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2 LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDO DE CRENÇAS

2.7 AS NOÇÕES DE POLIDEZ E FACE FRENTE AO ESTUDO DE CRENÇAS

Goffman (1959) introduziu o termo “face” em 1950, a partir da expressão idiomática to lose face, cujo significado é sentir-se humilhado, envergonhado, constrangido, quebrar a cara ou perder a moral. Esse termo foi adotado pela Sociolinguística Interacional e pela Etnografia da Comunicação e está relacionado à autoimagem pública que um falante possui interiorizada e a utiliza numa situação de interação, na qual negocia de acordo com as normas e valores estabelecidos pelos membros de uma comunidade. Através da utilização desse conceito é possível compreender a coordenação dos comportamentos linguísticos dos falantes e os conhecimentos culturais acionados para constituição da identidade social.

O modelo de Brown e Levinson (1987) de polidez ou Teoria de Polidez está relacionado de forma intrínseca à teoria da face de Goffman (1955; 1959) que com base em noções de face e território, o nomearam de face positiva e negativa. No entanto, Brown e Levinson (1987) revelam interesse por atos de linguagens e os efeitos desses nas faces dos participantes. De acordo com esse modelo, os indivíduos, de forma geral, possuem uma face positiva e uma face negativa que correspondem, respectivamente (i) à necessidade de pertencer a um determinado grupo e (ii) à necessidade de ser respeitado e ser tratado com deferência.

Em Yule (1996 apud VICENTE, 2010, p. 323) encontramos os seguintes exemplos de face positiva e negativa:

a. Excuse me, Mr Buckingham, but can I talk to you for a minute?

‘Com licença, Mr Mr Buckingham, mas posso falar com o Senhor por um minuto?’

b. Hey, Bucky, got a minute?

‘E aí Bucky, posso falar um minutinho com você?’

Segundo Vicente (2010), a primeira situação é própria da face negativa, pois retrata respeito e deferência, através das marcas linguísticas próprias, demonstrando a distância social entre o locutor e seu interlocutor. A segunda situação reflete camaradagem e intimidade com o seu interlocutor, ou seja, a sua face positiva. Em ambas as situações, o falante demonstra ciência das escolhas necessárias para atingir o objetivo interacional.

Vicente (2010) defende a ideia de que os conceitos de face positiva ou negativa podem ser aplicados de maneira universal, com base em O’Driscool (2008) e argumenta sobre as importantes contribuições que o estudo das teorias de polidez e face podem trazer ao estudo de crenças. Já para o próprio O’Driscool (2008), face é algo que o indivíduo tem e polidez é aquilo que o indivíduo faz. A partir de uma situação de interação, polidez, nesse caso, é vista como o meio empregado para demonstrar que estamos conscientes da face do outro. Portanto, corresponde à participação oportuna e construtiva em situações de interação oral.

[...] a polidez se manifesta não apenas no conteúdo da conversa, mas também na maneira como a conversa é gerenciada e estruturada por seus participantes. Por exemplo, o comportamento conversacional, como falar no momento errado (interrompendo) ou ficar em silêncio na hora errada, tem implicações indelicadas. Consequentemente, às vezes achamos necessário nos referir aos atos de fala nos quais nós ou nossos interlocutores estamos engajados, a fim de solicitar uma resposta, pedir permissão para falar, pedir desculpas por falar, etc. (LEECH, 1983, p. 139).22

Sabemos o quanto o ato de interação pode ser complexo em determinadas circunstâncias, tornando-se, de certa forma, ameaçadores a uma ou a outra face dos interlocutores. Isso é que faz com que cada participante tente conservar intacta a sua face positiva. Para minimizar essa questão, Goffman (1959) enfoca o trabalho de figuração denominado face work, para indicar o empenho realizado por uma pessoa para que ninguém, nem mesmo ela própria, venha a perder sua a face.

