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O CONCEITO DE ESTADO SOCIAL E SUA PRETENSA NORMATIVIDADE A CONSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL E DE DIREITO E SUAS ESPECIFICIDADES

PARTE 2 – À VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO SOCIAL

2.2. O CONCEITO DE ESTADO SOCIAL E SUA PRETENSA NORMATIVIDADE A CONSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL E DE DIREITO E SUAS ESPECIFICIDADES

A rigor, as expressões ”Estado liberal” e “Estado social” preocupam-se com o grau de interferência do Estado na Economia. A par desses conceitos, encontra-se a noção já analisada de “Estado de direito”, caracterizada pela presença de elementos como limitação do poder político, existência de controle recíproco entre os Poderes, o império da lei e o direito subjetivo público.

A ideia em torno do Estado de direito encerra também variantes. Concebido formalmente, como analisado no capítulo anterior, o Estado de direito se transformava no Estado de mera legalidade - o Estado legal-, bastando que se garantisse a submissão de todos à lei, qualquer que fosse seu conteúdo. Em contraposição, desenvolveu-se outra ideia de Estado de direito, que considerava sua perspectiva material. Assim, não bastava a mera observância da lei, mas uma observância e conformação da lei e sua interpretação aos princípios norteadores do Estado de direito. Ter-se-ia um Estado de direito substancial. À medida em que se reconheceu a normatividade da Constituição e sua supremacia, o Estado de direito, formal ou substancialmente considerado, passou a ser concebido como Estado constitucional.

Por outro lado, se o Estado social foi a antítese do Estado liberal, a antítese do Estado de direito foi o Estado de não-direito preexistente, em que poder político era ilimitado e pouca ou nenhuma proteção era conferida aos indivíduos pelo direito, como o Estado absoluto. É impreciso, portanto, afirmar que o Estado autoritário seja oposto ao Estado de direito, pois o que caracteriza o primeiro é a origem do poder. Seu correlato antitético é, portanto, o Estado democrático (origem popular do poder).

Essa profusão de termos e conceitos gera controvérsia doutrinária, com maior ou menor repercussão prática. A primeira delas implica saber se o termo Estado social, que qualifica um tipo de Estado quanto ao grau de sua intervenção na Economia, pode ser sinônimo de Estado de direito.

Em primeiro lugar, convém reforçar a distinção entre Estado social e Estado socialista. Neste, especialmente numa perspectiva marxista e sob o viés meramente econômico, as necessidades básicas da coletividade são suportadas universalmente pelo Estado, como já referido algures, ao passo que no

Estado social a intensidade da intervenção estatal é menor, visando especialmente garantir o mínimo necessário à vida digna do indivíduo e à correção de desigualdades sociais. Numa perspectiva democrática, porém, pode-se estabelecer uma relação antitética também entre o Estado socialista e o Estado de direito, na medida em que este implicaria a democracia política, ao passo que o primeiro representaria também uma democracia econômica.252

No mesmo sentido, pode-se até empregar o termo "Estado democrático" isoladamente, para se contrapor à noção de "Estado autoritário", pois ambos de opõem quanto à origem do poder. Todavia, se a noção de Estado de direito encerra o princípio democrático, como resultado dos anseios iluministas e da consagração expressa nas declarações de direitos de participação do indivíduo na formação de vontade estatal, há um pleonasmo no uso da fórmula "Estado democrático de direito" ou "Estado de direito democrático".

Mas será que o mesmo se pode dizer em relação ao Estado social?

Uma posição mais radical, apegada à conceção formal de Estado de direito, encontra-se em Forsthoff, segundo o qual a expressão Estado social de direito encerraria uma contradição em termos, uma vez que o autor não admitiria a compatibilidade entre a noção meramente garantista do Estado de direito com a natureza prestacional (material) e perseguição da justiça social que caracterizaria o Estado social.253 Essa teoria, porém, acaba prejudicada na medida

em que se encontra superada a noção meramente formal de Estado de direito. Com efeito, verifica-se atualmente um consenso mínimo em torno da ideia de que o Estado de direito apresenta um conteúdo substancial, que corresponde, em grande síntese, à limitação jurídica do Estado e à garantia de tutela dos direitos fundamentais e respeito a princípios estruturantes desse Estado de direito, como a segurança jurídica, a proporcionalidade e a democracia,

252 Cf. BERCOVICI, Gilberto. Entre o estado total e o estado social: atualidade do debate sobre direito,

estado e economia na República de Weimar. 2003. Tese (Livre Docência em Direito Econômico) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/2/tde-22092009-150501/>. Acesso em: 2017-05-09, p. 111.

