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PARTE 1 LIBERDADE DO LEGISLADOR E VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL

1.2. O RESPEITO À VONTADE DO LEGISLADOR: MENS LEGISLATORIS VS MENS LEGIS

A discricionariedade ou liberdade de conformação do legislador são diretamente afetados pelo reconhecimento, no processo legislativo, dos fins expressamente indicados pelo legislador para a edição do ato legislativo.

Nesse sentido, embora se conceda ao legislador certa proeminência nas escolhas políticas quando da concretização legislativa, também se reconhece ao juiz certo campo discricionário para identificar defeitos ou lacunas do produto desejado pelo legislador.222

É certo que, como a experiência já demonstrou, muitas vezes, o direito legislado é insuficiente para atender às necessidades de um caso concreto, abrindo espaço para a atividade criativo-jurisdicional.223

Quando, todavia, o ato legislativo possui redação ambígua ou vaga, mas é possível aferir a real teleologia da norma, seja pela justificativa apresentada para a apresentação do projeto de lei, seja pelos debates parlamentares, não pode o julgador, sobretudo em um ambiente civil law, donde se inserem os sistemas brasileiro e português, desconsiderá-la para fazer atuar, quase de forma autônoma, a subjetividade criativo-normativa jurisdicional.

Desde a superação da escola da exegese, a teoria geral do direito se mostrou relutante em conferir papel proeminente à mens legislatoris, privilegiando a intenção abstrata da norma, justificada por um caminho lógico similar ao empregado por Rousseau, quando distinguiu a vontade geral da nação, em detrimento dos interesses reais do povo.224

Na construção rousseaniana, porém, a identificação dessa vontade geral ainda caberia a um órgão representativo dotado de mínima legitimidade democrática, ao passo que a aferição da mens legis, prestigiada pela doutrina majoritária, caberia ao Poder Judiciário, órgão de provimento aristocrático, com déficit, portanto, de legitimidade de representação.

222 Nesse sentido, Canotilho afirma que "o <grande triunfo da hermenêutica> tem sido considerado

o da demonstração de a lei poder <ser mais inteligente que o legislador>. Idem. Direito

Constitucional..., cit., p. 62.

223Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 62.

224 Rousseau, no contrato social, não defende a ideia de vontade do povo a pautar a atuação do

Estado, mas uma vontade abstrata – a vontade geral. Essa conceção de Rousseau teria influenciado os revolucionários de 1789. Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 51 et seq.

A despeito da manifesta violação ao princípio democrático, na dimensão da legitimidade político-representativa dos membros do Poder Legislativo, o desprezo à mens legislatoris, também conhecida como interpretação genética,225 encontra relevante defesa doutrinária e, não por acaso,

jurisprudencial.226 No Brasil, vale citar o pensamento de Geraldo Ataliba:

Em primeiro lugar, o jurista sabe que a eventual intenção do legislador nada vale (ou não vale nada) para a interpretação jurídica. A Constituição não é o que os constituintes quiseram fazer; é muito mais que isso: é o que eles fizeram. A lei é mais sábia que o legislador. Como pauta objetiva de comportamento, a lei é o que nela está escrito (e a Constituição é lei, a lei das leis, a lei máxima e suprema). Se um grupo maior ou menor de legisladores quis isto ou aquilo, é irrelevante, para fins de interpretação. Importa somente o que foi efetivamente feito pela maioria e que se traduziu na redação final do texto, entendido sistematicamente (no seu conjunto, como um todo solidário e incindível).227

Na Alemanha, o BVerfG (Tribunal Constitucional Federal da Alemanha) adota a mesma tese:

Decisivo para a interpretação de uma prescrição legal é a vontade objetivada do legislador que se expressa nela, assim como ela resulta do texto da determinação legal e da conexão de sentido na qual aquela está colocada. Não decisivo é, ao contrário, a ideia subjetiva dos órgãos participantes no procedimento legislativo ou de alguns de seus membros sobre o significado da determinação.228

Na esteira do BVerfG, para Hesse, a mens legislatoris seria apenas o limite para a atividade criativa do jurista.229 É o que Luhman considera

como aceitação da decisão (no caso, legislativa) com a recusa de suas premissas. 230

225 Carlos Blanco de Morais emprega o termo dimensão genética ou interpretação genética. Cf.

MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional: teoria da constituição…cit., p. 146.

226 Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2011, p. 20-5.

