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3 COMPETÊNCIA COMUNICATIVA E PERSPECTIVA

3.7 A CONSTRUÇÃO DA PERSPECTIVA INTERCULTURAL NO CONTINENTE

Candau e Russo (2010) destacam a importante contribuição de Paulo Freire para a construção da perspectiva intercultural no continente latino-americano. Assim como elas, vários outros autores ratificam essa constatação, como Candau (2009), Walsh (2009) e Santiago, Akkari e Marques (2013). Esse último é um educador brasileiro e fez emergir o universo cultural dos educandos na sala de aula, ao instaurar os denominados “círculos de cultura”, de Freire, na alfabetização de adultos, os quais deixaram cair por terra a hierarquização das culturas existentes, instaurando a relação dialógica entre culturas diferenciadas.

No entanto, bem antes disso, no livro Pedagogia do Oprimido, considerado uma de suas maiores obras, Freire (1987), desde 1970 já preconizava uma educação pautada na prática da liberdade. Ela tornou-se possível a partir de uma pedagogia problematizadora, contrária à pedagogia bancária, hierárquica em sua natureza, através da instauração do diálogo entre educador e educando, numa via de mão dupla, como premissa básica para que ambos se tornem sujeitos do processo.

De acordo com Freire (1987, p. 37), “a prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia”. Sua “denúncia” do quão longe encontram-se das práticas democráticas aqueles que praticam atos de violência, preconceito e discriminação contra meninos, mulheres, camponeses e negros, inaugurou um marco em relação à conscientização política e cultural das classes populares, oprimidas e excluídas socialmente. Essa formação voltada para questões inerentes ao contexto sociocultural e político dos aprendizes provocou grandes mudanças na educação de adultos, com grande repercussão em outras modalidades.

Uma explicação plausível para o acirramento dos conflitos na pós-contemporaneidade, reside no processo de homogeneização cultural consolidada “por uma cultura comum, de base ocidental por parte da escola” (CANDAU; RUSSO, 2010, p. 154), ao difundir uma cultura eurocêntrica, de base ocidental, silenciando as vozes, crenças, saberes e sensibilidade.

Sob essa ótica, emerge a afirmação da diferença, cujas problemáticas são reveladas pelos diversos movimentos sociais que, em suas denúncias e reivindicações acerca das desigualdades, injustiças e marginalizações das quais são vítimas, requerem a igualdade de

direitos, dentre eles, o acesso aos bens e serviços, assim como o reconhecimento da identidade cultural.

Candau e Russo (2010) tecem, ainda, uma crítica à apologia da mestiçagem ou mito da democracia racial por veicular a falsa ideia de uma cordialidade entre os diversos grupos étnico- raciais e influenciarem na eliminação do conflito, evidenciando a sua contribuição para mascarar o reconhecimento do racismo nas sociedades. Elas retratam as principais medidas de combate ao preconceito e eliminação do estereótipo por meio da educação, as quais são encabeçadas pelos movimentos negros dos países latino-americanos, tais como:

[...] políticas orientadas ao ingresso, permanência e sucesso na educação escolar, valorização das identidades culturais negras, incorporação nos currículos escolares e nos materiais pedagógicos de componentes próprios das culturas negras, assim como processos híbridos de resistência vividos pelos grupos negros e suas contribuições à construção histórica de diferentes países (CANDAU; RUSSO, 2010, p. 160).

Entretanto, Santiago, Akkari e Marques (2013) discutem sobre os limites e distâncias entre as proposições teórico-legislativas e as práticas institucionais e atitudinais de seus autores, e apesar de reconhecerem os avanços na legislação, produções acadêmicas e produção científica voltados para a perspectiva cultural, reconhecem as raras, incipientes e muitas vezes inexistentes reformulações dos valores, das políticas e das práticas que sustentam as instituições escolares. A sua abordagem remonta às bases da colonização no Brasil, no silenciamento das vozes, culturas e saberes de determinados grupos, assim como a consolidação de uma cultura de base ocidental eurocêntrica, tal qual a evidenciada por Candau e Russo (2010).

Em suas considerações, alegam a falta de preparo do sistema público brasileiro quanto ao tratamento da interculturalidade e sugerem a adoção da perspectiva intercultural na escola extensiva a todos os seus atores, como forma de combate à intolerância, através da problematização dos discursos e da formação de profissionais da educação bem orientados para saberem lidar com as diferenças em sala de aula.

A despeito da polissemia conceitual que envolve o termo “intercultural”, Mendes (2007, p. 120) o compreende como aquele que “pode designar as interações comunicativas entre indivíduos de classes sociais diferentes, grupos profissionais diferentes, entre gays e heterossexuais, entre homens e mulheres, por exemplo.” Dessa forma, essa acepção extrapola o conceito de interculturalidade, por exemplo, entre pessoas ou grupos de nacionalidades ou de idiomas diferentes.

Nessa direção, a perspectiva intercultural está emergindo no país, em seu próprio processo e particularidades e alguns pesquisadores defendem a “[...] adoção de uma interculturalidade crítica no contexto educacional brasileiro [...]” (SANTIAGO; AKKARI; MARQUES, 2013, p. 25), cuja adoção suscitará “uma revisão criteriosa na forma pela qual o Brasil e suas culturas têm sido representados na escola e na universidade” (SANTIAGO; AKKARI; MARQUES, 2013, p. 25).

