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PRÉ-COMPREENSÕES

2. ESTADO DE DIREITO E SEU CONTEÚDO JURÍDICO

A expressão Estado de direito tem sido empregada como ideia-força para se referir aos Estados que reúnem uma série de características referenciadas nos ideais iluministas e declarações de direitos que fundamentaram a superação do absolutismo.85 Presente em diversos textos constitucionais

modernos86 e no próprio ideário pós-moderno87, sua constante recorrência

demonstra sua importância axiológica na construção do Estado moderno, cujos valores irradiam efeitos na ordem jurídica, produzindo consequências na interpretação e aplicação do Direito.

Tais consequências decorrem da evoluão do constitucionalismo, especialmente da assunção do caráter normativo da Constituição. De fato, a Ciência do Direito, após a utilização mais frequente da expressão tão somente para se referir a um tipo de Estado, passa a propor um conteúdo jurídico para o Estado de direito. Resta saber, no entanto, se é possível logicamente propor um conteúdo universalizável para o pretenso princípio.

85 Cf. GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de direito constitucional: introdução: parte geral: parte

especial. v. 2. 5. ed. rev. atual. Coimbra: Almedina, 2013, p. 791 et seq.

86 Segundo seu preâmbulo, a Constituição da República Portuguesa – CRP foi promulgada, dentre

outros objetivos, para assegurar o primado do Estado de direito democrático, o que consagra no seu artigo 2.º. Dispõe o artigo 2.º da CRP: “Artigo 2.º / Estado de direito democrático / A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. Informa Canotilho, que a expressão apenas passou a ser empregada no constitucionalismo português a partir da CRP de 1976. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. MOREIRA, Vital. Constituição da república

portuguesa anotada. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, t. I, p. 204. Também convém ressaltar

que a Constituição Portuguesa só inscreveu o princípio do Estado democrático de direito após a primeira revisão, constando anteriormente apenas do preâmbulo. Não obstante, a Comissão Constitucional já extraía da conceção de que Portugal era um Estado democrático de direito desde então. Cf. Processo 22/83. Acórdão 20/83. O mesmo termo pode ser encontrado na Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB. A expressão também está presente no Tratado da União Europeia, na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como no sepultado Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. A expressão não aparece em todos os textos constitucionais, o que não desnatura a forma de um autêntico Estado de direito. A Constituição italiana, por exemplo, não emprega o termo, fazendo referência apenas à República Democrática (Cf. artigo 1.º da Constituição Italiana). Também a Constituição Portuguesa só inscreveu o princípio do Estado democrático de direito após a primeira revisão, constando anteriormente apenas do preâmbulo. Não obstante, a Comissão Constitucional já extraía da conceção de que Portugal era um

Estado democrático de direito desde então. Cf. Processo 22/83. Acórdão 20/83

87 Como destaca Sérgio Resende de Barros, a expressão, que se internacionalizou a partir de sua

origem germânica (Rechtsstaat), “virou modismo, não havendo Estado que se preze – até mesmo regimes autoritários - que não se queira apresentar como Estado de direito.” Contribuição dialética

Como se demonstrará, a expressão "Estado de direito" encerra um princípio jurídico constitucional, cujo conteúdo pode ser deduzido a partir de fundamentos políticos e jurídicos.

Os fundamentos políticos residente na necessidade de superação do Estado Absolutista, caracterizado pela arbitrariedade e imprevisibilidade do monarca, a qual encontra voz na doutrina política contratualista, especialmente em Locke, Rousseau e Montesquieu, que, em suas obras, veiculam ideais convergentes para a construção de um Estado que garantisse aos indivíduos uma previsibilidade e segurança mínimas, além de outras aspirações que decorriam do racionalismo iluminista e se ligavam a uma dignidade do ser humano.

Os fundamentos jurídicos ligam-se a tais fundamentos políticos, na medida em que estes influenciaram os movimentos políticos que levaram às revoluções liberais, especialmente a Americana de 1776 e a Francesa de 1789, e, consequentemente, foram expressamente previstos nas primeiras Constituições e Declarações de Direitos, especialmente na França e nos Estados Unidos, as quais inspiraram o conteúdo das Constituições modernas.