227ATALIBA, Geraldo. Revisão constitucional. Revista de informação legislativa, Brasília, v. 28, n. 110,

p. 87-90, abr./jun. 1991, p. 87.

228 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha. Trad. 20.

ed. alemã Luís Afonso. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p. 56-7. Do mesmo autor, cf. ainda

Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Constítucionales, 1983, p. 38.

229 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional..., cit., p. 60.

230 Luhman distingue a aceitação das premissas da decisão da aceitação da própria decisão.

Segundo o autor: “À positivação do direito, isto é, a tese de que todo o direito é posto por decisão, corresponde a estabelecer o conceito de legitimidade sobre o reconhecimento das decisões como obrigatórias (13). Este é o conceito mais amplo. Compreende, também, o reconhecimento das premissas de decisão, contanto que se decida sobre elas (noutro tempo e através doutras passagens). Igualmente, leis, atos administrativos, sentenças etc. são, pois, legítimos como decisões,

Não obstante reconheça essa doutrina algum “norte” ou limite trazido pela mens legislatoris, sua relativização proposta, ao conferir proeminência à mens legis, transforma a vontade popular representada na vontade política do legislador constitucional em “meras palavras”. Se for admitida a interpretação do texto legislado contrária à vontade política que decidiu seu conteúdo, as teorias da representação política devem ser relegadas ao plano meramente especulativo.

Deveras, se o constitucionalismo moderno consagra o postulado de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes e se o direito que a todos vincula é legitimado por essa lógica que subjaz no consciente de cada cidadão, admitir que os juízes, que são aceitos nos regimes democráticos como guardiões da vontade política positivada, possam contrariá-la, é admitir uma fraude à democracia.

No mesmo sentido, afirma Carlos Blanco de Morais que admitir que tal entendimento significa

colocar a Constituição à mercê do intérprete, desvalorizar a legitimidade democrática do programa político do legislador constitucional e, no limite, converter o poder constituinte numa fonte de meras palavras, cuja imperatividade ficaria dependente de intérpretes convertidos em pitonisas. E o facto é que os tribunais constitucionais não deixam de recorrer, sempre que o entendem por necessário, ao elemento histórico- intencional. 231

É verdade que as condições que justificaram a feitura da lei podem se alterar, mantendo-se o texto original. Nessa hipótese, obviamente, o intérprete deve fazer a devida adequação, na medida em que se entende a norma numa dimensão trina, sendo ela a aplicação do texto à realidade subjacente. O que não se pode admitir é a simples desconsideração da vontade do legislador, como se

quando e enquanto se reconhecer que são obrigatoriamente válidos e devem fundamentar o próprio comportamento.”. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 32.

231 Prossegue o autor, dizendo que “Não sendo o legislador o senhor absoluto da norma, a sua

intenção, se clara e precisa, não pode deixar de limitar o poder do intérprete cuja vontade não pode ser colocada acima da do decisor da Constituição ou das suas leis de revisão, desfigurando os objetivos que presidiram à decisão, capturando a "mens legis” e fazendo a norma dizer o contrário do que foi a expressão da vontade democrática do autor da lei.” MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de

ela não fosse importante e, muitas vezes, negá-la completamente e adotar uma interpretação totalmente oposta. 232

Mas se a construção lógica que une a representação política, a teoria da legislação e interpretação jurisprudencial em torno do princípio democrático e do Estado de direito não confere uma liberdade ao juiz de negar a mens legislatoris, porque há tanta resistência em aceitá-la e tanta disposição em qualificá-la? Muitas razões podem ser apontadas.

Uma delas diz respeito à necessidade de o indivíduo político, qualquer que seja seu campo de atuação, ter maior propensão ao respeito a uma ordem, quando participa de sua elaboração.

Ademais, sendo igualmente destinatários da norma, na qualidade de cidadãos ou mesmo em razão do vínculo de trabalho que possuem com o Estado, sua discordância em relação à interpretação mais lógica do texto normativo, muitas vezes abre o caminho para o atendimento de interesses pessoais, a atuação de seus princípios morais, ou mesmo para promover a justiça “com as próprias mãos”. Já se demonstrou, em sede de pré-compreensões, que esse comportamento ativista traz sérios riscos para a democracia, pois da mesma forma que ideais nobres podem afastar o tripé da legitimidade democrática, ideais mesquinhos, contornados por uma retórica que atrai o apelo popular, também têm o condão de fazê-lo.

