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PARTE 3 – O PAPEL DOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DO ESTADO DE DIREITO NA VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL DO LEGISLADOR EM MATÉRIA

3.1. PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Assim como a origem dos direitos fundamentais assenta-se na preservação da liberdade do homem e tal como a própria ideia de dignidade da pessoa humana centra-se na autodeterminação do indivíduo, o princípio da igualdade é elemento inafastável na vinculação legislativa.538

Além do progresso e da paz, a garantia da igualdade entre os indivíduos é o grande fim do Estado moderno e é, justamente no modo de se a alcançar, que as diferentes correntes políticas apresentam suas maiores divergências.

Por essa razão, se o princípio da igualdade é elemento determinante na opção do regime político, as premissas políticas de sua positivação devem estar presentes ao se aferir a vinculação do legislador ao princípio da igualdade consagrado na Constituição do Estado.

3.1.1. Funções normativa e social do princípio

O princípio da igualdade apresenta uma função normativa e uma função social.539

A função normativa do principio da igualdade assegura uma função de controle e a função social pode ser utilizada como imposição constitucional relativa, como já visto.

Em sua dimensão normativa, o princípio da igualdade apresenta uma vertente positiva e outra negativa, que implicam, respetivamente, uma vinculação positiva ou negativa do legislador. A vinculação negativa corresponde a vedações de tratamento desigual arbitrário, como a concessão de privilégios,540 e a vinculação positiva à efetivação da "igualdade real"541.

3.1.2. Igualdade formal e igualdade material (real)

Já virou praticamente um consenso entender ambas as dimensões do princípio da igualdade. Diante de normas garantistas, a igualdade formal, ou igualdade perante a lei, deve ser observada.

538 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito..., cit., p. 489.

539 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 385. 540 Cf. artigo 13.º, 2, da CRP.

A igualdade formal vincula o legislador na medida em que o proíbe de conferir tratamento distinto a cidadãos diversos. No entanto, especialmente em se tratando do Estado social, uma dimensão intrínseca do princípio ganha maior relevo - a igualdade material.

Indissociáveis no processo hermenêutico, igualdade formal e igualdade material convivem dialeticamente, conflitando-se em cada aplicação concreta em um regime de equilíbrio dinâmico donde resulta o critério decorrente da contradição entre ambos.

Por exemplo, no caso da norma que prevê requisitos diferenciados de aposentação para homens e mulheres, a busca por uma igualdade ou "reparação" material infirma a igualdade formal. Em muitos países, justifica-se a adoção de menor idade de aposentação para mulheres, ao menos por estes quatro fundamentos: a) maternidade; b) discriminação no mercado trabalho; c) realização de trabalhos domésticos; d) ingresso tardio no mercado de trabalho devido à cultura machista de não trabalho da mulher.

Com o desenvolvimento social, mormente de aspetos culturais ligados à superação da discriminação da mulher, bem como a equiparação salarial e de oportunidades entre os sexos no mercado de trabalho, a distinção operada entre homens e mulheres pelo legislador passa a ser questionada. Na medida em que, a par desses fatores, muitas mulheres optam por não ter filhos, deixa de subsistir uma desigualdade material, o que acaba por tornar inconstitucional a violação do princípio da igualdade formal pelo legislador.

Em que pese às inúmeras obras e artigos que trabalham o tema, vale citar a precisa colocação de Canotilho, que bem sintetiza a distinção entre o que chama de igualdade perante a lei e igualdade através da lei: o princípio da igualdade não pode se resumir a um mecanismo de aplicação igual do direito, mas deve aplicar igual o direito igual. Deve, assim, o legislador aplicar direito igual, quando o direito for igual. Inexistindo direito igual, a igualdade perante a lei deve ser convertida em direito à igualdade através da lei, atuando esta para igualar os direitos.542

Na mesma linha, já julgou o STF:

O princípio da isonomia, que se reveste de auto- aplicabilidade, não é - enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica — suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio — cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público — deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspeto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei — que opera numa fase de generalidade puramente abstrata — constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade.543

3.1.3. Vinculação negativa do legislador pelo princípio da igualdade

O princípio da igualdade vincula o legislador negativa e positivamente. Negativamente, pela vedação de editar leis que criem desigualdades formais ou materiais. Assim, se a Constituição apenas se limita a declarar o princípio da igualdade, tem-se apenas uma vedação do arbítrio por parte do legislador.544

É o que acontece com o artigo 13 da CRP e o artigo 5º da CRFB. Tais dispositivos não comportariam uma imposição legislativa, mas um mecanismo de controle dos atos legislativos.

