• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – Análise do estatuto musical

1. Os diversos modos em que podemos reivindicar conceitos

1.3. Objetividade e subjetividade musical

1.3.1. Relação espaço-temporal dos objetos

Um exame das relações espaço-temporais dos objetos não é mais que uma consideração a respeito do papel das intuições puras em um regramento categorial. As condicionantes categoriais são válidas para todo e qualquer conteúdo, assim como as intuições puras são para todo o intuído. Compreender as diferenças entre objetos da audição e da visão constitui uma diferença que se inscreve já na sensibilidade. As

42 “Uma peça musical assemelha-se, em alguns aspectos, a um álbum fotográfico, dispondo, sob

diferenças mais gerais entre eles reside nas disposições da sensibilidade para a caracterização de um esquema para estes fenômenos. Esta diferença é tradicionalmente compreendida pelo aspecto temporal que a música possui, algumas vezes classificada como ‘arte do tempo’.

De acordo com Kant o tempo e o espaço são condições de possibilidade da sensibilidade para todos os fenômenos. Neste sentido a sensibilidade não pode abster- se de aplicar intuições para qualquer fenômeno que se mostre ulteriormente determinado (CRP B 37). Resta verificar se há uma distribuição peculiar destas intuições puras para o objeto auditivo que se contraponha ao visual de modo a priori.

Vamos explorar alguns exemplos. Marcas visuais ou auditivas podem constituir índices, e assim um objeto pode ser representado tanto por uma marca visual como por uma marca sonora. Esta passagem do índice para o significado de um objeto é feita a partir de uma característica sensível que permita deduzir o objeto como um todo (Ex. o galopar do cavalo / uma pegada).

Para um caso simbólico, como o da linguagem, uma marca sonora ou visual da palavra não contém necessariamente qualquer referência ao objeto em questão, não se percebe qualquer peculiaridade neste sentido, e o caráter temporal parece pouco pertinente em sua identificação na leitura ou escuta. O resultante é o significado conceitual expresso por meio de signos, aquilo que a palavra indica.

No caso do ícone, as características do ‘som enquanto som’ parecem estar destacadas. Percebemos por exemplo no som do galope certo desenrolar no tempo, de características sonoras. Da mesma maneira em uma pegada percebemos certo formato impresso na terra, com certa profundidade. Neste caso a diferença entre o visto e o escutado se faz evidente conquanto suas peculiaridades espaciais e temporais.

A depender do tipo de determinação que se faz de uma matéria sensível - visual ou sonora - diferenças começam a se tornar mais relevantes. Michelle Grangaud nos deixa um interessante enigma: "Eu posso ouvir o que eu vejo: um piano, ou algumas folhas agitada pelo vento. Mas, eu nunca posso ver o que eu ouço." (apud Nancy 2007:10)

O enigma se monta apenas para o caso musical. Pois como ilustrado na figura subseqüente, um som, somente sonoro e não musical, pode remeter a um animal (assim brincamos com nossas crianças), e de modo contrário o pensamento ou a visão de um animal pode remeter a seu som.

claramente conceitual:

De que forma podemos pensar o objeto musical sob os conceitos de espaço e tempo?

Podemos, antes de tudo, esclarecer o sentido destes termos. Em um sentido, espaço e tempo tratam de intuições puras, são determinações transcendentais que atuam na constituição de um múltiplo da sensibilidade. Em outro sentido, usamos estes mesmos termos para nos referir a aspectos de uma experiência a posteriori.

No primeiro sentido, enquanto intuições puras, constituiria um contra-senso dizer de um objeto da experiência enquanto temporal ou espacial pois que as intuições puras são condições de possibilidade de um múltiplo, e o objeto, o resultado unitário de um entendimento: “pois a permanência do que é dado no espaço e no tempo não é ela mesma dada, e sim que só pode ser pensada, justamente por conceitos de objetos.” (Esteves 1996:16)

No segundo sentido, diante de um objeto constituído, podemos ressaltar certas características que costumamos predicar como ‘espaciais’ ou ‘temporais’. Aqui aparecessem como simples expressões, usadas em um sentido que não se coincide com o significado transcendental dos mesmos termos, apontam para notas materiais e suas disposições no objeto.

