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PARTE 2 – À VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO SOCIAL

2.3. A CONSTITUIÇÃO SOCIAL E A LIBERDADE DO LEGISLADOR

Os limites e condicionamentos impostos ao legislador podem advir de diversas formas. As primeiras Constituições, porém, devido à ideologia liberal que as permearam, caracterizada por uma menor intervenção estatal, não continham comandos condicionando ou limitando a atuação material do legislador e praticamente se resumiam à declaração de direitos fundamentais e às normas organizacionais.258 Por tal razão, eram vistas apenas em seu sentido de

determinações negativas (estabelecimento de limites), cumprindo uma função garantista nos moldes “foshthoffianos”. 259

Devido sobretudo ao movimento sócio-político que, diante do desenvolvimento econômico, passou a exigir do Estado maior atuação “prestacional” como forma de realização da justiça social260, as ordens

constitucionais passaram a incorporar, especialmente a partir do fim da segunda guerra mundial, normas de direitos sociais. Esse novo constitucionalismo converteu parte da liberdade do legislador em “dirigismo”, relegando a ele um papel complementar.261

Tais "Constituições sociais", por sua vez, ao incorporarem direitos sociais, normas de estruturas diversas daquelas que apenas estabelecem limites, pois exigem não apenas uma conduta omissiva, mas também ou apenas comissiva de seu destinatário, passam a exigir uma nova estrutura, como condição de eficácia de sua própria normatividade.

Devido à necessidade de garantir efetividade às normas de direitos sociais, as Constituições sociais passaram a criar imposições legislativas ou condicionamentos positivos para atuação do legislador, voltados à concretização desses direitos. Em alguns casos, a adoção de tais imposições foi uma forma de conter os arroubos dos movimentos sociais que lutavam pela previsão direta no texto constitucional de alguns direitos sociais prestacionais, contemplando-os

258 Observe-se que a tese corrente de que tais Constituições seriam extremamente sintéticas e que,

por tal razão, não conteriam tais comandos não se universaliza. A Constituição francesa de 1795,

v.g., possuía mais de 400 artigos. Além disso, a síntese da Constituição federal americana, sempre

apontada como exemplo da característica abreviada das Constituições liberais, também se deve ao seu contexto federal, e às poucas atribuições conferidas à União.

259 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., 1994, p. 82 et seq.

260 Cf. AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo, 11.ed. São Paulo: Malheiros,

1996, pp. 116-7.

261 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional: teoria da constituição em tempo de

indiretamente, como se deu com as Constituições mexicana de 1917 e de Weimar de 1919,262 bem como com a posterior Constituição italiana de 1947.263

Nesse novo constitucionalismo, que se inicia, sobretudo, a partir do início do século XX, a incorporação dos direitos sociais no texto constitucional se fez de duas formas: pela inserção de normas-garantia, com o conteúdo necessário para sua autoexecutabilidade pelos poderes constituídos e consagradoras de direitos subjetivos, por um lado, e, por outro, mediante imposições constitucionais ao legislador para regulamentação de direitos sociais, em especial os de caráter prestacional.

Tais imposições constitucionais criam ao legislador um campo de atuação discricionária e um campo de atuação vinculada. Neste, o legislador deve respeitar o núcleo essencial do direito constitucionalmente consagrado. Essencial é aquele elemento ou conjunto de elementos absolutamente necessários para a existência do direito em si. Quando a Constituição assegura o direito à saúde, impondo ao legislador a criação de um sistema universal de saúde, a existência desse sistema é o núcleo essencial. A mera previsão de existência do sistema per si não tem o condão de atender a tal imposição, razão pela qual a existência de recursos financeiros e dotação orçamentária para manutenção do sistema também constitui o núcleo essencial. A forma, estrutura, quantidade e qualidade do sistema criado, por outro lado, não integram esse núcleo essencial, mas pertencem ao que pode ser chamado de "campo discricionário do legislador".

A par disso, a incorporação de direitos sociais detalhados no texto constitucional enfrentaria óbices - já previsíveis - decorrentes da rigidez constitucional. Mais flexível e, portanto, em melhor condição de dar resposta rápida às necessidades impostas pela dinâmica social e econômica, o poder legislativo se mostra tanto quanto ou mais importante para manutenção do equilíbrio político-constitucional num Estado social que num Estado liberal.

Nesse aspeto, o legislador assume um papel complementar do constituinte. Por essa razão, observa Jorge Reis Novais que a supremacia constitucional no Estado contemporâneo não pode desconsiderar tal função do

262 Cf. HELÚ, Jorge Sayeg. El constitucionalismo social mexicano: la integración constitucional de

México (1808-1988). México: Fondo de Cultura Económica, 1991, p. 605 et seq.