Casos há, porém, em que o legislador edita uma norma promovendo uma igualdade formal ou material. Nesse caso, a vinculação do legislador assumirá alcances diversos se a norma decorrer de imposição constitucional ou não. De fato, uma norma editada em virtude de imposição constitucional (como uma eventual política afirmativa de cotas para alunos pobres nas universidades públicas) não importaria em uma violação ao princípio da igualdade.545 Ele exerceria apenas uma função de controle e seria acionado

somente para aferir a constitucionalidade do ato legislativo. Outros entendem que,

543 STF, MI 58, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/04/91.

544 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 384. 545 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 385 et seq.

nesse caso, o princípio veicula uma imposição constitucional relativa e, desse modo, pode ensejar uma ação dirigida contra a omissão.546

Concordamos nesse aspeto com Canotilho, no sentido de relativização da ideia da função social do princípio da igualdade como conformadora do legislador.547 Com efeito, cabe ao legislador a decisão política de

adotar os meios que entenda adequados para promoção da igualdade real. Isso não obsta, porém, a aplicação do princípio da constitucionalidade para avaliar os fatores de discrímen. Mas como precisar, no caso concreto, quando uma norma viola o princípio da igualdade? Celso Antônio Bandeira de Mello elenca as seguintes circunstâncias que indicam sua violação:

I – A norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura indeterminada.

II – A norma adota como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que ocorre quando pretende tomar o fator tempo – que não descansa no objeto – como critério diferencial.

III – A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção ao fator de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados. IV – A norma supõe relação de pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrímen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses protegidos constitucionalmente.

V – A interpretação da norma extrai dela distinções, discrímens, desequiparações que não foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via implícita.548

3.1.4. Vinculação positiva do legislador ao princípio da igualdade

Quando se está diante de uma imposição legiferante, encontra-se o legislador positivamente vinculado à norma. Isso pode se dar, no

546 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 385 et seq.

547 Segundo o autor, os fundamentos dessa relativização são os seguintes: “1 — A igualdade (ou

desigualdade) jurídico-constitucional refere-se a relações jurídicas entre os cidadãos e os poderes públicos, actuando estes soberanamente. 2 — A sua função é a de reconhecer a determinadas pessoas uma pretensão autónoma (auto-executiva) judicialmente accionável contra os poderes públicos. 3 — O princípio da igualdade social tem como função reconhecer a certas pessoas, sob pressupostos ainda a determinar, uma pretensão contra os poderes públicos, no sentido de estes eliminarem as desigualdades fácticas (sociais,económicas). 4 — Os «pressupostos a determinar» só podem ser preenchidos através de decisões políticas — donde resulta que o princípio da igualdade não pode estender-se à igualdade social, pois não apresenta conteúdo nem processo para, a partir dele, se derivarem autonomamente pretensões.”CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição

dirigente..., cit., p. 383.

548 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São

caso do princípio da igualdade, de norma constitucional que imponha o dever de promover uma igualdade material, como a disposição que prevê a busca pelo fim das desigualdades sociais.

Com efeito, no Estado social democrático, a doutrina jusnaturalista tem cada vez mais aproximado a ideia de igualdade na aplicação do direito, da ideia de uma função social do princípio da igualdade. Essa igualdade de oportunidades, porém, que os socialistas anseiam e que muitos juristas tentam alcançar mediante a interpretação das normas, não é - e tampouco pode ser - o fim do direito, que não tem o condão de determinar a infraestrutura social. Isso não quer dizer que o princípio da igualdade deva sempre comportar uma interpretação restritiva, de conteúdo puramente formal. A Constituição pode impor ao legislador a meta549 de corrigir desigualdades fácticas com o emprego de ações afirmativas

ou edição de leis que considerem sua existência e adotem medidas compensatórias.550

Se a violação ao princípio da igualdade se deu por norma editada em virtude de imposição constitucional, o princípio da igualdade não opera uma imposição direta. Ele exerce apenas uma função de controle e será acionado somente para aferir a constitucionalidade do ato legislativo. Outros entendem que, nesse caso, o princípio veicula uma imposição constitucional relativa e, desse modo, pode ensejar uma ação dirigida contra a omissão. No primeiro caso, portanto, a ação pleitearia a anulação da lei. No segundo caso, o objeto da ação seria a supressão da omissão inconstitucional.551

Diante desse problema, três soluções podem ser dadas: a) a lei que beneficia apenas um grupo de indivíduos deve ser anulada por violação ao princípio da igualdade; b) mediante uma interpretação conforme à Constituição, pode-se declarar a nulidade parcial da lei; c) deve ser suprida a omissão quanto aos demais destinatários.

O princípio da igualdade, no entanto, cumprindo a função social, não está infenso ao controle de constitucionalidade com base na proporcionalidade, não se admitindo uma compensação excessiva.552 No caso da

549 Prefere-se o emprego do termo meta, já que se trataria de uma obrigação de meios, não de fins. 550 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 384.

551 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 204 et seq. 552 Cf. acórdão 253/2012 do TC.