253 Cf. FORSTHOFF, Ernst. Stato di diritto in transformazione. trad. L. Riegert e C. Amirante. Milano,

atributos cuja natureza axiológica impede a adoção de uma conceção meramente formal.

Uma segunda teoria - que igualmente refuta, sob outro aspeto, a posição de Forsthoff - não vê o Estado social como uma oposição ao Estado de direito, mas como sua própria consequência. Seu argumento nuclear é o de que o princípio da dignidade da pessoa humana, que está no bojo da noção e fundação do Estado de direito, evolui paralelamente com a dinâmica social e econômica da sociedade. No Estado liberal de cerca de duzentos anos atrás, as necessidades mínimas de sobrevivência com dignidade eram certamente bem diferentes do Estado pós-guerra do século XX. Em decorrência, o princípio da dignidade da pessoa humana não alterou sua forma básica, mas sim seu conteúdo, incorporando direitos sociais. O constituinte francês do início do século XIX certamente não estava preocupado em assegurar aos camponeses ensino superior de qualidade, ou mesmo condições de acesso à internet ou participação em óperas e outros eventos culturais ou esportivos. Tais direitos, naquele momento, não representavam uma condição mínima de sobrevivência com dignidade. Em alguns Estados modernos, porém, a sociedade pode considerar que a privação de alguns desses direitos ofende a garantia de um minimo existencial.254

Tal posição está correta, em parte, quando considera que alguns direitos sociais integram o rol de direitos fundamentais corolários do princípio da dignidade da pessoa humana. Vale dizer, se um direito social é reconhecido como inerente à dignidade da pessoa humana, ele se incorpora à própria noção de Estado de direito aplicada a tal ordenamento. Ocorre, porém, que nem todos os direitos sociais decorrem necessariamente de um mínimo existencial, não sendo inerentes, portanto, ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ainda que equiparados a direitos fundamentais, tais direitos não o são substancialmente, em que pese ao facto de indiretamente contribuirem para o progresso social. A instituição de uma renda mínima na Finlândia, v.g., é um direito social cuja inexistência não necessariamente retire o mínimo existencial de um cidadão finlandês.

O uso do adjetivo "social" serve para indicar o Estado que intervém na Economia. Fora dessa conceção, é impossível estabelecer um grau ou

mesmo um conteúdo jurídico inerente a todo Estado social, como se dá com o Estado de direito. Cada ordenamento constitucional estabelecerá normas próprias, que vincularão os poderes constituídos de maneira diferente. 255

Assim, o "Estado social de direito", o "Estado social e democrático de direito", tal como o "Estado constitucional, democrático e social de direito" são Estados de direito e, como tal, em nada diferem em seus princípios estruturantes.256

Como alerta Bobbio, o Estado social é tão complexo e distante das instituições que o precederam, que qualquer esquema conceitual fundado nas teorias clássicas é inadequado para se lhe aplicar.257

255 Em sentido contrário, acerca da Constituição espanhola, que adota a fórmula Estado social y

democrático de derecho, Manuel García-Pelayo defende que a referida noção não “constitui uma

simples agregação ou justaposição dos termos componentes, mas sua articulação em uma totalidade conceitual". GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del estado contemporâneo. 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 92-104. Também em referência ao artigo 20, (1), da Lei Fundamental de Bona, que prevê expressamente a Alemanha como um Estado social, Peter Häberle enxerga algum valor diferenciado decorrente da afirmação desse conceito em unidade com o Estado de direito. HÄBERLE, Peter. El contenido esencial de los derechos fundamentales: una contribución a la concepción institucional de los derechos fundamentales y a la teoría de la reserva de la ley. trad. J. B. Camazano. Madrid: Dykinson, 2003, p. 18.

256 Nesse sentido, Jorge Reis Novais aquiesce com a ideia de que a adjetivação do Estado de direito é

pleonástica, cumprindo mera função de elucidar as novas dimensões desse princípios. Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria..., cit., p. 210 et seq. Sobre os conceitos de Estado de direito,

Estado social e Estado Democrático, cf. ALEXANDRINO, José Melo. Liçoes de direito constitucional. V.

1. Lisboa: AAFDL, 2015, p. 82 et seq.