• Nenhum resultado encontrado

PARTE 1 LIBERDADE DO LEGISLADOR E VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL

1.1.2. A função da Constituição e a função da le

Em sede de pré-compreensões, reconhecemos a Constituição fundada no Estado de direito e suas variantes como uma ordem-fundamento não exaustiva, na medida em que, contemplando decisões relevantes, não consegue prever todas as decisões possíveis com que o Estado possa se deparar, deixando ao legislador, inevitavelmente, uma atividade criativa, e não de mera descoberta normativa.

É claro que o princípio do Estado de direito comporta variantes diversas, e sua moldura contempla diversas funções e estruturas constitucionais. O facto é que uma breve análise superficial das Constituições ocidentais continentais vai apontar mais semelhanças que diferenças em ambos os aspetos. Explicitações e conformações de caráter social ou democrático do Estado certamente agregam ou sublevam funções a algumas constituições em detrimento de outras, mas em linhas gerais, considerando que o movimento constitucional possui forte inclinação globalizante, poucas são as diferenças funcionais e estruturais verificáveis.

Já nos sistemas de tradição common law, como se analisará adiante, a função e estrutura da Constituição e dos poderes constituídos apresentam nuances distintas, em que pese ao movimento tendente à desconsideração de tais diferenças e aproximação de ambos os sistemas.

A Constituição possui, assim, uma função normativa inaugurante e não exaustiva, na medida em que: a) reconhece a vinculatividade de preceitos morais ou constantes de ordenação anterior ou supraestatal; b) organiza direcção política que invocam a seu favor a 'legitimidade renovada' do apoio popular." CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 1994, cit., p. 26-7.

as competências, formas e processos de exercício do poder;182 c) impõe limites à

atuação dos poderes constituídos; d) estabelece diretrizes de atuação e fins a serem perseguidos pelos poderes constituídos; e) prescreve direitos e deveres dirigidos aos poderes constituídos, ao seu povo, organizações coletivas e população.

Por outro lado, embora não se tenha adentrado o debate proposto por Canotilho acerca dos dois modelos de Constituição (jurídica e política), igualmente resta implícita a pré-compreensão da normatividade plena da Constituição, mesmo quanto às suas normas programáticas.183

Já a função da lei, conquanto igualmente possa apresentar variações em cada sistema constitucional, em termos clássicos apresenta uma zona de intersecção com a função da Constituição, pois ambas destinam-se a criar direitos e obrigações, impondo comportamentos omissivos ou comissivos. 184

O termo lei deriva do latim lex, legis, de legere (escrever). Etimologicamente significa o que está escrito. Seu sentido histórico incorpora as ideias de informação e de prescrição. Assim, toda lei é uma proposição (conjunto de palavras com um significado) que objetiva a informação de outrem (informação) e a modificação de seu comportamento (prescrição).185

Na qualidade de “estrutura proposicional que enuncia uma forma de organização ou de conduta”,186 ou simplesmente de um conjunto de

palavras que exprime que algo deve ser ou acontecer187, o uso consagrado do termo

se confunde - talvez por influência inglesa, que emprega o mesmo termo (law) para se referir à norma abstrata e ao ordenamento jurídico - com as noções de direito (conjunto de normas) e de norma jurídica.188

182 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., 1994, p. 151. 183 Ibid., 1994, p. 14.

184 É sempre oportuno citar a definição dada por Locke, acerda do poder legislativo, segundo o qual

teria a função e direito “de estabelecer como se deverá utilizar a força da comunidade no sentido da preservação dela própria e dos seus membros. É, portanto, o poder supremo de editar leis, consistente na delegação de poderes pelo povo a seus representantes, através da renúncia da liberdade de seu estado de natureza em troca de regras que possam lhe garantir a propriedade, a paz e a tranqüilidade. Legislar é produzir leis."LOCKE, John. Two treatises of government... cit. p. 313. Traduzimos.

185 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica.trad. Fernando P. Baptista e Ariani B. Sudatti. Bauru:

Edipro, 2001, p. 80.

186 REALE, Miguel.Lições preliminares de direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 95.

187 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. trad. J. B. Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes,

1999. p. 4-10 e BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica... cit. p. 72-5.