Pode-se também afirmar que esses valores se encontram presentes na conceção da maioria dos indivíduos, bem assim dos seus representantes constituintes, ao menos no seio das sociedades formadas sob os valores cristãos, consistindo "verdades evidentes, pré-racionais, que dispensam uma persuasão política ou demonstração lógico-racional, conferindo, assim, legitimidade à adoção de um conceito mínimo de Estado de direito". 88

Com efeito, embora alguns autores encontrem vestígios de sua construção teórica em Platão89, ou mesmo de uma experiência próxima no

Estado Feudal, como defende Max Weber90, a conceção de um Estado de direito vai

88 COUTINHO, Luís Pedro Dias Pereira. A autoridade moral..., cit., p. 210.

89 As teses que buscam em Platão a origem da conceção de um Estado de direito esbarram no

problema de aceitar a ideia de que havia mesmo um Estado grego. A ausência de estatalidade também se verificava no Feudalismo, pois as relações sucessivas e em cadeias recíprocas de vassalagem também não poderiam configurar uma relação de poder político coercitivo que permitisse falar em Estado, quanto mais em Estado de direito. Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo

para uma teoria do estado de direito. Coimbra: Almedina, 2006, p. 31 et seq.

90 Em sua obra Economia e Sociedade, Max Weber chama o Estado feudal de Estado de direito

fundado em direitos subjetivos, não em ordenamentos jurídicos objetivos. O sentido que ele dá ao

Estado de direito é algo próximo da estabilidade jurídica, pela existência de poderes que tutelavam

aparecer somente com a superação do Estado de Polícia, a última fase do Estado absolutista.

Max Weber, no entanto, em sua obra Economia e Sociedade chama o Estado feudal de Estado de direito fundado em direitos subjetivos, não em ordenamentos jurídicos objetivos91. O sentido que ele dá ao Estado de direito é algo

próximo da estabilidade jurídica, pela existência de poderes que tutelavam as relações jurídicas constituídas pelos indivíduos e entre esses e os respetivos suseranos. Mas se a segurança jurídica pode ser considerada um princípio implícito do Estado de direito, ela é insuficiente para caracterizar uma sociedade política como tal. 92

Também se costuma estabelecer um paralelismo entre o Estado de direito e o rule of law, ou supremacia do direito93, atributo da common

law estabelecido na Inglaterra medieval. Ambos os conceitos, de fato, se aproximam, mas a origem do rule of law está dissociada da ideia de Estado e até mesmo antecede a elaboração deste conceito na tradição jurídica continental europeia.94 Enquanto as formulações teóricas sobre o Estado remontam à Idade

segurança jurídica pode ser considerada um princípio implícito do Estado de direito, ela é insuficiente para caracterizar uma sociedade política como tal, razão pela qual a conceção de Weber não pode ser aceita. Cf. WEBER, Max. Economía y sociedade: Esbozo de sociología comprensiva. 2ª impressão da 2. ed. Trad. da 4.ª ed. alemã por José Medina Echavarria et al. México, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, Guatemala, Peru, Venezuela: Madrid: Fondo de Cultura Econômica de España, p. 837.

91 WEBER, Max. Economía y sociedade..., cit., p. 837.

92 De fato, só há Estado quando há uma relação de poder entre o indivíduo e a sociedade política. Na

Grécia e em Roma, não havia esse sentimento de oposição. O indivíduo, em grande parte influenciado por suas conceções religiosas e por um direito natural, se enxergava como parte do Estado e não como algo alheio. A liberdade ali era uma liberdade de participação, não oposição. Daí a distinção que ficou famosa no texto de Benjamin Constant de 1819: “De la liberté des anciens

comparée à celle des modernes”. Assim, sem propriamente uma relação de poder, o que levava a

ideia de autarquia, não de soberania, não há como buscar na Grécia a ideia de Estado de direito. Cf. QUINTILIANO, Leonardo David. Autonomia federativa: delimitação no direito constitucional brasileiro. 2012. Tese (Doutorado em Direito do Estado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis /2/2134/tde-26082013-162030/>. Acesso em: 5 ago. 2017, p. 34-39.

