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2 LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDO DE CRENÇAS

2.5 POSSÍVEL ORIGEM DAS CRENÇAS SOBRE DIFERENÇAS ENTRE OS

Na cultura ocidental, a desigualdade sexual está baseada na crença da inferioridade da mulher em relação ao homem. De acordo com Mernissi (1987), essa crença em comparação com a crença do islã sobre as mulheres é diferente, pois nesse grupo de países, as mulheres são consideradas seres poderosos, perigosos e, portanto, foram criadas diversas estratégias para conter o seu poder, como a poligamia, o repúdio, a segregação social etc.

Em nossa sociedade, muito embora a mulher tenha acumulado inúmeras conquistas desde o século XIX até a presente data, como o direito à educação, ao divórcio, ao mercado de trabalho, ao voto, à vida pública, ao uso de anticoncepcionais, dentre outros, sabemos que todos eles foram frutos de muita luta e do engajamento de mulheres em Movimentos Sociais, principalmente no Movimento Feminista e Marcha das Vadias11. Porém, ainda temos um longo caminho pela frente no que diz respeito à igualdade de direitos e respeito às diferenças.

Além da necessidade de melhorias no tocante às conquistas dos últimos anos, são grandes os desafios, dentre eles a igualdade entre gêneros, a equiparação salarial (mulheres ainda recebem, em média, 30% menos que o homem exercendo a mesma função), o apoio em caso de assédio, e, principalmente, a violência doméstica que ainda atinge números assustadores sob quaisquer pontos de vista. Só para termos uma ideia da situação, no Brasil, treze mulheres são assassinadas por dia12; a cada duas horas uma mulher é vítima de homicídio, num total de

aproximadamente, 372 por mês13 e uma mulher é agredida no país a cada 5 minutos14.

Herdeiro de uma tradição cultural patriarcal, no Brasil, apenas em 1962 as mulheres conquistaram o direito ao trabalho sem necessidade da aprovação do marido e só após se passarem 10 dez anos, foi conquistado o direito ao divórcio. Ultimamente, tivemos mais duas

11 Esse movimento surgiu no dia 03 de abril de 2011 em Toronto, a partir de um protesto e se

internacionalizou. Na atualidade, é realizado em vários países, inclusive no Brasil.

12 Segundo dados do MS/SUS/CIGIAE – Sistema de informações sobre Mortalidade – SIM.

13 Dados do instituto Avante Brasil – IAB a partir de dados do DataSUS do Ministério da Saúde – Mapa da

Violência (2012).

grandes conquistas: a primeira foi o sancionamento da Lei nº 11.340/2006 mais conhecida como a Lei Maria da Penha. Através dela é possível punir agressores nas esferas familiar e doméstica. Esta iniciativa tem surtido um grande efeito na diminuição de assassinatos contra as mulheres, em aproximadamente 10%15. Além da punição por agressão física, prevê também punição em

caso de violência psicológica, patrimonial e proteção à mulher em caso de denúncia (BRASIL, 2006b). A segunda foi a aprovação da Lei nº.13.104, de 2015 que tornou qualificado o crime de feminicídio (homicídio contra a mulher em razão do seu gênero).

Apesar desse avanço considerável, o Brasil é o 5º país, no ranking de 83 nações, em que mais se mata mulheres no mundo16. Isso é, no mínimo assustador, quando temos a informação de que cada vítima de feminicídio deixa ao menos três órfãos. Muitos deles vivem com a família do agressor e carregam traumas para o resto da vida por falta de assistência do estado. Por isso, os órfãos são considerados as vítimas invisíveis da violência doméstica.

No bojo desta discussão, Bourdieu (2002) demonstra o seu descontentamento com a perpetuação da ordem androcêntrica vigente. No prefácio à edição alemã do seu livro intitulado A dominação masculina, ele questiona sobre quais são os mecanismos históricos responsáveis pela des-historicização, eternização e princípios de divisão correspondentes das estruturas de divisão sexual. A discussão desse autor poderá nos oferecer uma compreensão da possível origem das crenças sobre a inferioridade da mulher em relação ao homem.