No plano da vaidade do julgador, que em virtude de processos meritocráticos de escolha, assentados numa premissa sofismática de

232 Essa teoria leva a absurdos. No Brasil, o art. 33 do ADCT previa o parcelamento das dívidas

judiciais, ressalvados os créditos de natureza alimentar. Em regra, as dívidas judiciais ordinárias são pagas após sua inclusão no orçamento, o que pode levar mais de dois anos, no mínimo. O constituinte pretendeu que os créditos alimentares fossem pagos imediatamente, como fica claro no debate constituinte:

O Sr. Constituinte Plínio de Arruda Sampaio – Como disciplina os casos de crédito de natureza

alimentícia? O Sr. Constituinte Nelsom Jobim – É por execução fiscal comum. Aí V. Exa. entra na regra dos executivos fiscais e tem condição de executar. Não entra na regra do precatório. Entra na execução e é satisfeito desde logo, por determinação do Juiz de Direito que requisita o pagamento, ao passo que aqui os créditos alimentares, de urgência vão entrar na fila dos precatórios, o que é um absurdo.” Cf. QUINTILIANO, Leonardo David. Políticas públicas e endividamento: como os precatórios financiam os entes federativos. Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP, Ano 5, Vol. 2, ago./dez. 2012, p. 22. Pois o absurdo ocorreu. Sendo debatido o tema pelo STF, entendeu por maioria, contrariamente à decisão constituinte. Os Ministros analisaram a história do instituto dos precatórios, citaram doutrina diversa, mas nenhum deles, nem mesmo os que votaram em sentido contrário (Ministro Carlos Velloso e Ministro Sepúlveda Pertence), deram-se ao trabalho de analisar os debates parlamentares. Cf. STF.ADI 571 MC/DF. Tribunal Pleno. Rel. Min. Néri da Silveira. J. 28/11/1991.

que o melhor juiz é o que demonstra maior capacidade de memorização de artigos e ementas de teorias - critério esse de seleção adotado em muitos países, como no Brasil - é igualmente difícil pensar como esse julgador respeitará a decisão legislativa em detrimento da sua própria. Ao invés de, nesse sentido, o julgador manifestar sua “livre convicção” em artigos doutrinários, muitas vezes ele – abdicando do seu papel constitucional de aplicador da norma – nega-a explicitamente no exercício da jurisdição, expressando – e demonstrando – sua revolta com as amarras impostas pela vontade do legislador.

Historicamente, a mens legislatoris também sofre o preconceito criado pela atuação da Escola da Exegese. Esta, de fato, instrumentalizava o ideal da segurança jurídica, também componente do Estado de direito, na medida em que a segurança jurídica estaria assegurada por um processo uniforme de interpretação, que se daria pelo respeito à vontade do legislador. A proeminência da vontade do legislador, no entanto, pode ser vista de duas formas: ou como mecanismo de afirmação de um regime autoritário, ou como mecanismo de afirmação de um regime democrático. Ou seja, a segurança jurídica, enquanto instrumento sensível do regime adotado, é diretamente dele dependente. Por essa razão, se uma democracia não estiver fortemente consolidada, não é a segurança jurídica, de que a mens legislatoris é um dos vários aspetos, que vai garantir a efetiva legitimidade democrática dos atos dos poderes constituídos. Nesse sentido, à época da Escola da Exegese foi feita uma associação entre a prevalência da vontade do legislador e a intenção centralizadora de Napoleão. O mesmo discurso retórico, porém, é utilizado para negar uma maior democratização no papel de construção do Direito, resgatando a tese que vigia até a construção da Escola da Exegese, que remonta à conceção da nomos grega ou da lex romana.233

233 Na antiguidade, a ideia que se tinha da lei era de que ela já existia e caberia aos homens, por

meio de pessoas iluminadas, revelá-la. Como afirmava Fustel de Coulanges, “O antigo direito não é obra do legislador; o direito, pelo contrário, impôs-se ao legislador. Teve sua origem na família. Nasceu ali espontânea e inteiramente elaborado nos antigos princípios que a constituíram.”. Cf. COULANGES, Fustel. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 32. Essa tendência, na Idade Media, foi também mantida no processo de interpretação bíblico. E mesmo com o iluminismo, a ideia de se buscar a descoberta das leis não foi totalmente abandonada, mas volta mediante um processo racional. As leis deveriam ser descobertas pela razão, mas também já preexistiriam ou deveriam ser intuídas a partir de uma conceção de vontade geral, como defendia Rousseau. Rousseau, no contrato social, não defende a ideia de vontade do povo a pautar a atuação do Estado, mas uma vontade abstrata – a vontade geral. Essa conceção de Rousseau teria influenciado os revolucionários de 1789. Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do