263 Cf. CRISAFULLI, Vezio. La costituzione e le sue disposizioni di principio. MIlano: Dott. A. Giuffrè

legislador, sobretudo em realidades constitucionais como a brasileira e a portuguesa, que possuem tais normas de direitos sociais dotadas de alto grau de indeterminabilidade, hipótese em que a efetividade da proteção jusfundamental depende decisivamente do poder legislativo.264

Na mesma linha do que defende Canotilho, a Constituição dirigente, ou a Constituição social, requer, sim, um novo paradigma teórico para sua compreensão.265

Deveras, as técnicas utilizadas para se interpretar a Constituição, mesmo as mais recentes, como as que propõem formas de atuar um processo de ponderação de valores que conferem substrato a normas em conflito, não foram desenvolvidas - e sequer são aplicáveis - a hipóteses de normas programáticas, que caracteriza parte das normas de direitos sociais.

As teorias clássicas da tripartição de poderes, inclusive, foram formuladas com a preocupação em dar equilíbrio aos poderes legislativo, administrativo e jurisdicional, mas não se preocuparam com a existência de um poder que lhes fosse superior - como o poder constituinte.

Não por acaso, os Estados Unidos, cerca de apenas 20 anos depois da promulgação de sua Constituição, deparou-se com um problema que decorreria dessa "omissão histórica dos teorizadores da separação dos poderes" - o caso "Marbury contra Madison", em que se reconheceu a supremacia da Constituição sobre os atos dos poderes constituídos.

Embora essa Constituição liberal garantista tenha sido substituída pela Constituição social programática e a despeito da prevalência da tese do caráter normativo da Constituição, não houve, quer no plano positivo, quer no plano doutrinário hermenêutico, qualquer inovação relevante que solucione o problema da efetividade de normas constitucionais programáticas, apresentando a doutrina as mesmas teorias de interpretação sistemática de cunho positivista voltadas à sanção pelo descumprimento de comandos comissivos ou deveres de abstenção de conduta por parte de agentes públicos. 266

264 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais: teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos

fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 159.

265 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional..., cit. p. 64.

266 Mantém-se, assim, o paradigma constitucional da "dominância do negativo", na perspectiva

sociológica luhmanniana, segundo a qual as constituições do Estado de direito se caracterizam pela convergência de prestações negativas, não admitindo o autor que possuam uma função de

Não há, por outro lado, normas complementares nos textos das Constituições sociais que assegurem tal efetividade. O que se viu foram normas de direitos sociais "enxertadas" em textos de uma Constituição liberal. O grande problema desse "retalho" constitucional está justamente no elemento que confere efetividade a normas com estruturas diversas, como as normas programáticas, que requerem uma densificação normativa, a cargo dos poderes constituídos.

Para se efetivarem, deve o direito - no caso a própria Constituição - prever mecanismos de sanção para a omissão desses poderes no dever de complementação da Constituição. Dentre tais mecanismos, poder-se-ia adotar desde multas individuais pela omissão, até a perda do cargo por decisão judicial, ou por instrumentos como o recall.

A CRFB-88, v.g., adotou um modelo inovador nesse sentido: a figura do mandando de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Ambas as figuras, adotáveis respetivamente em sede de controle difuso e de controle concentrado de constitucionalidade, objetivam viabilizar o exercício de direitos e liberdades constitucionais, sempre que a falta de norma regulamentadora o impeça. No caso da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, prevê o artigo 103, §2º, da CRFB-88, que

declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo,

para fazê-lo em trinta dias.

Como se vê, o poder constituinte brasileiro de 1987, cujos membros ocupariam, em sua maioria, o poder constituído legislativo, não tiveram qualquer interesse em conferir isonomia de tratamento entre os poderes, uma vez que ao Poder Executivo é fixado prazo (de trinta dias) para solução da omissão normativa, ao passo que o texto nada diz a respeito do Poder Legislativo. A isonomia de tratamento entre os Poderes exigiria que, caso declarada a omissão, planejamento. De fato, em sua lógica, a Constituição é um mecanismo de redução de complexidade do sistema político e é sua normatividade que a transforma em um sistema, diferenciando-a do sistema político. Cf. LUHMANN, Niklas. Politische verfassungen im kontext des gesellschaftssystems. Der Staat, Berlin, v. 12, n. 1, pp. 1-22, 1973. Essa tese é oposta à sociedade aberta dos intérpretes proposta por Habërle, na medida em que nesta praticamente a política e o direito se confundem. Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2002.

devesse o Poder Legislativo apreciar a matéria em prazo máximo, como na hipótese de regime de urgência, mesmo tratamento conferido a medidas provisórias. Também poderia a determinação judicial dirigir-se ao Poder Executivo para que, tendo a competência de emissão de medidas provisórias em caso de relevância e urgência, suprir a omissão no mesmo prazo de trinta dias, cabendo ao Congresso Nacional o processamento da medida provisória, promovendo seu aperfeiçoamento e adequação.

No plano hermenêutico, todavia, a despeito do ceticismo em encontrar soluções jurisprudenciais que não firam o princípio democrático, como tem feito o Poder Judiciário brasileiro que, à falta de norma regulamentadora, supre ele mesmo a lacuna, atuando como legislador positivo, há que se concordar com Canotilho, no sentido de que "os problemas da constituição dirigente não podem ser equacionados se os arquétipos paradigmáticos continuarem a ser os do Estado Liberal e os da compreensão imperativística do direito."267