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CAPÍTULO I Estatuto e conteúdo do juízo estético puro

3. A divisão entre lógica e estética implicada na separação entre

3.1. O ponto de cisão entre o lógico e o estético representado pelo

A diferença entre a causa da natureza enquanto um problema da razão e a causa do objeto de arte enquanto se liga diretamente a uma intenção, já demonstra como a arte não encerra os problemas presentes na natureza e ao mesmo tempo tem como objetivo, segundo Kant, espelhar características que só são realmente livres na natureza, a saber: que a “finalidade técnica se faz gratuita (contingências despojadas de fins técnicos)” pois que para um estado puro do gosto a arte teria que “dar lugar a produtos que pareçam contingentes” (Campos 1998:105).

É neste sentido que Kant desmerece a intencionalidade imposta matematicamente para a forma musical; “a matemática não tem certamente a mínima participação” (CFJ:220). Uma forma musical matematicamente composta conteria somente regularidades, e não seria capaz de tomar a forma contingencial que a arte

deveria expressar para conseguir sair do âmbito determinante, a abrir espaço para uma função reflexiva do juízo. Expressando tão somente uma transitoriedade das sensações a partir de um princípio regulado matematicamente, gerando a repetição e tornando a música ainda mais suscetível ao enfado (CFJ:221).

Esta crítica à transitoriedade que tanto influencia a decisão de Kant sobre a música, aponta para a deficiência maior da concepção kantiana do musical:

A estética musical kantiana enferma de uma concepção demasiado estreita da função do tempo na música, numa arte que ele concebe simplesmente “transitória”, como incessantemente evanescente, em vez de reconhecer que também acontecimentos no tempo se podem consolidar em configurações. (Dahlhaus apud Duarte 1998:145)

Mas, caso excluíssemos estas questões polêmicas de Kant com a música e a incluíssemos no Hall das artes belas, isto não auxiliaria ainda nosso propósito, visto que o estatuto epistemológico do juízo de gosto parece excluir toda uma dimensão impressa nos objetos, e por decorrência, nos musicais. A relação entre o objeto e a experiência artística e por decorrência entre o lógico e o estético, o que chamamos de cláusula pétrea, delineia-se a partir de uma reflexão de Kant no parágrafo §9 Se no

juízo de gosto o sentimento de prazer precede o ajuizamento do objeto ou vice-versa.

Lyotard havia nos mostrado como o juízo reflexionante incidindo sobre as faculdades em livre jogo ajuizava ao mesmo tempo um prazer da beleza e sua própria ação reflexiva. Bayer por sua vez localiza uma questão crucial ao parágrafo §9: “o prazer e o juízo, em vez de se sucederem ou se precederem mutuamente, dão-se ao mesmo tempo, o que é absolutamente contrário às leis do tempo.” (Bayer apud Passos 1998:139). Dado esta concomitância que já havíamos identificado, a beleza configura um caso sui generis em vista de toda a estrutura transcendental:

Este estado de um jogo livre das faculdades de conhecimento em uma representação, pela qual um objeto é dado, tem que poder comunicar-se universalmente; porque o conhecimento como determinação do objeto, com o qual determinações dadas (seja em que sujeito for) devem concordar, é o único modo de representação que vale para qualquer um. (CFJ: 28)

A precedência do objeto é condição comum à faculdade de conhecimento, e por isto uma condição necessária da universalidade para qualquer juízo. Esta estrutura do conhecimento em geral é somente uma estrutura e não uma função sendo exercida, não é um estatuto, mas um ‘ambiente lógico’.

Este ajuizamento simplesmente subjetivo (estético) do objeto ou da representação, pelo qual ele é dado, precede, pois, o prazer no mesmo objeto e é o fundamento deste prazer na harmonia das faculdades de conhecimento. (CFJ: 29).

É este o preciso momento do salto que qualificamos quanticamente. Segundo a citação, nossa Gemüt encontra-se totalmente ocupada por um procedimento esquemático, e neste preciso momento não reverte seu conteúdo para o entendimento, e de acordo com Kant, se insere numa precisa ordem do esquematismo, anterior ao regramento, e portanto, precede o objeto como também o prazer ligado a um objeto, ficando a referência ao objeto impossibilitada, “logo, aquela unidade subjetiva da relação somente pode fazer-se cognoscível através da sensação” (CFJ: 31).

O termo ‘sensação’ estaria para o estético assim como o conceitual para o lógico. Porém o modo como esta sensação é remetida para o núcleo da apercepção não se esclarece. Seria o caso de pensar em como uma sensação pode ser exibida mesmo não sendo remetida para uma autoconsciência, e aqui reside toda a problemática; a) a sensação se explicaria como uma ‘pausa’ de todas as faculdades, de todo nosso sistema transcendental, onde nem mesmo um juízo se opera mas só uma sensação, b) restaria ainda uma lacuna, compreender uma exibição para a sensação estética visto que esta não foi contemplada pela estrutura da apercepção na primeira Crítica, c) a possibilidade ‘a’ estaria descartada pois Kant afirma haver uma representação da sensação da beleza, ao mesmo tempo em que ‘b’ estaria dispensado visto que a intenção de Kant era se contrapor ao circuito da apercepção.