Essa resistência dos juízes em aceitar a mens legislatoris como critério nuclear no processo de interpretação sofreu um revés com a necessidade de empregá-la comparativamente para efetuar testes lógicos de aferição da constitucionalidade da lei, que exigem a ponderação entre o interesse público envolvido, que poderá estar expresso na lei, e os demais interesses, valores e bens por ele afetados com a medida impugnada. Assim, seja no teste de proporcionalidade, teorizado por, dentre outros, Robert Alexy234, seja no teste da

proteção de confiança, nos termos propostos pelo Tribunal Constitucional português235, a análise da razoabilidade (especialmente a proibição do excesso)

dependerá do exame dos fins pretendidos pelo legislador (mens legislatoris) com a adoção das medidas normativas em avaliação.

Dado o caráter concreto de situações como essa, o conhecimento dos reais fins pretendidos pelo legislador não podem ser aferidos abstratamente, ou seja, por uma dedução racional formulada a partir de um texto normativo (mens legis), mas requer, inexoravelmente, a sindicância da justificativa apresentada pelo legislador para a aprovação daquela norma.

Com efeito, ao ponderar entre o interesse público contido na norma impugnada e os demais interesses, deve o julgador, assim como tem feito o Tribunal Constitucional português,236 considerar a vontade real do legislador

contida na justificativa do projeto de lei, que acompanha o processo legislativo e que pode ser apresentada ao Tribunal pelo interessado na defesa da constitucionalidade da lei.

Desse modo, o respeito à mens legislatoris na aplicação de técnicas de ponderação pode ser considerada condição sine qua non para o efetivo controle de constitucionalidade dos atos normativos estatais, sem a qual estará aberto o caminho para o arbítrio judicial.

Ressalte-se que, em julgamento do STF no Brasil acerca da inconstitucionalidade da instituição de uma contribuição sobre os proventos de aposentadoria, promovida pela Lei federal n. 9.783/99, o acórdão foi parcialmente

processo legislativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 51 et seq.

234 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos..., cit., p. 587 et seq. 235 Cf. TC. Processo n.º 772/07. Acórdão n.º 128/09.

236 Cf., dentre outros, os últimos acórdãos proferidos nos processos n.º 1260/13 (Acórdão 862, de

fundado na mens legislatoris contrária à referida instituição237, o que demonstra

que o resgate da interpretação genética passa a ser inexorável quando da utilização de técnicas de ponderação, em observância ao próprio princípio da segurança jurídica.

237 De fato, consta da ementa do referido julgamento: “DEBATES PARLAMENTARES E

INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. - O argumento histórico, no processo de interpretação constitucional, não se reveste de caráter absoluto. Qualifica-se, no entanto, como expressivo elemento de útil indagação das circunstâncias que motivaram a elaboração de determinada norma inscrita na Constituição, permitindo o conhecimento das razões que levaram o constituinte a acolher ou a rejeitar as propostas que lhe foram submetidas. Doutrina. - O registro histórico dos debates parlamentares, em torno da proposta que resultou na Emenda Constitucional nº 20/98 (PEC nº 33/95), revela-se extremamente importante na constatação de que a única base constitucional - que poderia viabilizar a cobrança, relativamente aos inativos e aos pensionistas da União, da contribuição de seguridade social - foi conscientemente excluída do texto, por iniciativa dos próprios Líderes dos Partidos Políticos que dão sustentação parlamentar ao Governo, na Câmara dos Deputados (Comunicado Parlamentar publicado no Diário da Câmara dos Deputados, p. 04110, edição de 12/2/98). O destaque supressivo, patrocinado por esses Líderes partidários, excluiu, do Substitutivo aprovado pelo Senado Federal (PEC nº 33/95), a cláusula destinada a introduzir, no texto da Constituição, a necessária previsão de cobrança, aos pensionistas e aos servidores inativos, da contribuição de seguridade social. Cf. STF. ADI 2010/DF. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. J. 30/09/1999.