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2 LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDO DE CRENÇAS

2.4 CRENÇAS E VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

Para Milroy (2011) a crença na existência da forma padronizada da língua, afeta a forma como os falantes veem a sua própria língua e as demais. É o que nomeia como “culturas de língua padrão”. No entanto, admite a influência de ideologias ocultas no campo linguístico, que possivelmente distorceram o nosso pensamento sobre o tema. Um exemplo que dá para isso é a utilização pela Sociolinguística quantitativa da interpretação das diferenças linguísticas entre os sexos dos falantes, com base em critérios determinados pelo padrão ou prestígio como questões intimamente associadas.

Ele discute sobre a forma como a padronização das línguas andou de mãos dadas com a elevação do comércio internacional e do capitalismo, e chama a atenção para os objetivos comerciais, econômicos e políticos do processo, em substituição aos objetivos linguísticos. Em sua acepção, advém dessas questões, a crença na correção que o falante possui na existência de apenas uma variante correta frente a duas ou mais variantes. Portanto, as razões podem deixar de ser intralinguísticas para passarem a fazer parte do senso comum cultural de uma dada comunidade.

A ideologia da padronização baseada no senso comum não leva em consideração o conhecimento linguístico e as competências que o aluno já traz quando adentra a escola. Ademais, alimenta a crença de que a escola é o local em que verdadeiramente se aprende a língua.

Essa ideologia exige que aceitemos que a linguagem (ou uma língua) não é algo que os falantes nativos possuem: eles não são pré-programados com uma faculdade de linguagem que lhes permite adquirir (ou desenvolver) ‘competência’ na língua sem ser formalmente ensinados (se for admitido que eles estão equipados com tal faculdade, isso é tratado como algo desimportante). O que eles adquirem de modo informal antes da idade escolar não é confiável e não plenamente correto ainda (MILROY, 2011, p. 60).

Na verdade, ainda prevalece, em alguns professores, esse pensamento de que a escola é o verdadeiro e único lugar onde a aprendizagem da língua acontece. Por isso, o senso comum

alimenta a ideia de que “é preciso ensinar às crianças as formas canônicas da sua própria língua nativa, sobretudo na escola” (MILROY, 2011, p. 60).

Por sua vez, Sherre (2005) nos mostra, através de uma reflexão, que o preconceito linguístico9 é o maior problema de ensino de Língua Portuguesa. Isso porque não se pode

ensinar o que os alunos já sabem. Nesse caso, ela critica o ensino tradicional de Língua Portuguesa ao voltar-se para a gramática normativa de Língua Portuguesa, a escrita de Língua Portuguesa ou a leitura em Língua Portuguesa. Em continuidade à reflexão proposta por Sherre (2005), encontramos em Antunes (2007, p. 21) uma discussão sobre a crença ingênua de que “para se garantir eficiência nas atividades de falar, de ler e de escrever, basta estudar a gramática (quase sempre nomenclatura gramatical), até a crença, também ingênua de que não é para ensinar gramática”. Essas crenças, segundo a autora, servem para fortalecer o preconceito linguístico e evidenciar os inúmeros conflitos inerentes ao caráter da gramática.

O que Antunes (2007) quer dizer com as afirmações anteriores é que o ensino de gramática deve ser aliado ao ensino das normas textuais e sociais de uso da língua para que o falante possa transitar bem, sabendo quando e em que situação alguma coisa pode ser dita e, para que isso aconteça, é necessário a atuação dos professores de língua portuguesa na escola, porque se trata de “um conjunto tão complexo e heterogêneo de regras e normas, que, ainda por cima admitem toda a flexibilidade permitida pela natureza eminentemente funcional da língua” (ANTUNES, 2007, p. 51).

Para Sherre (2005), o grande problema é que sua larga experiência com a língua falada evidencia a estreita ligação entre as mudanças linguísticas e os grupos sociais com os quais mantemos interação. Porém, isso não depende apenas do ensino formal e sim da necessidade que temos de identificação com esses grupos.

A partir desse ponto, a autora tece uma crítica contundente ao ensino de gramática pela forma rígida como ele normalmente ocorre, excluindo ou considerando um “erro” tudo aquilo que não está registrado ou codificado. De acordo com suas palavras “o ensino normativo tem o objetivo explícito de banir da(s) língua(s) formas ditas empobrecedoras, formas ditas desviantes, formas consideradas indignas de uma língua bem falada e, portanto, consideradas indignas de serem usadas por homens de bem” (SHERRE, 2005, p. 42).

A questão que se coloca é que juntamente com as formas linguísticas tidas como indesejáveis, banem-se também as pessoas que as utilizam, devido ao fato de serem pessoas de

9 Segundo Scherre (2005, p. 89) o preconceito linguístico está configurado na “divisão entre classes e exclusão social,

classe social desprestigiada. A autora alerta ainda para o fato de que essas formas são também produzidas por pessoas de classe social prestigiada, porém em menor quantidade.