93 Embora muitos autores traduzam o termo como a “regra da lei” ou a “supremacia da lei”, prefere-

se a tradução “supremacia do direito”, pois exprime mais fielmente a dimensão da ideia que a expressão pretende transmitir. Cf. NOVAIS, Jorge Reis, Os princípios estruturantes da república

portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 261. AMARAL, Maria Lúcia. A forma da república:

uma introdução ao estudo do direito constitucional. Coimbra: Coimbra editora, 2012, p. 140-1.

94 De fato, como informa Dicey, o rule of law estaria já definido no limiar da Revolução de Cromwell,

caracterizando-se pelos seguintes primados: “a) ninguém pode ser punido sem previsão legal anterior ao facto imputado (nulla poena sine lege); b) nenhum homem está acima da lei, mas todos a ela se submetem de igual maneira, independente de sua condição social; c) serem as normas constitucionais não a causa, mas a conseqüência dos direitos individuais.” DICEY, Albert Venn.

Moderna, o desenvolvimento do rule of law tem seu início na Idade Média, ligando- se diretamente ao surgimento e evolução da common law. Como afirma Albert Venn Dicey, “a rule, predominance or supremacy of law é, ao lado da centralização política, uma das duas características das instituições políticas inglesas surgidas após a conquista dos Normandos.”95 Nada obstante, a noção de supremacia do

direito, enquanto antecedente direto do Rechtsstaat96, acaba por integrar este

último, que incorporou outros elementos no curso de seu desenvolvimento.97

De fato, o Estado feudal foi sucedido pelo Estado absolutista, que conheceu duas fases: a fase do Estado patrimonial, em que os bens do Estado se confundiam com o patrimônio do príncipe e uma segunda fase, na qual, racionalmente, caberia ao príncipe cuidar dos interesses dos súditos. Essa fase, que teve contribuições de filósofos como Maquiavel, foi chamada de Estado de Polícia.98

O Estado de Polícia se caracterizava por decisões arbitrárias e imprevisíveis do Monarca. Os cidadãos e a própria burguesia, que antes se beneficiavam da segurança dada pelo Monarca, começam a se ressentir de uma menor intervenção estatal e buscar a substituição da ideologia cristã por um processo racional que vai exigir também maior racionalidade do Estado.

Essa exigência de previsibilidade – segurança jurídica – vai ser um dos elementos centrais para a superação desse Estado de Polícia, a qual encontrou eco na doutrina contratualista, que já traçava os contornos do Estado de direito em suas obras.99 Mesmo tendo uma pretensão político-filosófica, podem ser

encontrados em tais autores elementos jurídicos que serão considerados essenciais para o Estado de direito. Luis Fleitas de León destaca tais elementos, a seguir resumidos: a) a ideia de que o Estado não é algo espontâneo, mas é fruto da Traduzimos.

95 DICEY, Albert Venn. Introdution to the study… cit., p. 183. Traduzimos. Cf. também BARROS,

Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 325-362.

96 Com efeito, "o conceito de Rechtsstaat a que chegaram é o resultado direto do velho ideal da

supremacia do direito em uma nação em que a principal instituição a ser cerceada era um complexo aparelho administrativo, e não um monarca ou um Poder Legislativo." FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 9.

97Ademais, noticia o autor que a tradução alemã para supremacia da lei foi frequentemente usada

no lugar de Rechtsstaat. HAYEK, Friedrich August Von. Os fundamentos da liberdade…cit., p. 244. (destacamos)

98 Cf. NOVAIS, Reis. Contributo para uma teoria…cit., p. 36 et seq.

99 Dentre outros, ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social: ou principes du droit politique, de

1762; LOCKE, John. Two treatises of government, de 1689; e SECONDAT, Charles-Louis, Baron de la Brède et de MONTESQUIEU. De l´esprit des lois, de 1758.

vontade dos indivíduos; b) a soberania, como poder político coercitivo, pertence ao povo; c) o Estado deve se organizar num sistema de separação das funções legislativa, executiva e jurisdicional; d) a limitação do poder dos governantes pela adoção de um sistema de freios e de contrapesos e pela submissão à lei; e) a garantia dos direitos da pessoa humana.100

Tais ideias influenciaram o conteúdo das primeiras Constituições e Declarações de Direitos, especialmente na França e nos Estados Unidos, as quais inspiraram o conteúdo das Constituições modernas.101 Dessas

influências, é relevante destacar o artigo 2.º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “Art. 2.º - Le but de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l'Homme. Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté, et la résistance à l'oppression.”.102

Nascia, assim, o Estado de direito, consagrando a segurança como um direito natural e imprescritível do homem.

