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PRÉ-COMPREENSÕES

5. ATIVISMO JUDICIAL

A interpretação aberta estimulada pelo novo constitucionalismo associada a outros elementos de ordem política e econômica, provocaram a hipertrofia do Poder Judiciário, a partir do empoderamento do juiz e da intensificação de sua atividade criativa, inovando o direito mediante a dedução de regras a partir de princípios, muitas vezes vagos, indeterminados e pouco delimitados.

Tal hipertrofia se mostra intrinsecamente ligada a seis fatores pós-modernos: à axiologização constitucional, marcada pela incorporação nos textos constitucionas de normas de conteúdo vago, indeterminado, que veiculam valores a serem delimitados e explicitados pelos poderes constituídos; à recepção de teorias que propõe, em algum grau, a superação do positivismo, fortemente influenciadas por jusfilósofos e juristas que se debruçam sobre tais normas predominantemente axiológicas, em especial os direitos fundamentais; e à incapacidade de os demais poderes e, talvez, do próprio Estado social pós- moderno, atenderem às sempre crescentes demandas pela realização de direitos e efetivação da justiça social; uma perda de referencial do princípio clássico da separação de Poderes e dos papéis historicamente atribuídos aos signatários das funções legislativa, administrativa e jurisdicional, especialmente nos sistemas civil law; a uma série de construções lógico-jurídicas que buscam autorizar maior interferência na discricionariedade legislativa, bem como legitimar a atividade criativa do poder jurisdicional; e, finalmente, a confortável e poderosa condição de deter a última palavra sobre a interpretação e a aplicação do Direito.

Com efeito, a interpretação aberta propiciada e exigida pelo conteúdo axiológico dos novos textos constitucionais e legais, os quais exigem do aplicador do direito certa densificação, atraem para este último o ônus de fazer escolhas de cunho subjetivo, 159 o que inclui a prática ilegítima, que passou a se

observar no Brasil, de decisões contra a Constituição.160

constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra editora, 2001, p. 60.

159 Cf. BACHOF, Otto. Estado de direito e poder político. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra.

Coimbra, Coimbra ed., v. 1, LVI, 1996, p. 10.

160 Gilberto Bercovicci já previa tais riscos. Cf. BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado

Exemplo de um criacionismo perigoso se deu com a edição da Súmula Vinculante nº 13161 pelo STF. No debate de sua aprovação162, restou

clara a intenção do Tribunal em extrair um conteúdo dos princípios da moralidade e da impessoalidade previstos no artigo 37 da CRFB-88.163 Segundo a

interpretação adotada, a nomeação de parentes para ocupar cargos de confiança ofenderia os princípios da moralidade e da impessoalidade. O texto da Súmula vai além do nepotismo: veda igualmente que dois parentes sejam contratados para trabalhar no mesmo órgão, ainda que inexista relação de subordinação entre eles.

No entanto, a adoção pelo Poder Judiciário de um recorte objetivo de princípios subjetivos, como a moralidade e a impessoalidade, esbarra na usurpação de competência dos demais Poderes e em seu déficit de legitimidade democrática. Deveras, ao estabelecer que apenas parentes até o terceiro grau da autoridade nomeante ou de outro servidor comissionado do órgão, pressupõe o julgador que todas essas hipóteses decorrem de um ato de imoralidade ou de impessoalidade. Em sentido contrário, todas as demais hipóteses de nomeação (por amizade ou por interesse sexual, por exemplo) seriam presumidamente possíveis. Ao assim proceder, abandona o tribunal seu papel de julgar casos concretos em que deva sindicar a existência de uma situação de moralidade, para fazer um recorte, por meio de generalização, fundado na moral comum, não na moralidade administrativa, de conteúdo e âmbito de incidência mais delimitado.164

Além do criacionismo, o ativismo judicial chega a contrariar o próprio texto da Constituição. No julgamento da ADPF 132, o STF reconheceu a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, em afronta expressa ao artigo 226, §3º, da CRFB-88, imprimindo ao artigo 1723 do

161 Eis o teor da súmula: "A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral

ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal."

162 Cf. Debate de aprovação da Súmula Vinculante nº 13. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/

arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/SUV_11_12_13__Debates.pdf>. Acesso em: 22 out. 2017.