O autor está se referindo à perpetuação das condições consideradas intoleráveis sob seu ponto de vista, imbuídas da relação de dominação, privilégios de direitos e imunidades, atribuídas ao homem quando as confrontamos com a condição da mulher na sociedade, desde quando são vistas como naturais ou aceitáveis. Com esse questionamento, Bourdieu (2002) pretende suscitar uma reflexão que possa levar à ação positiva.

Ele nomeia a submissão paradoxal da mulher através da dominação masculina, de violência simbólica, pois de acordo com o autor, ela ocorre de forma suave, insensível, invisível e simbólica para as suas vítimas. A sua ocorrência, nessas circunstâncias, dá-se por meio de uma sociedade organizada de cima para baixo a partir do princípio androcêntrico, ratificada pelas vias simbólicas de comunicação, conhecimento ou desconhecimento, ou mesmo do sentimento

Ao lembrar a responsabilidade das instituições como família, igreja e escola, esporte e jornalismo etc. sobre a construção da representação de gênero, Bourdieu (2002) cobra a devolução das particularidades de ações históricas da relação entre os sexos marcada pela visão

15 Dados do IPEA (2014).

16 Segundo dados da Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a mulher

naturalista e essencialista que retirou da mulher o papel inerente de agente histórico. Vemos isso acontecer em diversas áreas, inclusive na literária, histórica e política, carecendo de incentivo de órgãos institucionais para um aumento da representatividade da mulher.

Afirma, ainda, Bourdieu (2002), que a mulher tem sido alvo da discriminação simbólica, tanto quanto os homossexuais. Seu discurso contundente incita à ação coletiva de caráter político a fim de abalar as instituições sociais estatais e jurídicas que contribuem para a sua subalternização. Na prática, as ações desenvolvidas em grupo provocam um impacto social maior resultarão em ganhos significativos para as mulheres.

Não queremos minimizar a dominação do ponto de vista histórico e cultural, entretanto, no que se refere à área educacional, vemos nas palavras de Chartier (1995) o quanto a escola colaborou, efetivamente, para a construção simbólica inerente ao papel desempenhado pelo homem e pela mulher em nossa sociedade, mais precisamente, pela importância da linguagem na construção desses papeis.

Definir a submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica ajuda a compreender como a relação de dominação, que é uma relação histórica, cultural e lingüisticamente construída, é sempre afirmada como uma diferença de natureza, radical, irredutível, universal. O essencial não é então, opor termo a termo, uma definição histórica e uma definição biológica da oposição masculino/feminino, mas sobretudo identificar, para cada configuração histórica, os mecanismos que enunciam e representam como “natural”, portanto biológica, a divisão social, e, portanto, histórica, dos papéis e das funções (CHARTIER, 1995, p. 42).

De forma geral, a escola tem sido uma instituição na qual o preconceito está implícito nas práticas linguísticas que contribuem para a sua perpetuação. Nessa perspectiva, as representações comuns da mulher estão a grosso modo ligadas às construções simbólicas da divisão sexual, através das quais as mulheres são vistas como objetos. Essa concepção está baseada sobretudo nas diferenças biológicas, anatômicas e inseridas no viés da corporalidade, ou seja: a partir da observação da anatomia dos órgãos sexuais externos, somos diagnosticadas e classificadas em uma posição específica e imutável por toda a vida.

Bourdieu (2002) afirma também que a diferença anatômica entre os sexos, normalmente é utilizada para justificar a diferença entre os gêneros, assim como a divisão social do trabalho. Essa divisão, como se sabe, durante muito tempo norteou o trabalho que seria mais adequado ao homem e à mulher. O grande problema a partir dessa construção são as inúmeras desigualdades e hierarquias desenvolvidas e acirradas ao longo da história da humanidade, as quais produzem e reproduzem significados e diversidade de práticas.