Embora algumas características do Estado de direito já se fizessem presentes na Inglaterra, é possível afirmar que os Estados Unidos da América foram o primeiro modelo de Estado de direito, seguido pela França pós- revolucionária, embora nenhum deles empregasse em seus textos constitucionais a expressão.

O uso da expressão Estado de direito (Rechtsstaat) para identificar um tipo de Estado teria surgido somente algum tempo depois, na Alemanha. Quanto ao pioneirismo de seu uso, porém, não há consenso.103

100 LÉON, Luis Fleitas de. A propósito del concepto de “estado de derecho”: un estudio y una

propuesta para volver a su matriz genética. Revista de Derecho de la Universidad de Montevideo, ano X, n.º 20, 2011, p. 24.

101 Luis Fleitas de León faz uma análise dos documentos políticos referentes à independência das

antigas 13 colônias que formariam os Estados Unidos da América, bem como da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Cf. LÉON, Luis Fleitas de. A propósito del concepto…cit., p. 24-5.

102 “Artigo 2.º - O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e

imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”. (Traduzimos e destacamos em itálico o termo sûreté (segurança).

103 Jorge Reis Novais, e.g., afirma que o conceito foi desenvolvido por Von Mohl na obra Die

Polizeiwissenschaft nach den Grundsatzen des Rechtsstates (Ciência policial de acordo com os princípios dos Estados de Direito), em 1832-3, mas o autor já a haveria empregado em debates políticos em 1829. Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria..., cit., p. 47. No mesmo sentido, cf. VERDÚ, Pablo Lucas. La lucha por el estado de derecho. Bolonia: Real Colegio de España, 1975, p. 21. Manoel G. Ferreira Filho, em sua obra "Estado de direito e Constituição" (São Paulo: Saraiva, 1988, p. 5), filia-se a essa tese. Entretanto, em sua obra "Princípios Fundamentais do Direito Constitucional" (Saraiva: São Paulo, 2009, p. 176), o autor informa que Luc Heuschling

Certamente influenciado pela Revolução Francesa, Kant escreve em 1793 o artigo "Über den gemeinspruch: das mag in der theorie richtig sein, taugt aber nicht für die práxis" (Sobre o dito comum: isso pode ser justo em teoria, mas não vale na prática), onde emprega o termo rechtlicher zustand (estado jurídico) em oposição ao estado não-jurídico ou de natureza. 104 Naquele, deveriam

se respeitar os direitos de liberdade de buscar a própria felicidade sem prejudicar a felicidade alheia, de igualdade dos súditos perante a lei (igualdade formal) e de uma liberdade de participação no processo legislativo apenas para quem dispusesse de propriedade (cidadania limitada pelo critério censitário).105 Quatro

anos depois, em 1797, Kant publica a obra Princípios metafísicos da doutrina do direito, desenvolvendo aqueles conceitos. A partir de então ele e seus seguidores passaram a ser chamados de Escola Crítica ou Doutrina do Estado de direito.106