Em geral, estes dados espaciais e temporais costumam ser relacionados ao conceito de espaço aplicado na física (diversos espaços) e que Kant trabalhou ainda pré-criticamente na Dissertação (Parsons 2009:99):

Pois o que chamamos de diversos espaços não são senão partes de uma mesmo espaço imenso, as quais se correlacionam por certa posição, e não podemos conceber um pé cúbico senão como delimitado por todos os lados por um espaço circundante. (§ 15 B, 2:402)43

Para tratar das notas espaço-temporais em objetos, em sentido empírico, tomemos novamente o exemplo visual da imagem D. Este objeto contém um limite ‘no’ espaço, de onde podemos classificar suas dimensões e marcas em sua forma espacial. Ele contém também limites ‘no’ tempo, de onde podemos destacar sua perduração e movimento, sua forma temporal.

Quando diante de qualquer objeto podemos notar, por exemplo, que a luminosidade é constantemente alterada pela própria modificação do ambiente, pela posição que dispomos o objeto, pela mudança da posição da fonte de luz, pela permanência da luminosidade ou pela qualidade da luminosidade, se artificial ou

43

Para maiores detalhes sobre a relação entre a intuição pura do espaço e sua constituição transcendental não conceitual, e o conceito de espaço na física, ver Charles Parsons em A estética

natural. Em uma foto não há qualquer alteração do ambiente, e nossa posição não altera em nada a imagem do objeto, desde que este ainda se mantenha em nosso campo de visão. No objeto há uma teia de ligações causais que o fazem mais sujo, mais desgastado, entre outras alterações pelo tempo. Tal cadeia não procede no interior da imagem fotográfica.

A experiência da imagem da foto nos conduz a uma dedução: ela se encontra abstraída do ‘tempo’. Trata-se de uma metáfora, pois que o tempo é uma intuição pura e em verdade, em nossa observação, percebemos continuadamente a foto ‘correndo pelo tempo’. Estranhamente o objeto ali representado permanece estático na foto, o ‘tempo’ parece ter sido estancado. Caso este mesmo objeto tivesse sido filmado teríamos uma noção de ‘temporalidade’ embutida na imagem.

Detenhamo-nos ainda mais na foto, agora em seus aspectos espaciais. Estes estão demarcados pela profundidade (perspectiva), largura e altura, pelas notas distintivas de cor, traços e formas. Da mesma maneira em que todos estes dados se encontram ‘no espaço’, estão ao mesmo tempo perdurando em uma percepção ‘no tempo’. Em cada parte deste espaço vemos também um outro espaço e assim em diante, e, de modo geral, os aspectos espaciais e temporais não podem se dissociar, se excluírem ou mesmo não coexistirem em um objeto, por força de uma determinação a

priori.

É simplesmente impossível dissociar de uma experiência noções de espaço e de tempo. Seria incoerente com o princípio da sensibilidade pesar apenas sobre um aspecto, espacial ou temporal, para a constituição de um objeto da experiência. Toda constituição conceitual empírica necessita de uma constância no tempo para determinar o objeto enquanto o mesmo se insere espacialmente.

Ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos. Assim, o “antes” se torna “depois”, e o “depois” se torna o “antes”. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imaginística por ciclos. (Flusser 2002:7)

Em resumo, tanto a constância no tempo (simultaneidade dos elementos espaciais) quanto a mudança no tempo (a sucessão dos elementos espaciais) são igualmente aspectos intuitivos para todo fenômeno, ao mesmo tempo em que nossa própria forma de percepção de um objeto, do vaguear pela superfície, atua em sentido

a coadunar-se temporalmente ao espaço.