No entanto, na esteira das mudanças sociais e ideológicas nas quais estamos inseridos, observamos que, no mundo do trabalho, muitas profissões ditas masculinas, há muito pouco tempo, veem-se também incorporadas também ao universo feminino, não sem resistência. Em nossa sociedade baiana, inclusive em nossa cidade, a despeito do machismo existente, já é comum encontrarmos mulheres exercendo diversas profissões anteriormente consideradas masculinas, tais como as de frentistas, cobradoras de coletivos, motoristas de vans, policiais, delegadas, engenheiras, jogadoras de futebol, etc., o que evidencia a mudança histórica pela qual tem passado o nosso país, mesmo que a passos lentos.

Bourdieu (2002) descortina as inúmeras desigualdades e hierarquias existentes ao longo da história, assim como a produção de significados e prática das quais a mulher é vítima. Dentre elas, ressalta as construções científicas cujo homem ou masculino tem sido a norma. O masculino quase sempre é tomado como sinônimo de humanidade.

Essa generalização, na verdade, invisibiliza o feminino e lhe imputa uma suposta inferioridade, que seria determinada por um corpo mais frágil, com menor número de neurônios, situado na esfera reprodutiva. Isso, supostamente, justificaria o fato de as mulheres serem ligadas ao mundo da casa, ao doméstico e aos cuidados com os filhos. A partir dessas questões resultaram as lutas feministas, centradas em questionamentos e denúncias sobre a construção da visão do corpo como lugar da violência física e simbólica masculina, naturalizada ao longo dos séculos. Dessa forma, a aquisição de direitos, tais como o uso da pílula anticoncepcional e o aborto, por exemplo, visa, nesse contexto, a compreensão de uma nova dimensão do corpo da mulher em culturas diversificadas.

Há pouco tempo houve a aprovação do projeto PLS 282/2016 que permite à Previdência entrar na justiça contra os condenados pela Lei Maria da Penha. Ele dá direito ao pedido de ressarcimento aos cofres públicos, de benefícios como auxílio-doença, pensão e aposentadoria, através de ação regressiva contra agressores após o trânsito em julgado da sentença dos prejuízos causados pela agressão (BRASIL, 2016). Esse é mais um dispositivo elaborado para coibir as agressões, penalizando seus responsáveis. O próximo passo é a aprovação na Comissão de Assuntos Sociais e a ida para a Câmara.

No entanto, os avanços são muito lentos em nossa sociedade brasileira. Temos visto, ultimamente, progressões na lei, mas também recuos concernentes às atitudes de representantes institucionais que possuem uma visão machista e encontra dispositivos que favorecem o réu em lugar da vítima ou as vitimizam ainda mais quando, em contato direto com as mesmas, as tratam com desconsideração imputando-lhes a culpa da agressão. Dessa forma, a opressão simbólica é legitimada sutilmente (e às vezes nem tanto) como algo naturalizado, incorporado à cultura e

essa visão acaba por ocultar a reprodução coletiva de consagração do poder e da dominação do masculino sobre o feminino.

Como se não bastassem essas circunstâncias, muitas vezes enfrentamos o machismo das próprias mulheres, desconsiderando e desqualificando umas às outras, através de piadas preconceituosas inerentes à crença no comportamento considerado inadequado para os padrões, uso de determinadas roupas (curtas, decotadas...), modus vivendi e vida sexual. Esse julgamento moral é realizado no intuito de encaixar a mulher no modelo feminino considerado ideal.

Outra questão digna da nossa atenção é o cruzamento entre gênero e raça apontado por Candau (2012), ao se referir à maximização que o racismo assume, quando se trata de mulheres pobres e negras. Segundo a autora, essa configuração influencia na inferiorização da mulher do ponto de vista da hierarquia sexual e na sua invisibilização na esfera pública.

Para Bourdieu (2002) mesmo como pesquisadores desse objeto, homens ou mulheres, não estamos livres de incorporar os esquemas inconscientes de percepção e de apreciação, por se tratarem de estruturas históricas e arraigadas em nossa constituição de sujeitos. Isso interfere na forma de pensar a dominação e por vezes deixamos algo transparecer em nossos posicionamentos.