163 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)

164 Cf. NIMER, Beatriz Lameira Carrico. Ação popular como instrumento de defesa da moralidade

Código Civil brasileiro interpretação conforme à Constituição.165 Já no julgamento

do HC 124306/RJ, a Primeira Turma do STF, conduzidos pelo voto do Min. Roberto Barroso (conhecido pela sua adesão extrema ao "neoconstitucionalismo") declarou que os artigos 124 a 126 do Código Penal, que criminalizam o aborto, são inconstitucionais se alcançarem a gestação até o terceiro mês (interpretação conforme), posição contrária e inovadora mesmo no âmbito do STF. Em matéria administrativa, chamou à atenção o julgamento do RE 612975/MT, em que a corte, negando a interpretação literal e sistemática do texto constitucional, que prevê a aplicação do limite remuneratório previsto no art. 37, XI, da Constituição à soma dos cargos acumuláveis, determinou sua incidência isolada por aplicação de princípios pretensamente implícitos.166

É verdade, como afirma José de Melo Alexandrino, que a “Ciência do Direito ainda não dispõe de um modo seguro para saber o que é julgar em Direito Constitucional”.167 No entanto, isso não permite ao julgador negar o

texto escrito da norma, ou, num sistema constitucional que oferece múltiplas escolhas ao legislador, afastar aquela que lhe parece mais apropriada em detrimento de outra, retirada diretamente a partir de um princípio.168

E isso não é possível porque, na maioria dos modelos ocidentais, a função legislativa é confiada ao Parlamento, não ao juiz. Mesmo nos Estados Unidos, onde os juízes podem ser eleitos em alguns Estados, há legitimidade democrática para o exercício da função jurisdicional, não para o exercício da função legislativa. Não obstante, a existência de uma legitimidade democrática somada ao poder do stare decisis, típico da common law, não isenta aquele sistema das discussões em torno da proatividade judicial.169

165 Ocorre que tanto o artigo 1723 do Código Civil quanto o artigo 226, §3º, da CRFB-88, possuem

praticamente a mesma redação: "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família." (grifo nosso)

166 Curioso é notar que quase todos os 11 Ministros acumulam as funções da magistrutura com o

magistério, expondo o perigoso risco de o ativismo implicar na "legislação em causa própria".

167 ALEXANDRINO, José de Melo. Jurisprudência da crise. Das questões prévias às perplexidades. In:

O tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra:

Almedina, 2014, p. 67.

168 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional…cit., p. 436, nt. 968.

169 Cf. KMIEC, Keenan D. The Origin and Current Meaning of "Judicial Activism". California Law

Contudo, como assevera Conrado Hübner Mendes, a legitimação democrática não se esgota na eleição e na ideia de maioria, podendo a democracia também ser entendida como

um conjunto variado de princípios concorrentes de tomada de decisão, que podem se inter-relacionar de múltiplas maneiras. O quadro monolítico da supremacia parlamentar não esgotaria as alternativas democráticas igualmente válidas de institucionalização.170

Isso também não exclui a possibilidade de os Estados conferirem legitimidade para os juízes exercerem a função legislativa. Kelsen já admitia essa possibilidade, embora reconhecesse que quantos maiores poderes forem conferidos aos juízes, menor será a segurança jurídica.171

Em um ou outro caso, porém, tal legitimação deve estar radicada na consciência geral da sociedade política, e não pode ser uma decisão construída unilateralmente pelos tribunais. Portugal e Brasil, por exemplo, compartilham do mesmo sistema civil law que não confere ao juiz um papel tão acentuado na criação do direito, bem como compartilham a mesma estrutura político-organizacional de escolha dos membros do Poder Judiciário, que se dá mediante um procedimento complexo de indicações e nomeações efetivadas diretamente pelos órgãos formados por membros eleitos diretamente pelo sufrágio popular. Logo, há uma legitimidade democrática indireta, conferida tão somente para o exercício da função jurisdicional, não legislativa.

170 MENDES, Conrado Hübner. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford

University Press, 2013, p. 224.

171 Segundo Kelsen, Se aos tribunais é conferido o poder de criar não só normas individuais, mas

também normas jurídicas gerais, eles entrarão em concorrência com o órgão legislativo instituído pela Constituição e isso significará uma descentralização da função legislativa. Sob este aspeto, isto é, com respeito à relação entre o órgão legislativo e os tribunais, podem distinguir-se dois tipos de sistemas jurídicos tecnicamente diferentes. Segundo um destes tipos, a produção de normas jurídicas gerais está completamente centralizada, quer dizer, é reservada a um órgão legislativo central e os tribunais limitam-se a aplicar aos casos concretos, nas normas individuais a produzir por eles, as normas gerais produzidas por esse órgão legislativo. Como o processo legislativo, especialmente nas democracias parlamentares, tem de vencer numerosas resistências para funcionar, o Direito só dificilmente se pode adaptar, num tal sistema, às circunstâncias da vida em constante mutação. Este sistema tem a desvantagem da falta de flexibilidade. Tem, em contrapartida, a vantagem da segurança jurídica, que consiste no facto de a decisão dos tribunais ser até certo ponto previsível e calculável, em os indivíduos submetidos ao Direito se poderem orientar na sua conduta pelas previsíveis decisões dos tribunais. O princípio que se traduz em vincular a decisão dos casos concretos a normas gerais, que hão de ser criadas de antemão por um órgão legislativo central, também pode ser estendido, por modo conseqüente, à função dos órgãos administrativos. Ele traduz, neste seu aspeto geral, o princípio do Estado-de-Direito que, no essencial, é o princípio da segurança jurídica.”. (sublinhou-se)KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 175-6.