Sem prejuízo de seu uso vulgar, a expressão pode assumir diferentes e específicos significados em cada ordenamento. No Brasil, v.g., a par de seu sentido comum, o termo lei pode expressar dois sentidos técnico-jurídicos. Pelo primeiro, lei seria “toda espécie normativa primária produzida no nível legislativo, diretamente vinculada às normas constitucionais e vinculante das normas regulamentares, sendo estas e aquelas excluídas do conceito”. Pelo segundo, ainda mais estrito, o termo lei se refere a três das seis espécies normativas primárias previstas no artigo 59 da CRFB-88: as leis ordinárias, as leis complementares e as leis delegadas. 189

Mas, se há tantos significados para o termo lei, como delimitar semanticamente sua função? Segundo uma primeira corrente, o elemento característico da lei seria a generalidade. A lei seria toda norma com destinatários diversos, todo comando dirigido não a um caso específico, mas a quaisquer casos que se enquadrem em sua descrição, projetando-se, inclusive, para o futuro.190

Uma segunda corrente, porém, não considera a generalidade como caráter essencial das leis, com base, resumidamente, nos seguintes fundamentos: a lei pressuporia uma força protetora dos cidadãos, o que não é garantido pela generalidade das leis, mas pelo facto de emanarem de uma autoridade superior. Além disso, o caráter geral das leis deve-se à finalidade do Estado de regular as relações sociais, o que não impede que o Estado edite leis específicas ou concretas (no Brasil, chamadas de “leis de efeitos concretos”).191

MAYER, Otto. Le droit administratif allemand. v. 1. Paris: Giard & Briére, 1906, p. 114. Traduzimos. Já Jellinek enfatiza o caráter abstrato da lei: “[legislação] é o poder de editar uma norma jurídica abstrata que regula uma pluralidade de casos ou um direito individual”. JELLINEK, Georg. Teoria

general del estado. trad. Fernando de Los Rios. Mexico, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2004, p.

595. Traduzimos.

189 Sérgio Resende de Barros define como espécies normativas primárias todas as normas

imediatamente subordinadas à Constituição. Cf. BARROS, Sérgio Resende de. Noções sobre espécies

normativas. Disponível em: <http://www.srbarros.com.br/pt/nocoes-sobre-especies- normativas.cont>. Acesso em: 10 jul. 2017.

190 Carré de Malberg explica que a teoria da generalidade da lei deita suas raízes na antiguidade

grega, sendo concebida por Aristóteles (“a lei sempre dispõe por via geral e não prevê os casos

acidentais”), depois por Ulpiano (“Jura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur”) e

também por Rousseau (“a lei é expressão da vontade geral”). CARRÉ DE MALBERG, Raymond.

Contribution à la théorie générale... cit. t. 1. p. 290. Traduzimos. Tal fundamento, explica o autor,

apresenta duas justificativas: para alguns, por uma analogia das leis jurídicas com as leis naturais (estas, sempre dotadas do caráter de constância e de generalidade); para outros, uma superação da arbitrariedade dos mandamentos individuais dos antigos governantes. Ibid., p. 292-3.

191 Essa corrente é seguida por Paul Laband, Georg Jellinek e Carré de Malberg. Cf. CARRÉ DE

Dessa discussão exsurge a distinção entre lei formal e lei material, refutada por Carré de Malberg e por outros autores. Lei formal seria a norma emanada do Poder Legislativo, editada segundo o procedimento legislativo previsto. Já lei material seria toda norma jurídica instituída que veicula “matéria de lei”.192 Tal definição é passível de críticas, pois, para que tenha sentido, há a

necessidade de se estabelecer o que vem a ser “matéria de lei”. A propósito, Carré de Malberg observava que tal distinção não era possível na França, tendo sido abandonada pelas Constituições francesas. Nesse sentido, conclui: “Lei, no sentido constitucional da palavra, é, pois, toda decisão que se toma em forma legislativa pelo órgão legislativo".193

Em outros ordenamentos, porém, tal qual no português, no brasileiro e no italiano, a distinção é relevante, ao contrário do que afirmam alguns autores.194 De fato, seguindo o pensamento de Carré de Malberg, a generalidade e a

abstração não são suficientes para se reconhecer a lei em sentido material. Há que se fazer presente outro requisito: la potenzialità innovativa normativa (potencial inovador normativo), ou seja, a capacidade de inovar o ordenamento jurídico vigente. Esse é, tal como ocorre no direito italiano, o conteúdo que define, no direito brasileiro, o que vem a ser “matéria de lei”.195

Assim, a lei formal e a lei material acentuam, cada uma, aspetos presentes no que se deveria conceber como lei típica ou lei total: a legitimidade democrática, presente apenas na lei formal, e o potencial inovador normativo, presente na lei material.196

192 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional... cit., p. 189.