Os sujeitos de uma interação são chamados de MPs (Model Persons)23 por Brown e Levinson (1987) e são subdivididos em S (speaker)24 e H (hearer, addressee)25. De acordo com os autores, o MP seria o falante fluente e com vontade própria de uma língua natural possuindo racionalidade e face como propriedades especiais. A sua concepção de racionalidade para o MP passa pelo viés de uma maneira definida de raciocínio, tendo em vista o objetivo que se quer atingir para, em seguida, estabelecer os meios apropriados para esse fim. A face do MP possui necessidades particulares voltadas para a dependência de aprovação em alguns aspectos e precisa estar desimpedida. Esses autores pressupõem a existência de um acordo tácito entre os interlocutores numa interação a partir da cooperação mútua, a fim de preservar a face do falante e do ouvinte, numa via de mão dupla e estabeleceram a subdivisão dos atos de linguagem em quatro categorias, de acordo com a suscetibilidade de ameaça de face, conforme a seguinte descrição:

(1) atos ameaçadores da face negativa do emissor: promessas, pelas quais empenhamo- nos em fazer, em um futuro próximo ou distante, qualquer coisa que evite lesar o nosso próprio território;

(2) atos ameaçadores da face positiva do emissor: confissões, desculpas, autocríticas e outros comportamentos autodegradantes;

(3) atos ameaçadores da face negativa do destinatário: ofensas, agressões, perguntas “indiscretas”, pedidos, solicitações, ordens, proibições, conselhos e outros atos que são, de alguma forma, contrários e impositivos;

(4) atos ameaçadores da face positiva do destinatário: críticas, refutações, censuras, insultos, escárnios e outros comportamentos vexatórios.

Considerando a vulnerabilidade da imagem social, e a utilização de recursos para minimizar a ameaça à face, Brown e Levinson (1987) observam as opções estratégicas que poderão minimizar o risco para a imagem dos participantes. São elas:

a) fazê-la de forma direta, sem ação reparadora;

b) fazê-la, com polidez positiva: aponta para face positiva do ouvinte, de maneira que demonstra que em algum nível o falante deseja as mesmas coisas que o ouvinte (mostra pertencimento ao mesmo grupo);

c) fazê-la, com polidez negativa: Aponta para satisfazer a face negativa do ouvinte; seus desejos básicos de manutenção de território e de autodeterminação;

23 Pessoas-Modelo.

24 Falante.

d) fazê-la de maneira encoberta, de forma indireta; e) não fazê-la.

Consequentemente, esses autores elaboraram um esquema contendo estratégias de polidez, sendo 15 positivas, 10 negativas e 15 de indiretividade, dispostas no clássico esquema mostrado a seguir:

Quadro 3 – Estratégias de polidez

Fonte: adaptado do modelo de Brow e Lewinson (1987[1978]).

ESTRATÉGIA

Polidez positiva

1. Note o ouvinte; dê atenção aos seus interesses e necessidades 2. Exagere o interesse e a solidariedade em relação ao ouvinte 3. Intensifique o interesse em relação ao ouvinte

4. Use marcas de identidade do grupo 5. Procure concordar

6. Evite discordar

7. Pressuponha, promova, assegure pontos em comum 8. Brinque, faça piada

9. Pressuponha ou assegure-se de que o falante está ciente e preocupado com as necessidades do ouvinte

10. Ofereça, prometa 11. Seja otimista

12. Inclua tanto o falante quanto o ouvinte na atividade 13. Forneça (ou peça) razões

14. Suponha ou assegure reciprocidade

15. Dê presentes para o ouvinte (de ordem material, ou solidariedade, compreensão, cooperação)

Polidez negativa

1. Seja convencionalmente indireto 2. Questione, use de evasivas 3. Seja pessimista

4. Minimize a imposição 5. Expresse deferência 6. Peça desculpas

7. Impessoalize o falante e o ouvinte 8. Estabeleça o FTA como regra geral 9. Faça uso de substantivação

10. Seja direto, porém ciente de que está contraindo uma dívida, e não endividando o ouvinte

Indiretividade

1. Insinue

2. Forneça pistas de associação 3. Pressuponha

4. Relate de forma atenuada 5. Relate de forma exagerada 6. Faça uso de tautologias 7. Faça uso de contradição 8. Seja irônico