Esta reflexão, apesar de seu caráter fragmentário, claramente descreve um dos importantes resultados intermediários do argumento da Segunda Analogia: embora subjetivamente todas as percepções se sucedam no tempo, ainda assim tem de ser possível distinguir por meio delas o que é uma sucessão objetiva de estados, ou seja, uma mudança nos próprios objetos, e o que é apenas a apreensão sucessiva de um estado ou objeto que permanece objetivamente inalterado no tempo. (Marques 2010(b):130,131)

No caso do objeto musical não pode ser diferente. Tomemos o exemplo de

Jesu, rex admirabilis de Palestrina (Img. F).

Assim como o espaço visual, há também um espaço acústico abstrato determinado pela capacidade do respectivo órgão. A forma musical, a melodia e a escuta das funções harmônicas, são, as que mais facilmente indicam aspectos dispostos na categoria da quantidade (relações de freqüência e divisão proporcional das ocorrências) em uma exibição espacial, e assim, características que tradicionalmente pareciam mais afeitas ao tempo se mostram facilmente impregnadas de espaço. Do mesmo modo, características tradicionalmente afeitas ao espaço dão lugar a notas temporais.

O artigo de José Oscar Almeida Marques (2010 b) possui uma interessante análise sobre a Segunda Analogia da Experiência aplicada a eventos temporais na música. Sua intenção é aplicar critérios lógicos/causais de simultaneidade e sucessão para os casos musicais de acordes e melodia.

Marques indica que o tempo, em primeiro lugar, não é uma relação direta com a seqüência da percepção determinada pela coisa em si, mas como já indicamos trata- se de uma indexação44 de um múltiplo que não possui qualquer tipo de organização. A

tarefa de estabelecer uma ordem efetiva e objetiva é do conceito (Marques 2010(b):134).

A causalidade dos eventos sucessivos no tempo é um atributo do entendimento, e assim indica o exemplo kantiano do navio a subir pelo rio.

Assim, por exemplo, vejo um barco impelido pela corrente. A minha percepção de sua posição à jusante do curso do rio segue-se à percepção da sua montante e é impossível que, na apreensão deste fenômeno, o barco

44 Indicamos como indexação a síntese promovida pelas intuições puras sob a apreensão de um

diverso pela sensibilidade. No sentido deste diverso vir a conter, diferente de determinações, indexações de espaço e tempo sobre este diverso. Não há nenhum objeto, tão somente a agregação destas intuições puras sobre o diverso.

pudesse ser percebido primeiro a jusante e depois a montante da corrente. A ordem da seqüência das percepções na apreensão é pois aqui determinada, e a ela está sujeita a apreensão. (CRP B 237)

Esta é uma experiência que não pode ser interpretada de modo contrário sem que se altere a própria forma da determinação no tempo. Nenhum elemento pode ser intercambiado, pois é resultado de uma determinação causal temporal necessária. Para Marques, o mesmo sucede com a melodia. Sua sucessão obedece a uma ordem concreta, objetiva e necessária, onde não é possível intercambiar nenhum evento, com pena de se invalidar a relação causal e a realidade do objeto.

No caso do acorde, o modelo interpretativo kantiano passa a ser outro, e o exemplo análogo para o caso da simultaneidade é o da casa (CRP B 236,237). Neste caso a regra causal, que ligou uma seqüência melódica por um constrangimento lógico, não teria lugar. Para este caso da simultaneidade os elementos não disporiam de uma hierarquia temporal. É neste sentido que Marques indica que podemos nos dedicar a escuta de qualquer nota do acorde pois a ordem em que escutamos não dependeria de um constrangimento lógico, mas de nosso interesse: “[...] mas não há nenhuma implicação de que esta ordem esteja determinada por algo no próprio objeto, nem que as notas comecem a existir no momento em que as apreendo; assim esta ordem é puramente arbitrária [...]” (Marques 2010(b):135) 45.

Abrimos um parêntesis sobre a interpretação de Marques a introduzimos outras questões.

No momento em que Marques indica que no caso do acorde, como no caso da casa, temos um objeto exibido e podemos passar o olho ou o ouvido sobre suas características, à nossa escolha, destacamos também como esta mesma experiência – contraste temporal entre o acorde e a melodia – converte-se com facilidade em um caráter espacial.