193 CARRÉ DE MALBERG, Raymond. Contribution à la théorie générale... cit. t. 1. p. 377. Traduzimos. 194 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional... cit., p. 189.

195 Cf. CELSO, M. Mazziotti di; SALERNO, G. M. Manuale di diritto costituzionale. 4. ed. Padova:

CEDAM, 2007, p. 109. Deveras, o facto de um ordenamento não prever expressamente quais matérias são reservadas a cada esfera de poder (matérias jurisdicionais, legislativas e administrativas) não impede seu reconhecimento implícito ou a construção de uma noção universalizável de função legislativa. No caso brasileiro, ela é demarcada no artigo 5º, inciso II, da CRFB-88, que prevê a exigência de lei para constituição, modificação e extinção de direitos.

196 Com efeito, os conceitos de lei material e de lei formal devem ser entendidos como anomalias

jurídicas, pois divisam o indivisível: a lei, definível como o comando inovador da ordem jurídica, emanado do Poder Legislativo, segundo o processo legislativo, é decomposta em seus dois elementos essenciais e complementares, recebendo cada qual vida própria, o que apenas o artificialismo das proposições normativas é capaz de admitir. Em regra, toda lei é, ao mesmo tempo, lei formal e lei material. Admitindo-se uma sem a outra, impõe-se reconhecer que uma é o que a outra não é, e que uma tem o que a outra precisa ter para ser o que parece ser. Em outras palavras, a lei formal é a lei material sem seu potencial normativo inovador. Ao mesmo tempo em que apresenta a legitimidade democrática, falta-lhe o conteúdo de lei. Do mesmo modo, a lei material é a

A CRFB-88 reconhece essa dualidade ao prever, e.g., atos normativos que, embora não sejam “lei em sentido formal”, têm “força de lei”.197

Afinal, qual seria a “força da lei” senão o poder de criar e de extinguir direitos? Constituindo esse conteúdo - o potencial inovador normativo – a força da lei, há que se concluir que imprimir “força de lei” ao que lei não é, é o mesmo que reconhecê-lo como lei em sentido material.

Considerando o termo lei como referente à lei formal e material, a generalidade e a abstração lhe são inerentes, pois espelham respetivamente os aspetos essenciais da lei: a legitimidade democrática e o potencial normativo inovador. O caráter democrático que legitima a lei é incompatível com a ideia de lei individual, o que afrontaria a isonomia ínsita à democracia. Já a abstração reflete o potencial normativo inovador, pois a lei deve preceder o caso concreto. Embora as leis possam retroagir, a regra geral é seu caráter proativo. Se inovar implica criar, extinguir ou modificar direitos, é forçoso concluir que apenas os comandos abstratos são aptos a produzir tais efeitos no ordenamento jurídico. A sentença proferida pelo juiz, mesmo nos países da common law, como se melhor analisará no tópico a seguir, não cria propriamente um direito, mas o extrai do ordenamento vigente, dos princípios gerais do direito, da equidade e dos costumes.198

Pode-se dizer, portanto, que a lei tem a função de inovar a ordem jurídica, mediante comandos gerais e abstratos expedidos pelo órgão representativo da coletividade investido de tal poder.199

lei formal despida de legitimidade.

197 É o caso das medidas provisórias no Brasil, previstas no artigo 62: “Em caso de relevância e

urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.”

198 Como demonstra Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em precioso incurso na evolução do conceito

de lei, esta era considerada expressão da razão pelo pensamento revolucionário do séc. XVIII. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 21- 56. Na conceção liberal, era eminentemente apolítica. Ibid., p. 54. Para Rousseau, a lei não seria qualquer decisão arbitrária do soberano, já que a finalidade da lei seria a justiça. A lei, portanto, deveria expressar a vontade geral. Distingue a vontade geral, fruto dos ditames da razão que resulta das vontades individuais, da vontade de todos, soma das vontades dos particulares sobre seus interesses. No séc. XX, contudo, o racionalismo liberal exacerbado dá lugar a um descortinamento da realidade. Com a própria evolução do conceito de democracia e a idéia de representatividade, torna-se cada vez mais difícil a rejeição de que a lei é a vontade de poucos, de uma minoria que representa a maioria. Ibid., p. 79-128.

199 O termo comando é definido por Bobbio como a proposição que pretende influir no