contundente de participação de uma objetividade, mas colocamos ainda duas questões a respeito desta relação:

1) A exclusão de toda e qualquer objetividade do juízo da beleza, no intuito de salvaguardar o prazer da beleza do prazer do agrado, deixaria o objeto como um resíduo incognoscível da operação?

2) A forma do objeto acarretaria algum vínculo especial para o conteúdo da beleza?

Para a segunda questão é possível pensar uma resposta em Kant. Temos no conceito de ‘aderência’ uma possibilidade de participação da forma do objeto (conceito) enquanto componente de um juízo de gosto. No caso das artes belas (§44) conceitos presentes na obra nos disporiam a ideias estéticas, e estas a um componente de sociabilidade e cultura inesperado.20 Mas a rigor o que é ajuizado como belo não

pode ser computado à forma do objeto.

Esta aderência funcionaria no sentido de possibilitar um contexto amplo de cultura: "Portanto, enquanto um puro e livre julgamento de gosto meramente aprecia [assesses] a harmonia da imaginação e do entendimento, o juízo sobre a beleza aderente promove a cultura dos poderes mentais [§ 44 (306)]" (Wetherston: 1996:58). A aderência conceitual acaba exercendo este alargamento conceitual promovendo laços culturais. Já o traço epistemológico correspondente à aderência estaria demarcado pela consecução de idéias estéticas (CFJ:192,193), fundamentada na faculdade da imaginação produtiva (CFJ:193). O contexto destas funções surge de uma seqüência de argumentação em prol da arte bela, que se inicia no parágrafo §44 e tem seu fim no parágrafo §51, dentro da seção da dedução.

Como parece ser uma constante na terceira Crítica, mais paradoxos e formas paradoxais se colocam: “pode-se em geral denominar a beleza (quer ela seja beleza da natureza ou da arte) a expressão de ideias estéticas, só que na arte bela esta idéia tem que ser ocasionada por um conceito do objeto;” (CFJ: 204)

Aqui se faz necessário uma equalização dos quatro momentos da analítica. Pois, se a beleza implicar necessariamente em idéias estéticas, não haverá motivos para que Kant não as incluíssem no estatuto do juízo da beleza. Porém, este conceito aparece agora na dedução e implica que o estatuto que exclui a ação conceitual diga respeito às belezas da natureza, enquanto que a arte seria bela apenas quando implicasse

aderência em seu objeto.

Nossa pergunta ainda não foi respondida. Mesmo encerrando conceitos, de que modo estes se ligariam a uma idéia estética e configurariam um laço, um vínculo necessário entre um dado objetivo e o sentimento da beleza?

Antes de responder a esta questão temos que estabelecer, antes de tudo, que a arte bela, segundo Kant, é aquela que abre uma concessão em prol de uma “representação da faculdade de imaginação que dá muito a pensar” (CFJ:162,163). A idéia estética possui um estatuto ao qual entraremos em detalhes mais a frente, por enquanto podemos apenas apontar que a idéia estética é fruto de uma ação igualmente reflexionante e por isto, ela mesma, não é determinante.

Porém, é de se supor que a idéia estética, estando restringida mesmo que minoritariamente por um conceito do objeto, difira daquele juízo puro que não se liga a um conceito de modo algum. Contudo não encontramos nenhuma literatura ou passagem em Kant que especificasse a relação das ideias estéticas com a aderência, e desses com o esquematismo em geral ou o estatuto estético, o que temos seria algo como a expressão, ‘dá a pensar’.

De todo modo, o juízo da beleza, seja para uma arte bela, uma beleza livre, ou beleza pura, alicerça-se em um sentimento. O conteúdo, mesmo no caso de uma idéia estética, é um sentimento prazeroso.

Esta sutilidade inscrita na idéia estética, embora faça gravitar alguma conceitualidade na arte bela, possui a mesma forma da reflexividade do juízo puro, impossibilitando a apreensão de uma objetividade, assim mostra Silke Kapp: “Um juízo estético não envolve conceitos e, ao mesmo tempo, a conformidade objetiva a fins não pode ser percebida, apenas deduzida a partir de um conhecimento” (Kapp 1998: 254).

De todo modo parece ser justo dividirmos o juízo da beleza entre aderente (aplicado à arte bela), e puro (aplicado a objetos da natureza): “[...] na natureza bela, porém, a simples reflexão sobre uma intuição dada, sem conceito do que o objeto deva ser, é suficiente para despertar e comunicar a idéia da qual aquele objeto é considerado expressão” (CFJ:204). A referência desta experiência com a natureza é tão importante para Kant que toda a arte bela – obra do gênio – é aquela capaz de se ‘passar por natureza’ (CFJ:180).

