• Nenhum resultado encontrado

Análise crítica da aplicação do mesmo regime das direitos, liberdades e garantias aos direitos fundamentais sociais

FORMA DE VINCULAÇÃO

2.6. A VINCULAÇÃO MATERIAL DO LEGISLADOR AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

2.6.2. Análise crítica da aplicação do mesmo regime das direitos, liberdades e garantias aos direitos fundamentais sociais

A despeito de, em Portugal, devido especialmente ao disposto no artigo 17.º da CRP, a discussão em torno da distinção entre ambos os direitos, o debate não deixa de existir no Brasil, conquanto mais reduzido à questão da aplicabilidade imediata dos direitos sociais, por força do disposto no §1º do artigo 5º da CRFB-88.

É possível, contudo, proceder a uma análise crítica que, aproveitando-se em maior intensidade do debate português, extraia conclusões aplicáveis também ao caso brasileiro.

2.6.2.1. A fundamentalidade dos direitos sociais

A questão em torno da fundamentalidade dos direitos sociais atrai a velha discussão terminológica em torno dos direitos fundamentais. Sem espaço para discussão sobre o tema, adota-se o termo direitos humanos ou direitos do homem para designar as normas – com fundamento jusnaturalista – que se acredite inerentes a qualquer pessoa em virtude de sua condição de ser humano, e o termo direitos fundamentais – num viés juspositivista – para designar

as mesmas normas que foram objeto de positivação no âmbito dos Estados ou de organizações supraestatais como a UE ou o Conselho da Europa.325

Tal fundamentalidade, todavia, pode-se dar em duas dimensões: na formal e na axiológica. A fundamentalidade formal cinge-se à consagração expressa do rol de direitos fundamentais no texto constitucional. Assim, tanto a CRP quanto a CRFB-88 consagram formalmente os direitos sociais como espécies de direitos fundamentais. Já a fundamentalidade axiológica deriva de uma pretensa conceção de que os direitos sociais derivariam de uma interpretação dos demais direitos fundamentais clássicos, em especial a própria dignidade da pessoa humana.

A fundamentalidade axiológica encontra forte amparo no direito alemão. De fato, como demonstra Alexy, a Constituição alemã apresenta apenas um direito fundamental social - o direito da mãe à proteção e à assistência da comunidade (art. 6º, §4º). No mais, a Lei fundamental de Bona é silente em relação aos demais direitos sociais, o que levou o Tribunal Constitucional a reconhecer direitos a prestação decorrentes de princípios estruturantes ou outros direitos de liberdade, como se deu no caso da decisão de 1975 em que se reconheceu o direito de assistência material aos cidadãos sem condições de se autossustentar.326 Com base neste e em poucos outros precedentes, 327 reconheceu

325 Com efeito, as expressões direitos do homem, direitos humanos, direitos fundamentais ou outras

equivalentes têm rendido algum tipo de preocupação doutrinária. Tal preocupação decorreria não apenas da construção histórica do conceito material subjacente de direitos humanos, mas da própria necessidade que há em distinguir o rol de direitos que são expressamente reconhecidos numa determinada ordem constitucional daqueles que, embora não assimilados de tal modo, sejam tidos como vinculantes dos poderes constituídos, numa visão jusnaturalista, seja por serem considerados inerentes a cada ser humano, seja pelo recurso a técnicas retóricas utilizadas para justificar a densificação de princípios de baixa normatividade e conteúdo altamente indeterminado, como ocorre com o princípio da dignidade da pessoa humana. Sobre a distinção conceitual entre as expressões, cf., MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, Tomo IV, p. 52-54. Uma dificuldade para se afastar essa confusão terminológica está justamente no fato de que os textos normativos, especialmente os de abrangência internacional, empregam uma expressão pela outra, reconhecendo sua equivalência, como ocorre com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, entre outras.. Acompanhamos, contudo, o entendimento de Maria Luísa Duarte. DUARTE, Maria Luísa. União europeia e direitos fundamentais: no espaço da internormatividade. Lisboa: AAFDL, 2006, p. 35.

326 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos..., cit., p. 435-7.