A interculturalidade crítica, nesse caso, ainda está sendo gestada e “parte do problema do poder, seu padrão de racialização e da diferença (colonial, não simplesmente cultural) que foi construída em função disso” constitui-se como um processo em construção a partir das pessoas que possuem em seu histórico a subalternização e exclusão, de acordo com Walsh (2009, p. 21), diferente da interculturalidade funcional que, em sua opinião, destina-se a atender dispositivos nacionais sobre diversidade cultural, seu reconhecimento e inclusão, deixando, porém, de fora os dispositivos e padrões de poder institucional-estrutural que mantém a desigualdade.

Esta posição é corroborada por Candau (2009), para quem esse tema tem uma relevância especial na América Latina devido à sua evidência na atualidade, tanto pela sua complexidade, quanto por ser atravessado pelas grandes tensões da contemporaneidade.

No trabalho intitulado Educação Intercultural na América Latina: Tensões atuais, Candau (2009) apresenta uma síntese da evolução histórica da educação intercultural no continente e seus principais atores, discute sobre as principais tensões da atualidade na América Latina, e finaliza seu texto com ênfase nos desafios que considera centrais para o fortalecimento dos processos democráticos no continente, ressaltando a complexidade e originalidade desse tema.

Após ampla pesquisa, a autora atribui o surgimento do termo interculturalidade à América Latina, a partir do viés educacional, mais precisamente o associa ao contexto educacional indígena e sua definição conceitual é atribuída a dois linguistas antropólogos venezuelanos: Mosonyi e Gonzalez, de acordo com Quiroz (2007 apud CANDAU, 2009).

Candau (2009) evidencia as quatro etapas alusivas ao desenvolvimento da educação escolar indígena que foram muito importantes ao servirem de base para a implantação e crescimento da educação intercultural no continente. Em síntese, essas etapas constituem-se em eliminação do “outro”, marcada pela extrema violência etnocêntrica, desde o período colonial até as primeiras décadas do século XX; a etapa da assimilação, com o surgimento das primeiras escolas bilíngues para os povos indígenas, com o objetivo de civilizar e alfabetizar, em sua grande maioria, até 1970 e por fim, a etapa de integração entre a manutenção da própria cultura

e do bilinguismo, com influência das lideranças comunitárias, universidades e alguns setores da igreja católica.

Sobre a ampliação da relação entre educação e interculturalidade, além da educação intercultural indígena, a autora destaca a participação de outros grupos para a sua ampliação, como os movimentos negros latino-americanos, as experiências de educação popular com a contribuição de Paulo Freire e o reconhecimento e inserção do caráter multiétnico, pluricultural e multilíngue nas Constituições dos países do continente.

Ela ressalta que o movimento negro, com sua resistência e luta contra o racismo e a discriminação tem obtido êxito nas políticas de reparação dos estados e sociedades pelos danos sofridos no regime escravocrata, a priori, aquelas voltadas para a educação escolar, que visam o ingresso, a permanência e o sucesso dessa população nesse ambiente. Outras contribuições relativas à valorização da identidade negra atribuídas a esses movimentos estão materializadas nos currículos e materiais pedagógicos que aos poucos já trazem questões voltadas para a sua cultura e os processos históricos de resistência.

Apesar dos ganhos inerentes à introdução da perspectiva intercultural em nosso continente, traduzida em mudanças curriculares, políticas públicas e o despontar de uma visão inerente às diferenças de várias ordens, é pertinente lembrar as tensões existentes quanto à complexidade de sua problemática.

Como reflexo das lutas travadas pelos movimentos sociais nas etapas anteriores, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio trazem orientações acerca dos princípios que devem balizar o Projeto Político Pedagógico da escola, a fim de contribuir para a construção de uma sociedade livre do preconceito, discriminação e violência, cabendo a sua realização inclusive pelo colegiado e representação estudantil, dentre os quais, destacam-se:

• A consideração de professores e estudantes “como sujeitos históricos e de direitos, participantes ativos e protagonistas na sua diversidade e singularidade”;

• A prática de um humanismo que reconheça os direitos humanos contemporâneos, alicerçado no comportamento ético de respeito e solidariedade acolhedora da identidade do outro;

• O reconhecimento da diversidade, desigualdade e exclusão de uma parcela significativa da sociedade brasileira;

• O enfrentamento de todas as formas de preconceito, discriminação e violência, através da promoção dos direitos humanos, consoante o trabalho com temas inerentes a gênero, raça e etnias, religião, orientação sexual, deficiências e outras (BRASIL, 2013, p. 202-203).

Nota-se a importância do Projeto Político Pedagógico da escola como principal condutor de ações pragmáticas a serem implementadas em todo o contexto escolar, leia-se aqui em todas as disciplinas ou componentes curriculares norteadores do ensino, não apenas em Língua Portuguesa. De acordo com Paraquett (2011), vivemos em sociedades que se caracterizam como espaços híbridos, de entrecruzamentos de identidades e de culturas, nas quais é preciso que haja movimentos em prol dos direitos humanos e do rompimento de barreiras que separam homens, línguas e culturas. Portanto, tanto em Língua Portuguesa quanto em outras disciplinas e/ou componentes curriculares, a interculturalidade não deve ser tratada apenas como um tema transversal e sim como uma prática incorporada ao ambiente escolar e evidenciada em livros didáticos (LD), textos, conteúdos, programas de ensino, etc. e, principalmente, na postura assumida pelo professor em sala de aula.