No caso musical Kant reserva pouco espaço para a aderência, pouco espaço para a idéia estética e pouco espaço para a beleza, ficando assim na fronteira de um mero

agrado21. Porém, isto que é um acessório empírico, a aderência, apenas reforça o livre

jogo, e continua sem expressar um conteúdo, ou pelo menos, o conteúdo é sempre o mesmo, o sentimento da beleza.

Loparic aponta para uma interpretação diversa onde seria possível, mesmo estando impossibilitado a distinção da beleza no nível do prazer, pelo menos torná-la indelével por sua referencia reflexiva, enquanto consciente de produzir idéias estéticas. Esta referência poderia ser decisiva no estabelecimento de uma distinção entre o prazer do agrado do prazer da beleza, em nível fenomenológico.

O sentimento estético resulta da ‘representação refletida’ do objeto sensível, isto é, da reflexão sobre a forma do objeto dado numa representação perspectiva (percepção) que constata ser essa representação ligada ao comprazimento ou desprazimento desinteressados. (Loparic 2001:13)

A resposta de nossa segunda questão (a primeira permanece ainda em aberto) parece estar ainda impedida, o juízo estético não poderia se referir a um objeto (CFJ:30), e no excerto de Loparic a ‘representação refletida’ estaria apenas referida ao próprio ato de reflexionar, não criando uma correspondência material com o objeto.

A percepção cumpriria apenas um papel de prover a imaginação de um montante de dados, ou seja, seria o combustível do processo que contudo não contaria mais com suas características no sentido de promover determinações deste material.

Strito sensu, nenhuma representação do objeto, em qualquer sentido, pode ser

reivindicada na experiência da beleza. O que é incluído no caso das idéias estéticas são montantes conceituais que se inserem no esquematismo e ali perdem sua referência objetiva e passam igualmente a reflexionar, ou seja, procuram uma regra para o todo da experiência sem a ter finalizado.

O trecho de Loparic permanece ainda indeterminado, pois uma representação refletida seria uma representação auto-consciênte, e necessitaria de uma ação da apercepção que provavelmente se afastaria do estatuto da beleza (veremos no próximo capítulo). Em todos os casos, optamos, contrariamente a Loparic, em interpretar o sentimento da beleza enquanto o conteúdo da experiência estética pura para Kant, onde a única diferenciação, mesmo que indelével, parece correr entre o fenômeno do ‘dar a pensar’ do juízo da arte bela, e da pureza do juízo para o caso do juízo da beleza da natureza.

Contudo, o conteúdo do juízo da beleza constando apenas como um sentimento

subjetivo puro parece ser pouco palpável para o contexto de uma descrição que pretende erigir um modelo epistemológico musical.

Parece que uma possibilidade pelo menos mais aberta a uma análise estaria em focarmo-nos apenas no juízo da beleza enquanto jogo. Romero Freitas entende que a falta de propositividade do juízo da beleza é devido ao jogo das faculdades, e assim a falta de referência a um objeto – interpretamos – seria substituída, de um foco objetivo para o foco de uma atividade subjetiva:

Pode-se dizer que o juízo de gosto é pensado como mera atividade de ajuizamento, ou seja, como ato sensível da faculdade do juízo. O juízo de gosto não constitui uma proposição. Ele exprime apenas, ou melhor, ele é apenas a relação entre as faculdades do sujeito e um objeto natural [...] Por isto, pode-se supor que o que lhe dá um conteúdo específico é a idéia de jogo. (Freitas, R. 1998:155)

Ainda assim não se resolve de que modo este estatuto em jogo depreende ou se identifica com o sentimento da beleza. E mesmo não encontramos em Kant como o montante sensível desencadeia um jogo e como somos capazes de nos evadir intencionalmente da referencia do objeto, pois que até onde vimos, Kant parece mostrar que o desinteresse se atrela necessariamente ao processo transcendental do juízo reflexionante. O conteúdo estético não pode ser a ‘idéia de um jogo’, mas tão somente o próprio jogo, ou, aquilo que depreende deste jogo, como parecia deixar transparecer a analítica do belo.

Ficam assim nossas duas questões deste subtópico sem resposta. A seqüência dos demais tópicos carrega esta problemática e as colocam sob outros temas relacionados. O mais importante nestas perguntas é buscar estabelecer os limites do estatuto da beleza descrito por Kant.