Chartier (1995) possui uma opinião semelhante à de Bourdieu (2002) em relação à contribuição do dominado para a eficácia da violência simbólica. Porém, a interiorização das normas e enunciados pelo discurso masculino tem a sua origem nos dispositivos legais utilizados para garantir a eficácia dessa violência, tornando-se necessário compreender os discursos, as práticas e os manifestos que permitem a inferioridade feminina em relação à masculina. Por outro lado, esses dispositivos estão inseridos tanto no pensamento, quanto nos corpos de umas e de outros, ao referir-se às mulheres e aos homens, de acordo com esse autor. No Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS, 2014) do IPEA17 sobre a

tolerância social à violência contra mulheres, foi constatado um índice de 26% de entrevistados que concordam com a proposição de que a mulher que usa roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. Essa opinião baseia-se na crença de que a própria mulher é culpada pelo assédio masculino, em virtude da maneira inadequada de se vestir. Foi constatado, assim, um número de 525 mil estupros de mulheres, crianças e adolescentes por ano, no país, uma crença machista sobre a o corpo das mulheres como propriedade do homem.

17 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – É uma fundação pública federal incorporada ao Ministério de

Outra problematização feminina nos é apresentada por Touraine (2010). Assumindo uma postura de observador e ouvinte, o estudioso apresenta uma pesquisa na qual esclarece a seguinte descoberta: “aquilo que pensam e fazem as mulheres é diferente, e até mesmo o oposto, daquilo que se diz que elas dizem e fazem” (TOURAINE, 2010, p. 9). Suas observações o levaram a rever seus conceitos quanto à vitimização da mulher, porque elas afirmaram a sua própria definição de serem mulheres, não como vítimas, mas com um objetivo maior de se construírem, mesmo aquelas que haviam sofrido injustiças. A partir disso, ele passou a ver a mulher como atrizes sociais e prontas para mudarem a história.

Touraine (2010) tece uma crítica às narrativas sobre a dominação masculina em relação às mulheres, por entender que elas reforçam apenas um objetivo que é o de abolir as diferenças entre homens e mulheres. Suas considerações críticas abarcam a emergência de um estado de espírito voltado para a inferiorização da mulher, suscitado pelos estudos voltados para uma sociedade unissex ou aqueles que sugerem o desaparecimento da menção do sexo em ofertas e demandas de emprego, com ‘mixidade’ estabelecida e imposta em lugares públicos. Sem negar as transformações advindas através do movimento feminista e que ainda se encontra mobilizado (com propriedade) em países onde a dominação masculina se faz presente, ele acredita que a ideia de gênero traz consigo um determinismo do ponto de vista social e ideológico das condutas femininas.

Ora, a partir do momento em que substituímos esse determinismo vago e genérico pela tese mais aguçada da dominação masculina, é preciso tomar consciência de tudo aquilo que foi rechaçado: a história pessoal, os sentimentos (feelings), as relações interpessoais, enfim, tudo aquilo que intervém na formação da personalidade (TOURAINE, 2010, p. 18).

Por isso, condena a escolha entre um determinismo social e uma subjetividade de ordem psicológica, pois, para ele a criação de identidades singulares passa por um processo de mistura e não de exclusão. Portanto, além da luta ativa contra desigualdades e violência com criação de leis que na sociedade francesa proporcionaram às mulheres o domínio da sua vida pessoal, inclusive na reprodução, considera a redução ou mesmo a supressão da importância do gênero.

[...] noção que desde que nela se reconheça a marca da dominação masculina, nos aparece como uma jaula de onde as mulheres não poderiam evadir-se a não ser negando-se como categoria significativa, preferindo a igualdade em vez da diferença e sonhando com uma sociedade sem gêneros, como outras, antes delas tinham sonhado com uma sociedade sem classes (TOURAINE, 2010, p. 21).

A partir do reconhecimento do gênero como criação do poder do macho, essa noção, apesar de ter sido extremamente útil, passa agora a ser criticada pelas próprias mulheres ao vislumbrarem o fato de existirem diversos estudos falando sobre elas ou por elas. No entanto, acreditam na construção da identidade feminina, sem se vitimarem, carregando o desejo de transformar sua própria existência, através das suas próprias vozes. Isso lhes dará uma autoestima maior a partir da afirmação de uma consciência feminina, tornando-as capazes de agirem em prol de suas exigências interiores e pessoais, e não apenas das exigências exteriores.