45 Marques se interroga a respeito da possibilidade de se escutar um acorde sequencialmente,

mesmo enquanto simultaneidade, dado que a escuta ocidental se habituou a escutar uma só função entre notas fundidas, com a mesma imediaticidade que escutamos uma nota. Resolvemos este dilema mostrando que não apenas o acorde possui valor funcional, mas as notas melódicas também, porém estas agem com força e possibilidades diversas, dada pelas condições lógicas da experiência. É possível assim perceber seqüência tanto para a percepção de notas quanto no interior do acorde, e como Marques bem o demonstrou, no caso do acorde é passível de certo uso diferencial da causalidade de acordo com a possibilidade singular que se coloca. Estes dependem, além de fatores acústicos e do tipo de seqüência visada (seqüência de acordes), da estaticidade das notas simultâneas e da duração que dispomos para ‘variá-las’. Contudo, queremos ressaltar que uma simultaneidade estrita é dificilmente obtida, tanto em termos temporais cronometrados, como em uma experiência fenomenológica do acorde, que conta com uma hierarquia tonal. Para ouvidos treinados certamente os acordes tonais são inicialmente ouvidos a partir da fundamental.

Como Marques mesmo aponta, no acorde temos diante de nós uma faixa que vai do grave ao agudo onde podemos dispor nossa atenção, ou seja, um caso onde a organização não seqüencial nos faz perceber a relação espacial da ‘disposição’ das notas no espectro sonoro. As notas do acorde estando agrupadas em um mesmo momento chamam a atenção de Marques, e dizemos que é justamente porque ali o caráter espacial fica evidente.

Se por um lado não há uma hierarquia seqüencial que constranja as notas, não se pode dizer que elas se coloquem não-hierárquicamente, como Marques parece querer sugerir. Todas as notas do acorde se alinham em termos funcionais, sobretudo para o caso da música tonal. É comum também que haja uma nota melódica no próprio acorde. Neste caso a nota melódica pode ao mesmo tempo conter um caráter seqüencial e um simultâneo. Assim também com o acorde, se tomado independentemente ou como parte de uma progressão.

Seguindo o mesmo princípio da sensibilidade, válido para qualquer objeto empírico, a melodia não pode ser compreendida enquanto temporal ignorando-se o espacial46. Uma sucessão temporal de notas inscreve-se necessariamente em uma

localidade do espectro sonoro, porém, sem sucessão e sem espacialidade (extensão) não seria possível identificarmos algo enquanto melódico. Em uma sucessão melódica temos que perceber não apenas sucessão temporal mas também mudanças de graus (CRP B 210-213).

Em Jesu, rex admirabilis (Img. F) temos em um primeiro momento uma homogeneidade rítmica e uma continuidade melódica. Isto segue até o oitavo compasso, onde uma voz, a mais aguda, passa a ser sustentada. Neste momento as demais vozes começam a depreender-se e se tornam mais independentes.

No momento em que as vozes se desprendem, cada qual com suas notas rítmicas, podemos dizer que o evento ocorrido foi de caráter espacial ou temporal?

Como não estamos tratando de intuições puras, os termos espacial e temporal preenchem uma série de características, e não apenas uma. Um detalhe melódico pode dizer respeito a questão temporal, mas a melodia como um todo obedece às determinações espaciais e temporais, assim como qualquer elemento empírico.

Questões tais como: seria o ritmo uma organização do tempo, ou uma delimitação do espaço?, não compreendem o aspecto transcendental ou lógico dos

46 “Todos os fenômenos contem, quanto à forma, uma intuição no espaço e no tempo, que é o

termos espaço e tempo.

Contudo, a antiga identificação da música como a arte do tempo não contempla uma observação atenta do fenômeno musical, ou de seu fundamento transcendental. Tal definição tende a ser simplesmente metafórica se não aponta para aspectos e notas matérias contidas nestes objetos.

Naquilo que é imediatamente pertinente ao nosso trabalho concluímos que tanto objetos sonoros, musicais e visuais partilham de caracteres espaço-temporais de modo necessário.

2. Análise lógico-musical: correspondência transcendental entre os