A simples instauração da monarquia constitucional e a proclamação do Rechtsstaat, com o fim da justiça administrativa, não garantiram a almejada liberdade do indivíduo em face da Administração Pública. Isso porque - defende o autor - o modelo segundo o qual as questões administrativas eram atribui a Johann Wilhelm Placidus o pioneirismo no uso da expressão Rechtsstaat, a qual teria sido por ele empregada em 1798, na obra "Literatur der Staatslehre. Ein Versuch", para designar a Escola de Kant. No mesmo sentido BARROS, Sérgio Resende de. Contribuição dialética…cit., p. 138. Essa parece a tese mais plausível. Esse facto é confirmado por Gustavo Gozzi, segundo o qual Kant e seus alunos foram chamados de Escola Crítica ou Doutrina do Estado de direito (Rechts-Staats- Lehrer). GOZZI, Gustavo. Kant: la concezione dela democrazia sul fondamento dei diritti. In: BOLOGNESI, Dante; MATTARELLI, Sauro. L’Illuminismo e i suoi critici. Milano: FrancoAngeli, 2011, p. 85. Também informa que Placidus era um pseudônimo usado por Petersen, a obra foi publicada em Sttutgart, não em Estrasburgo, mais provavelmente em 1797. BYRD, B . Sharon; HRUSCHKA, Joachim. Kant’s doctrine of right: a commentary. Cambridge, New York, Melbourne, Madrid, Cape Town, Singapore, São Paulo, Delhi, Dubai, Tokyo: Cambridge University Press, 2010, p. 27. Friedrich A. V. Hayek, por sua vez, noticia que a palavra Rechtsstaat teria aparecido pela primeira vez em K. T. Welcker, em sua obra Die letzten Gründe von Recht, Staat und Strafe (As razões últimas do Direito, Estado e Punição), publicada em 1813. O significado do termo ali empregado, porém, não corresponderia ao significado que lhe foi dado posteriormente, cujo movimento teórico apenas teria iniciado no fim do século XVIII, sob a influência de estudiosos ingleses. HAYEK, Friedrich August Von. Os fundamentos da liberdade…cit., p. 239, nt. 26. Hayek também afirma que os escritores alemães costumam associar o movimento que levava ao Rechtsstaat às teorias kantianas. O imperativo categórico de Kant - a norma pela qual o homem deve se comportar de tal modo que o motivo que o leva a agir seja universalizável – teria enfatizado o caráter geral e abstrato das normas, condição necessária ao desenvolvimento da ideia da supremacia da lei. Aqui utilizou-se a própria tradução do autor para o termo “supremacia da lei”. HAYEK, Friedrich August Von. Os

fundamentos da liberdade…cit., p. 236.

104 BEEVER, Allan. Forgotten justice: forms of justice in the history of legal and political theory.

Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 168.

105 GOZZI, Gustavo. Kant: la concezione dela democrazia…cit., p. 85-6.

106 Ibidem. Sobre a atribuição a Kant da conceção de Estado de direito, cf. ZEPEDA, Jesús Rodrigues.

Estado de derecho y democracia. 2. ed. Mexico: Instituto Federal Electoral, 2001, p. 31-4. Cf. KANT,

Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. Trad. Joãosinho Beckenkamp. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 128-129.

submetidas à justiça ordinária trazia o problema da especialização necessária em matéria administrativa, que faltava aos juízes “ordinários”, uma vez que “as disputas em torno da legalidade de um ato administrativo não poderiam ser resolvidas como pura matéria jurídica”.107

Por isso foram criados novos tribunais administrativos, que tratariam unicamente de questões legais, tendo total independência, esperando-se que, com o passar do tempo, assumissem um controle estritamente judicial de toda a ação administrativa. Era o fim do judicialism na Alemanha e, para Hayek, a coroação da realização definitiva do ‘Estado de direito’. 108

Da Alemanha, a teoria do Rechtsstaat demorou a ser aceita na França, o que somente ocorreu a partir da segunda década do século XX, sobretudo com a obra "Contribution a la théorie générale de l”État", de Raymond Carré de Malberg.109 Após sua colhida no direito francês, o termo Estado de direito,

assim como seu conceito, internacionalizou-se. Na França, porém, o conceito sofreu um desvio, em função do qual o termo Estado de direito passou a ser identificado com Estado de legalidade.110

O Estado de legalidade representou um paradigma relevante à conceção de Estado de direito, na medida em que a segurança jurídica era levada ao extremo, em detrimento de outros valores. Dois fatores explicam essa conceção mais restrita. Em primeiro lugar, na França, o receio do Poder Judiciário, ainda identificado como um órgão aristocrático conservador do Antigo Regime, levava a adoção de conceções que limitavam, de certo modo, o exercício da função

107 HAYEK, Friedrich August Von. Os fundamentos da liberdade…cit., p. 242.