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PARTE 1 LIBERDADE DO LEGISLADOR E VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL

1.1.1. A legitimação da Constituição

Canotilho apresenta diversas formas de legitimação constitucional, convergindo sua análise para a solução destas questões centrais:

O problema nuclear da legitimação de uma ordem constitucional deriva do facto de a constituição, como complexo normativo, consagrar um "domínio" e apontar "fins" políticos. Como se justifica e conserva esse domínio? Pelo "poder"? Pelo "consenso? Uma "ordem constitucional" deve "construir-se" através de uma práxis comum, conscientemente escolhida, ou deve "reconstruir-se" mediante o estabelecimento de regras e pressupostos de comunicação, de modo a atingir-se um "consenso" entre participantes livres e iguais? E qual o "contexto" para a realização deste consenso? O statu quo social? O "sistema"? Uma "práxis revolucionária"?177

Adotando a conceção de Habermas acerca da legitimidade como "a dignidade de reconhecimento de uma ordem constitucional", Canotilho ressalta ainda seus dois aspetos centrais: a legitimidade processual e a legitimidade normativo-material. Com isso, defende o autor que uma Constituição programática representa uma mudança de paradigma na própria interpretação constitucional, mediante a qual não apenas a justiça ou correção procedimental deve ser observada, mas igualmente os fundamentos normativos materiais da Constituição.178

177 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 1994, cit., p. 18. 178 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 1994, cit., p. 21.

Com efeito, essa característica é o que difere o Estado social e democrático de direito do mero Estado legalista, no qual a justiça estaria assegurada, garantindo-se tão somente uma "justiça procedimental". Se uma das diferenças apontadas pela doutrina entre Estado de direito e Estado de legalidade está no equilíbrio entre meios e fins, um Estado que adota uma Constituição programática - com normas indicadoras dos fins a serem perseguidos - subleva a importância dos fins, acentuando a preocupação com o resultado justo, em detrimento do mero procedimento justo, aproximando-se da ideia de justiça da Constituição proposta por Rawls.179

Destarte, no Estado de direito social e democrático, fins e meios, justiça material e justiça procedimental devem concorrer como aspetos de legitimidade a serem perseguidos e considerados pelo legislador e intérpretes constitucionais. Não se trata, porém, de colocá-los em uma balança, para se atingir o equilíbrio, pois cada um desses aspetos deve ser buscado em sua totalidade. Não é correto pensar que maior justiça material signifique necessariamente maior justiça procedimental. Esse tem sido, talvez, o grande equívoco do "decisionismo neoconstitucional", segundo o qual, a busca pela justiça material autoriza o abandono da justiça procedimental. Tal prática se assemelha a um "Estado sem direito", e não a um "Estado de direito". Neste, ambos são perseguidos concomitantemente - justiça material e justiça procedimental -, como forma de controle recíproco da atividade do aplicador da norma. Naquele, cada intérprete aplica as leis segundo seus valores e sua própria conceção de justiça, sem qualquer controle procedimental.

A par do material e procedimental, enquanto perspectivas estrito jurídicas, a legitimação constitucional pode ser aferida sob outros aspetos, como a política, filosófica e sociológica.

Sob a ótica eminentemente política, a legitimação da Constituição consiste na existência de um poder do Estado sobre os cidadãos por estes aceitos. Esse aspeto da legitimação constitucional, porém, não prescinde da consideração dos demais, pois o poder de a Constituição sujeitar os órgãos de

179 Segundo John Rawls, uma constituição "justa" deve assegurar um procedimento justo que

garanta o exercício da liberdade individual em termos igualitários, bem como deve ser o ordenamento mais idôneo a assegurar um "sistema de legislação justa e eficaz". RAWLS, John. A

soberania na execução de imposições constitucionais, o alcance do sentido dos direitos fundamentais, a constitucionalização e normatividade dos direitos a prestações, bem como das normas programáticas, exige considerar as demais perspectivas filosófico e sociológico-jurídicas da legitimação. Isso se torna especialmente visível no exemplo de contradições e conflitos entre essas próprias manifestações.

De fato, o mesmo fenômeno de legitimação se observa relativamente aos poderes constituídos, igualmente legitimados. O poder constituinte e os poderes constituídos atuam mediante implícita autorização de seus destinatários, que compõem a mesma sociedade subjacente à circunscrição alcançada pelas esferas de poder.

É o que ocorre, v.g., quando o Poder Legislativo pretende promover um corte nas pensões, mas esbarra em uma determinação constitucional que a limite. O poder legislativo, assim como o constituinte, são democraticamente legitimados para promover tais alterações. Mesmo, porém, havendo identidade entre a sociedade que legitima a ambos, como explicar a existência de uma contradição entre a vontade do poder legislativo e a vontade do poder constituinte?

Isso sucede por duas ordens de fatores. Primeiro, porque tanto um quanto outro poder apresenta certa autonomia de vontade em relação aos seus mandatários,180 visto que a legitimação-representação na sociedade

política moderna não decorre do modelo imperativo de mandato. Destarte, a vontade do representante não coincide com a do representado, ainda que aquele persiga os interesses deste. Em segundo lugar, a decisão política tomada pelo representante constituinte positiva-se no mais das vezes de maneira estática, mas a vontade do representado é dinâmica e condicionada às conjunturas políticas, sociais e econômicas. Ou seja, o povo representado pode mudar seu entendimento que embasou uma decisão política tomada na forma de ato constituinte.181

180 Cf. PITKIN, Hanna Fenichel. The concept of representation. Berkley: University of California Press,

1967.

181 Como afirma Canotilho, "poderá haver conflitos entre a legitimidade normativo-consititucional e

a legitimidade mediada do legislador, quer porque a intervenção legislativa se orienta por padrões materiais diferentes dos plasmados na constituição, quer porque o legislador não toma a iniciativa de dinamizar as 'imposições directivas' da lei fundamental. As 'fraquezas' da constituição dirigente (e do direito constitucional) aparecem neste contexto: a directividade normativo-material da lei fundamental pode não ser 'actualizada' ou pode ser mesmo contrariada pelo órgão (ou órgãos) de

Se ambas, portanto - Constituição e leis - gozam de igual legitimidade, a relação de contradição entre si não pode ser resolvida pescrutando- se apenas o aspeto político da legitimação.

Tal conflito denota a contradição existente entre democracia e maioria, na medida em que o mesmo povo que "aprovou" a Constituição por vezes aprova medidas contra ela própria. Daí porque o elemento político da legitimação deve servir ao intérprete com ressalvas.