Em suas considerações sobre o tema, Sherre (2005) retrata a confusão existente entre gramática normativa e língua, diferenciando a codificação de uma norma padrão escrita baseada em escritores consagrados, acrescidas de alguns aspectos linguísticos das variedades de prestígio10 da língua real, ou seja, um sistema transmitido naturalmente por gerações e que não

se rendeu às descrições e explicações de linguistas brilhantes.

Sua denúncia sobre isso inclui a prática da injustiça social em virtude do ensino da boa língua, retratada na não aceitação de um dos bens culturais mais preciosos do falante que é o domínio inconsciente e pleno do sistema de comunicação próprio da comunidade na qual ele está inserido. Milroy (2011) alerta, então, para o fato de que aqueles que estabelecem esse juízo desfavorável em relação ao uso “incorreto” da língua acreditam que são opiniões apenas de cunho linguístico, alicerçadas em autoridades linguísticas. Porém, é mais uma crença cuja origem está na padronização. Sherre (2005, p. 43) vai mais além quando fala do papel exercido pela escola e pela sociedade quanto à contribuição para que isso aconteça:

[...] a escola e a sociedade – da qual a escola é o reflexo ativo – fazem associações perversas, sem respaldo linguístico estrutural, entre o domínio de determinadas formas linguísticas e beleza ou feiura; entre o domínio de determinadas formas linguísticas e elegância ou deselegância; entre o domínio de determinadas formas linguísticas e competência ou incompetência; entre o domínio de determinadas formas linguísticas e inteligência ou burrice (SHERRE, 2005, p. 43).

De mãos dadas com esse pensamento, Antunes (2002, p. 131) discorre sobre a crença de falantes numa “gramática onipotente, capaz de exaurir as exigências de funcionamento da língua e de garantir o êxito de qualquer atuação verbal” que reverbera na crença de que a pessoa que sabe gramática é mais preparada para a vida em sociedade. Ao resgatar as concepções mais amplas sobre “língua” e sobre as funções e limites da “gramática de uma língua”, Antunes (2002) admite a regulação das línguas pela gramática e vice-versa, em suas múltiplas relações. No entanto, a autora alerta para a insuficiência da gramática no que diz respeito à adequada atuação verbal. Ela afirma, dessa forma, que o deslocamento para a concepção de uma língua cujo sistema se realiza em forma de texto, deslocaria o objeto de ensino para o texto, posição diferente da assumida no ensino gramatical.

Às regras da gramática para a boa formação de frases se somam outras decorrentes dos decursos textuais; e, ainda, a essas, se somam outras normas, de natureza social, não menos pertinentes, não menos definidas, não menos preceituadas, que provêm das convenções sociais dos tipos de interação e que determinam igualmente a adequação e a relevância da atividade verbal (ANTUNES, 2002, p. 131).

Portanto, para a instauração do texto, de acordo com sua opinião, é necessária primeiramente uma função comunicativo-social que se traduz como propriedade linguística do que é dito, mas, sobretudo, como relevância sociocomunicativa do que é dito. A autora vai além, afirmando que não basta saber gramática para falar, ler e escrever com sucesso (ANTUNES, 2007), considerando que este é o grande equívoco de professores, pais e comunidade escolar de forma geral. De forma mais ampla, encontramos em Sankoff (1988) uma posição crítica semelhante ao defender o papel social emancipador da linguística em conflitos ideológicos, desde que se proponha a realizar reflexões sócio científicas do uso da linguagem a partir da sua função comunicativa.

Se analisarmos o conceito de norma culta proposto por Antunes (2007) teremos uma aproximação com o conceito de competência comunicativa proposto por Hymes (1972), pois aquela o associa “à dimensão do sistema em uso, de sistema preso à realidade histórico-social do povo, brecha por onde entra a heterogeneidade das pessoas, dos grupos sociais, com suas individualidades, concepções, interesses e pretensões” (ANTUNES, 2009, p. 21). A autora ressalta o caráter interativo da língua, a mobilidade e heterogeneidade de seus usuários no que se refere à norma culta real. Para essa autora,

A norma culta real, no entanto, corresponde àqueles usos que são fato, ocorrência; isto é aqueles que podem ser atestados como concretamente realizados, em diferentes suportes em que se expressam cientistas, escritores, repórteres, cronistas, editorialistas, comentaristas, articulistas, legistas e outros “istas” da comunidade encarregada da comunicação pública e formal (ANTUNES, 2007, p. 93).

Da mesma forma, a autora observa o quão complexo é classificar a norma padrão, pois além das implicações políticas e socioeconômicas dos grupos, não está imune às ideologias existentes no campo da linguagem. Portanto, ela argumenta que a norma culta deve utilizar os usos linguísticos cotidianos que as pessoas fazem da língua como parâmetros para a sua definição.

No entanto, nem sempre há um trabalho efetivo e sistematizado em torno da oralidade em sala de aula, sendo muitas vezes relegada a segundo plano, em função de se privilegiar o

trabalho com a escrita, prejudicando dessa forma a ampliação da competência dos alunos. Segundo Antunes (2007, p. 24), a ausência de um trabalho significativo com a oralidade pode ser explicada por “uma quase omissão da fala como objeto de exploração no trabalho escolar; essa omissão pode ter como explicação a crença ingênua de que os usos orais da língua estão tão ligados à vida de todos nós que nem precisam ser matéria em sala de aula”.