327 Peter Häberle também defende a dedução de direitos sociais a partir dos direitos de liberdade.

Cf. HÄBERLE, Peter. El contenido esencial de los derechos fundamentales: una contribución a la concepción institucional de los derechos fundamentales y a la teoría de la reserva de la ley. trad. J. B. Camazano. Madrid: Dykinson, 2003, p. 18.

a jurisprudência e doutrina alemã a existência de "direitos fundamentais sociais" não explícitos. 328

Nesse sentido, a doutrina que defende a fundamentalidade axiológica assenta sua tese no seguinte raciocínio: se na Alemanha se extraiu do princípio da dignidade da pessoa humana um direito social prestacional, todos os direitos prestacionais reconhecidos ou não pela constituição seriam fundamentais, sendo a previsão expressa até mesmo desnecessária.329

Essa tese, contudo, não prospera. Em primeiro lugar, como reconhece Alexy, apenas excepcionalmente e após muito debate - que ainda persistem - é que se reconheceram tais direitos sociais explícitos.330 Ademais, a

fundamentalidade não possui necessariamente uma repercussão prática, na medida em que, mesmo que se reconhece a tese da unidade dogmática, persistiriam os mesmos óbices para a reivindicação subjetiva de tais direitos, ante os problemas estruturais particulares dos direitos prestacionais.

Assim, deve ser refutada a unidade dogmática ao fundamento de que todos os direitos fundamentais decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana, seja pela indeterminação de seu conteúdo, seja porque, ainda que se admitisse um conteúdo consensual, ele não teria o condão de transformar em igual o que é estrutural e materialmente diferente.

2.6.2.2. A coincidência material de normas de direitos de liberdade com normas de direitos sociais

A tese de coincidência material de algumas das normas de direitos de liberdade com normas de direitos sociais não pode ser generalizada para extensão dos princípios contidos nos arts. 12.º a 23.º a normas de direitos sociais que apresentem estrutura diversa dos direitos de liberdade.

328 Em decorrência, houve a necessidade de uma distinção terminológica entre "direitos

fundamentais sociais" e "direitos fundamentais a prestações". Os primeiros referem-se aos direitos sociais imediamente proclamados nos textos constitucionais como normas sociais. É o caso do direito à saúde, à educação, à moradia, etc. Por outro lado, há situações em que direitos sociais decorrem mediatamente de interpretações dos direitos de liberdade ou igualdade. Tal distinção, porém, faz mais sentido no sistema alemão, onde há raros direitos constitucionais sociais previstos expressamente, razão pela qual se empregará o termo "direitos fundamentais sociais" para se referir às "obrigações de prestação positivas cuja satisfação consiste (...) numa 'acção positiva' a cargo dos poderes públicos". Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos..., cit., p. 499.

329 Cf. SILVA, Vasco Pereira da. Todos diferentes, todos iguais. Breves considerações acerca da

natureza jurídica dos direitos fundamentais. Direitos Fundamentais e Justiça, n.º 16, ano 5, jul./set. 2011, p. 30.

2.6.2.3. A igualdade de custos entre direitos de liberdade e direitos sociais

A obra de Holmes e Sunstein teve grande importância e repercussão por oferecerem a antítese necessária e reflexão acerca dos custos dos direitos de liberdade, como forma de mitigar ou reduzir as políticas estatais que se concentrariam na redução de direitos sociais como forma de diminuir o déficit público. 331 Mas se teve o mérito de promover tal reflexão, igualmente o teve em

permitir que se comparassem tais custos.

De fato, já na introdução deste trabalho citamos números que demonstram a distinção quantitativa de recursos gastos com direitos sociais em comparação com direitos de liberdade. Além disso, Carlos Blanco de Morais coloca uma distinção qualitativa no debate: é que muitos dos direitos de liberdade compartilham custos do aparato estatal com outras áreas, inclusive com a própria manutenção de aparatos centrais e imprescindíveis para qualquer organização estatal, cuja existência prescindiria da consagração ou não de tais direitos.332

É possível, portanto, reconhecer a existência de custos para os direitos de liberdade, uma vez que todos os direitos envolvem uma prestação positiva do Estado.333

2.6.2.4. A dimensão subjetiva dos direitos sociais

Outro argumento recorrente é o de que ambos os direitos possuem uma dimensão subjetiva. Ter dimensão subjetiva significa conferir direitos subjetivos, os quais, por sua vez, importam na possibilidade de exigência judicial de um direito.

Não se nega por completo essa tese, mas a criação de direitos subjetivos a partir das normas de direitos sociais depende da satisfação de alguns requisitos.

Em primeiro lugar, só excepcionalmente pode-se admitir que as normas constitucionais de direitos sociais sejam convoladas em direitos subjetivos. De fato, reclamando estes uma “determinabilidade normativa”, com

331 Cf. HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New

York, London: W. W. Norron & Company, 1999, p. 35 et seq.

332 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. De novo a querela da ‘unidade dogmática’…cit., p. 7.