Assim, em ambos os sistemas, situações como a Súmula Vinculante n.º 13, do Supremo Tribunal Federal brasileiro, que extrai do conteúdo do princípio da moralidade a regra de que não se pode nomear para cargo público parente até o terceiro grau, são manifestações de um ativismo judicial.

De fato, determinações desse tipo assumem o caráter de norma geral e abstrata, a qual, diversamente da norma especial e concreta - como as decisões judiciais - demanda interpretação e subsunção fática. E, no sistema judicial brasileiro, assim como em diversos sistemas constitucionais da civil law, somente o titular da função legislativa pode editar normas gerais e abstratas. No caso brasileiro, o poder constituinte incumbiu apenas os Poderes Legislativo e Executivo do exercício da função legislativa.

Em segundo lugar, a densificação de princípios abertos, tais como a moralidade e a impessoalidade, requerem inexoravelmente a intermediação do legislador, pois demandam escolhas de natureza política. Apenas admitir-se-iam decisões judiciais aplicando-se diretamente princípios abertos, caso houvesse um consenso geral radicado na consciência da coletividade. Não é o que ocorre em torno da conceção sobre a moralidade ou não de se nomear parentes para cargo de confiança. Observe-se que o próprio qualificativo "de confiança" excepciona e relativiza o princípio da pessoalidade, uma vez que tal requisito pressupõe a escolha de pessoa específica, em quem se confia. Essa natureza peculiar da nomeação para cargo de confiança aponta, para parte da sociedade, como hipótese moral de nomeação de parentes, com a ressalva - para alguns -, de que a contratação não tenha sido exclusivamente pela condição de parentesco, mas pelas características e aptidão do nomeado para o cargo. Certa ou errada, o facto é que há divergência no âmbito da sociedade acerca do alcance do conteúdo de certo princípio, cabendo sua escolha à própria sociedade, por meio dos representantes eleitos justamente para expressá-la.

Feitas essas considerações, a despeito de outras conceituações doutrinárias acerca do fenômeno172, a expressão ativismo judicial173

172 A doutrina também se refere a juristocracy. Cf. HIRSCHL, Ran. The political origins of the new

constitutionalism. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 11, n.º 1, art. 4º. Disponível em: <http://www.repository.law.indiana.edu/ijgls/vol11/iss1/4>. Acesso em: 11 jun. 2017, p. 286. Cf. KMIEC, Keenan D. The Origin and Current Meaning of "Judicial Activism". California Law Review, v. 92, n. 5, 2004, p. 1463 et seq.

que será empregada refere-se exclusivamente à invasão inconstitucional pelo Poder Judiciário do campo reservado à função legislativa que não seja excepcionalmente a ele atribuída dentro do quadro das chamadas funções atípicas.

174,175

matéria em que criticava a atuação de juízes americanos na promoção do bem-estar social. Cf. KMIEC, Keenan D. The Origin and Current Meaning of "Judicial Activism". California Law Review, v. 92, n. 5, 2004, p. 1446. No mesmo sentido, Elival da Silva Ramos o conceitua como o “exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante à práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes.” RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial…cit., p. 129.

174 No mesmo sentido, Elival da Silva Ramos o conceitua como o “exercício da função jurisdicional

para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante à práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes.” RAMOS, Elival da Silva. Ativismo

judicial…cit., p. 129.

175 Afinal, uma separação rígida das funções estatais seria logicamente impossível, pois isso

implicaria que o Executivo administrasse o Legislativo, e o Legislativo impusesse normas que afetassem a estrutura organizacional dos demais Poderes. Por isso, a separação dos poderes assume um equilíbrio com uma separação de Poderes (órgãos) que requer a atribuição a cada um deles de funções atípicas. Em virtude de tais funções – as quais, como regra, devem ser expressamente previstas no texto constitucional – o Poder Judiciário pode legislar e administrar, o Poder Legislativo pode julgar e administrar, e o Poder Executivo pode legislar e julgar (embora não se tenha notícia de experiência de atribuição de um efetivo poder jurisdicional ao Poder Executivo no direito comparado, em situações de normalidade do Estado de direito).