9. Faça uso de metáforas

10. Faça uso de perguntas retóricas 11. Seja ambíguo

12. Seja vago 13. Hipergeneralize 14. Desloque o ouvinte 15. Faça uso de elipse

Esse influente modelo de Brow e Levinson (1987), muito embora tenha embasado muitos trabalhos teóricos sobre a polidez, tem sido bastante criticado, sobretudo quanto à sua aplicação universal (VICENTE, 2010), de maneira que tem surgido levantamentos de questões inerentes à noção de face, pela sua imprecisão, dentre outros, tais quais os elencados por Bargiella- Chiappini (2003) e Watts (2005). Esses autores consideram que o etnocentrismo e a relativização cultural presentes no modelo de polidez podem interferir na análise da polidez linguística entre diferentes culturas no que diz respeito às variáveis como distância social e poder relativo.

Por outro lado, Vicente (2010) apoiou-se nos estudos de Goffman (1959), Dufva (2003), Barcelos (2006) e Vicente e Ramalho (2009) para constatar a utilização das estratégias de polidez no discurso dos alunos que foram investigados sobre crenças associadas às marcas linguísticas. Ao referir-se ao trabalho de Vicente e Ramalho (2009, p. 339), disse o seguinte:

As autoras procuraram investigar as marcas linguísticas observáveis, portanto – presentes no discurso dos alunos com o objetivo de captar algum comportamento (linguístico) recorrente que lhes fornecesse pistas sobre as crenças que queriam investigar. Notaram haver no discurso dos alunos, grande quantidade de justificativas exacerbadas para os erros cometidos, além de comentários auto-depreciativos e sentenças com marcas de impessoalização (tais como ‘a gente’ e ‘você’, entre outras). Tais comportamentos correspondem a algumas das estratégias de polidez negativa descritas por B&L e difundidas na literatura sobre a polidez linguística.

A constatação levou Vicente (2010) a perceber que é possível utilizar estratégias de polidez para o estudo de crenças, pois a partir desse estudo, foi possível para Vicente e Ramalho (2009) estabelecerem relações entre crenças com algumas generalizações, conforme quadro apresentado a seguir. Porém, essas estratégias de polidez, como sugerem os autores, não devem ser abordadas de forma isolada, mas em seu contexto específico de uso.

Quadro 4 – Relações entre crenças: algumas generalizações

(I) Crenças centrais são mais facilmente inferíveis do que crenças periféricas;

(II) O processo de inferência de crenças periféricas deve ter início após a inferência de da crença central associada a elas;

(III) a facilidade com que uma crença é inferida é inversamente proporcional à facilidade com que é alterada.26

Fonte: Elaborado por Vicente e Ramalho (2009, p. 240).

26 De acordo com Vicente (2010, p. 341) “Generalização feita com base no pressuposto em Pajares (1992) de que

A partir do processo de inferência de crenças, segundo Vicente (2010, p. 342) foi possível identificar “discrepâncias entre o que os alunos diziam acreditar e aquilo em que realmente acreditavam a respeito da correção individualizada”. Com essa exposição, o autor pretende alertar para a observação de pistas tangíveis na superfície, visíveis por meio de escolhas linguísticas feitas pelos falantes no estudo de crenças e a possibilidade de estudá-las à luz das teorias de polidez.

Além dos estudos das crenças, essas estratégias de polidez poderão servir de auxílio para professores que desejam minimizar os conflitos em sala de aula, pois conscientes dos efeitos provocados por elas, poderão conduzir melhor os exercícios de linguagem orientados para o empoderamento dos(as) alunos(as) no ensino de línguas.

Findo esse capítulo, passaremos agora para a competência comunicativa e perspectiva intercultural no ensino-aprendizagem de PLM.

3 COMPETÊNCIA COMUNICATIVA E PERSPECTIVA INTERCULTURAL NO