333 Cf. HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New

York, London: W. W. Norron & Company, 1999, p. 35 et seq. SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de

objeto, destinatário e conteúdo delimitados, determinados ou determináveis, sua judicialização, característica dos direitos subjetivos, não é possível, porquanto normas de caráter programático, como as que prevêem o direito à saúde, à educação e à habitação, dentre outras, não alcançam um grau suficiente para sua dedução em juízo.334

Os direitos subjetivos a uma reivindicação da ação estatal seriam possíveis nos termos do ordenamento jurídico-constitucional. Ocorre que em grande parte dos ordenamentos, como se dá no Brasil e em Portugal, não há um meio constitucionalmente previsto para compelir o legislador a fazê-lo. De qualquer modo, desde que respeitado o núcleo essencial do direito social, qualquer ação estatal que lhe dê alguma efetividade desconfigura a condição de inadimplência do legislador.

Canotilho, por sua vez, reconhece a possibilidade das normas de direitos sociais gerarem direitos subjetivos à reclamação judicial para manutenção do nível de realização do direito constitucional e proibição de qualquer “tentativa de retrocesso social”.335 O autor é contrário à tese de total

correlação entre dever-objetivo e direito-subjetivo proposto por Kelsen.336 Nesse

sentido, reconhece que

direito subjectivo social, economico e cultural — imposições legiferantes e prestacoes não devem confundir-se. O

reconhecimento, por exemplo, do direito à saúde, é diferente da imposição constitucional que exige a criação do Serviço Nacional de Saúde, destinado a fornecer prestações existenciais imanentes àquele direito.337

Já os direitos a uma prestação determinada só podem ser exercitados se presentes, como enuncia Alexy, o destinatário, o titular do direito e o objeto determinado.338 Ocorre que as normas de direitos sociais raramente

determinam tais elementos, o que depende de uma densificação legislativa, sem a qual não há que se falar em direitos subjetivos.

334 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional..., cit., p. 574.

335 Segundo Canotilho, tais imposições constituiriam os direitos originários a prestações e sua

concretização por atos normativos infraconstitucionais corresponderiam a direitos derivados a prestações. Reconhece o autor que para a maior parte dos juristas, os direitos a prestações seriam normas programáticas, e não imposições constitucionais e, portanto, não gerariam direitos subjetivos. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 366; 374.

336 KELSEN, Hans. Teoria pura..., cit., p. 140-1.

337 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 368. 338 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos ..., cit., p. 43; 195-6; 202-3.

Tais direitos prestacionais, ou de créditos dos indivíduos perante a coletividade, como prefere chamar Celso Lafer339, podem consistir,

portanto, em direitos subjetivos a prestações sociais, na medida em que a lei preveja um direito líquido e certo a certa prestação estatal. É o caso, v.g., da lei que regulamenta os benefícios assistenciais. Uma vez determinado que todo cidadão, ao atingir certa idade ou tempo de serviço, fará jus à percepção de uma pensão mensal, tal prestação torna um direito subjetivo – porquanto possui um valor e natureza certa determinada e exigível do Estado. No caso, porém, de determinada lei instituir as bases gerais que devem informar determinada prestação social, sem definir seu quantum e requisitos para concessão, não há um direito subjetivo a tais prestações, mas igualmente um direito subjetivo de exigir uma ação estatal. Ambas por vezes se confundem.

Não obstante, a constatação de que alguns direitos sociais podem criar posições jurídicas ativas correlatas não é suficiente para defender a tese da unidade dogmática. Há não apenas uma distinção estrututal, mas de potencial de restrição. Como assevera Jorge Reis Novais, se os direitos de liberdade podem ser restringidos, também podem os direitos sociais, sobretudo porque neste caso deve-se observar a reserva do financeiramente possível.340

2.6.2.5. Posição adotada

A tese da unidade dogmática, assim, carece de argumentos propriamente científicos, afeiçoando-se mais a uma espécie de ativismo doutrinário.

Nesse tema a posição adotada pelo TC parece ser, de fato, a que melhor reflita a distinção que deve ser feita entre ambas as categorias de direitos e a acomodação dessa distinção com os princípios presentes no Estado português e, com suas peculiaridades, nos demais Estados sociais.341

De fato, em primeiro lugar, se o constituinte quisesse unificar o regime, teria dito expressamente, pois não se presume o erro do

339 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de hannah

Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 127 e 130/131.

340 NOVAIS, Jorge Reis. Princípios constitucionais..., cit., p. 304-6. 341 Ibid., p. 9.

legislador.342 Por isso, há que se entender que o regime aplicável a uma norma de

direito social dependerá da sua estrutura normativa. Se uma norma tiver estrutura idêntica a uma norma de direito de liberdade, poderá ser aplicado os princípios decorrentes do regime de direitos de liberdade, consoante dispõe o artigo 17.º.343

Se não, isso não impedirá a aplicação de princípios que informam os direitos fundamentais como um todo e que podem ser extraídos da conceção de Estado de direito, mediante uma interpretação que observe os postulados da lógica e do rigor científico, bem como a legitimidade democrática prevista no arranjo institucional do sistema jurídico em questão.344