Nessa mesma direção, Bagno (1999), em um tom marcadamente politizado e até certo ponto, irônico, aborda sobre o preconceito linguístico, um tema atual, muito embora o seu livro não o seja, aludindo a sua existência à confusão que foi criada entre língua e gramática refletida na negação da variedade da fala das diferentes classes sociais nos múltiplos espaços geográficos. Sendo assim, a intolerância, de forma geral, “é fruto de uma visão de mundo estreita, inspirada em mitos e superstições que têm como único objetivo perpetuar os mecanismos de exclusão social” (BAGNO, 1999, p. 11). Em sua discussão sobre o tema, o autor aponta aquilo que denominou de Mitologia do preconceito linguístico, a qual atribui a existência de oito mitos:

• Mito nº 1: A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente;

• Mito n° 2: Brasileiro não sabe português” / “Só em Portugal se fala bem português; • Mito n° 3: Português é muito difícil;

• Mito n° 4: As pessoas sem instrução falam tudo errado;

• Mito n° 5: O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão; • Mito n° 6: O certo é falar assim porque se escreve assim;

• Mito n° 7: É preciso saber gramática para falar e escrever bem;

• Mito n° 8: O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social.

Através de argumentos plausíveis, Bagno (1999) vai desconstruindo um a um os mitos existentes, responsáveis pelo preconceito. Porém, por uma questão de objetividade, nos deteremos em alguns pontos específicos relacionados aos mitos nº 1, 2, 4,7 e 8:

O mito nº 1, alusivo à unidade da língua portuguesa falada no Brasil, por exemplo, é desmistificado pelo autor que ressalta o alto grau de diversidade e variabilidade linguística existente no país. A questão, em sua ótica, vai além da grande extensão territorial e pode ser explicada pela injustiça social e má distribuição de renda, o que provoca um abismo linguístico entre falantes das variedades não-padrão do português brasileiro e os falantes da suposta variedade culta ensinada na escola. Em suas considerações, Bagno (1999), incita os leitores a

abandonarem o mito da unidade do português brasileiro e reconhecerem a verdadeira diversidade linguística de nosso país. Consideramos que a despeito do padrão da língua escrita em nosso país, quanto à oralidade, a unicidade está distante de ocorrer.

O mito n° 2, em suas palavras, “refletem o complexo de inferioridade, o sentimento de sermos até hoje uma colônia dependente de um país mais antigo e mais ‘civilizado’” (BAGNO, 1999, p. 19). Sentimento de inferioridade que sobrevive até os nossos dias e tem relação com o preconceito quanto à mistura de raças existente no Brasil e à visão de que a raça negra e indígena é inferior à branca, e como consequência o português falado aqui não é tão puro quanto o falado em Portugal, sem levar em conta as regras próprias de funcionamento da língua no contexto brasileiro.

Para Bagno (1999), a existência do mito nº 4 de que as pessoas sem instrução falam tudo errado reflete o mito nº 1, segundo o qual a única língua portuguesa digna desse nome é ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e catalogadas no dicionário. Dessa forma, o preconceito linguístico existente leva as pessoas a considerarem o que se distancia disso como feio, errado, estropiado, deficiente e rudimentar.

Quanto ao mito nº 7 que preconiza ser necessário saber gramática para falar e escrever bem, Bagno (1999) o contrapõe com o argumento de que apesar de muitos escritores declararem que não suportam gramática, não deixam de ser considerados grandes escritores por causa disso. De acordo com seu ponto de vista, o que ocorreu para a criação desse mito foi uma inversão de valores, ou seja, os gramáticos inicialmente procuraram um modelo de língua canônica dos grandes escritores para elaborar as gramáticas e depois a gramática passou a ser um instrumento de controle e poder, levando a língua a subordinar-se à gramática, quando no início era o contrário. Ao nosso ver, para muitas instituições e profissionais da área de PLM ainda vigora essa ideia da gramática como centro que aos poucos vem sendo desmitificada, principalmente com a adoção do trabalho voltado para os gêneros textuais.

Já o mito nº 8 reitera a necessidade de domínio da norma culta como um instrumento de ascensão social. Todavia, o autor o desconstrói apontando como exemplo o salário dos professores que, a despeito de serem considerados os que mais dominam a língua culta, possuem, no entanto, salários incompatíveis com este mito e não ocupam o topo da pirâmide social. Por outro lado, um fazendeiro com poucos anos de estudo, mas possuidor de terra, gado, indústrias e influência política em sua região, poderá se expressar à vontade com o seu sotaque caipira.

Salientamos que mito é mais um termo utilizado para definição de crença (SILVA, 2000). Para nós, o texto de Bagno (1999) tem o seu mérito por abordar um tema que na época

não era comum no Brasil, por relacionar o mito ao ensino de língua portuguesa e nos chamar a atenção, sobretudo por nos levar a rever as nossas próprias crenças, como professores(as), ao tentarmos impor, sem reflexão, a norma “culta” que não contempla a realidade de todos os falantes da língua.