A condição para que uma sensação que não predica nada, de objeto algum, se exiba, é que se sobreponha às condições do regramento da apercepção, ou seja, a validade do modelo de juízo da beleza necessita passar por um crivo, de fazer a primeira Crítica ressoar por sobre a terceira Crítica:

Mas uma vez que entendimento é a síntese da capacidade de imaginação ligada à apercepção (KrV A119,150), e por isso, os conceitos puros do entendimento são regras da síntese do múltiplo à unidade originária da apercepção realizada pela capacidade de imaginação produtiva (KrV A127, 159), a exibição é um processo do entendimento apenas na medida em que ela segue as regras desse. Por outro lado, se a faculdade de julgar é a capacidade de subsumir sensações sob conceitos (KrV A132 B171, 142), é razoável supor que a exibição é função dessa faculdade somente na medida em que a subsunção implica a exibição do objeto do conceito na intuição (KU 25-6, 56;

Esta relação entre a sensação e a exibição de um conteúdo se torna crucial para compreendermos o estatuto do juízo da beleza, assim como suas implicações no contexto geral das faculdades, que se ocupam em sua totalidade na confecção de conhecimentos.

Uma análise musical – De Duve por motivos contrários acabou demonstrando o mesmo – não tem como partir de uma sensação desligada de um objeto. Se não há predicação não há o que se experienciar, e se há uma sensação sem predicação seria o caso de se falar em uma ‘sensação em si’, o que parece muito excêntrico mesmo ao sistema kantiano.

Faz-se necessário, diferente do caminho ‘idealista’ escolhido por Kant para a definição do juízo estético puro (CFJ: 254), verificar uma via ‘racionalista’ deste mesmo princípio, ou seja, pensar a ligação deste juízo com a objetividade da obra.

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Um modelo epistemológico musical deve levar em consideração, antes de qualquer coisa, a peculiaridade formal do objeto musical, que diz respeito não apenas ao aspecto acústico, mas sobretudo à sua constituição enquanto objeto da consciência.

Sua estrutura justificada para a arte bela parece não conciliar certas experiências com objetos musicais de modo a incluí-los no estatuto estético, ao mesmo tempo, cria um modelo teórico para o juízo da beleza que muito beira o tautológico, impossibilitando uma crítica ao nível do entendimento e da apercepção de modo geral. O aspecto cíclico do juízo reflexionante aliado ao caráter autônomo do juízo de gosto faz da beleza um aspecto estranho ao critério de qualquer prazer – “o cumprimento de uma intenção” (CFJ: XXXIX) - sendo impossível distinguir o prazer da beleza da operação do juízo de gosto puro, impossibilitando assim um acesso fenomenológico da estrutura sugerida.

Diante desta estrutura não parece haver nenhum vínculo necessário entre o que seja um objeto de arte e o que seja o juízo da beleza, haja visto que o critério para resguardar o âmbito artístico impõe um desinteresse radical, como vemos na conclusão do parágrafo §9. Sendo assim, aquilo que garantiria o acesso a uma sensação pura da beleza (objetos da natureza e da arte) acaba por ser desconsiderado neste estado puro. O que o juízo da beleza acaba fazendo, a contragosto de alguns preceitos que tenta resguardar, é inculcar algo como uma postura, uma postura que dá

acesso a um tipo de experiência que Kant confia ser um juízo de gosto puro.

A noção kantiana de que a beleza não pode ser predicada a nenhum objeto acaba por impedir, ou ao menos deixar obscura a relação que temos entre beleza e objeto de arte ou mesmo beleza e natureza, e torna sem critério a ligação entre estes objetos para uma relação exclusiva. Nesta mesma proporção, qualquer espécie de fenômeno que oferecesse material para a intuição poderia vir a esquematizar e então, por um motivo que desconhecemos, passar a reflexionar, podendo chegar a um sentimento da beleza, visto que este não será predicado do objeto em questão.

Uma estrutura divorciada do objeto, que não é capaz de criar ligações possíveis entre eles, ou ao menos algum tipo de causalidade, parece pouco hábil a descrever individualmente um campo como o musical, e aparenta gratuidade frente à quantidade de elementos que deixa escapar. Porém, rever o modelo implica, antes, em atermo-nos aos objetos, única porta de entrada, visto que não há qualquer acesso fenomenológico direto para o que Kant compreende enquanto beleza.