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A construção da temporalidade

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 34-40)

CAPÍTULO 1 – Narrativa e identidade: construindo um recorte teórico

1.2. A temporalidade e a narrativa

1.2.2. A construção da temporalidade

Não é fácil chegarmos a uma definição rigorosa e absoluta do tempo, pois há quem diga que este é uma abstração, ou que é uma convenção social, entre outras especulações oriundas de pontos de vistas de distintas áreas. Contudo é fato a presença do tempo no cotidiano e em toda existência dos seres humanos. Tal existência se configura por um processo de mudança contínua dos acontecimentos, e a sucessão desses eventos, que ocorre naturalmente num determinado tempo, denomina-se temporalidade. Logo, esse componente define-se como a condição dos processos que envolvem relações temporais. A classificação do tempo apresentada anteriormente (1.2.1), especialmente o tempo cronológico, evidencia que a temporalidade se constrói de diversas maneiras no uso da linguagem. Para análise nesta dissertação interessa particularmente o tempo linguístico.

Os acontecimentos que representam a experiência humana têm papel relevante na construção da temporalidade, já que esses se processam numa “linha” de tempo, na relação dos contrastes temporais passado, presente e futuro. Esses deslocamentos temporais, conforme atestam algumas teorias, ocorrem de forma relativa, sempre com base no tempo presente. Maingueneau (2008, p.106) assegura

que “as categorias de passado ou de futuro são definidas em relação ao presente da enunciação”, ou seja, equivale ao momento da fala, portanto é “‘passado’ aquilo que é colocado como não sendo mais verdadeiro na situação de enunciação, é ‘futuro’ o que é colocado como não sendo verdadeiro ainda”. Nesse sentido, a temporalidade do passado pode assumir várias distâncias dentro da experiência das pessoas, mas a temporalidade de futuro somente ocorre enquanto previsão de experiência.

Todas as línguas, flexionais ou não, apresentam formas linguísticas de expressão temporal, conforme se observa nos estudos de Benveniste (1989). E a articulação das oposições temporais presente, passado e futuro caracteriza um movimento necessário para expressão linguística. É o movimento de transcendência dessas oposições, seja no plano individual, cultural ou histórico, que caracteriza a temporalidade em sentido amplo. Esses deslocamentos de planos temporais se manifestam linguisticamente através das formas verbais – inclusive há línguas que dão ao verbo a denominação de “palavra temporal”. Mas Corôa (2005) afirma que essa designação também se aplica a outras categorias gramaticais, como os advérbios, as conjunções, os numerais e os adjetivos, que também podem expressar a ordem temporal dos acontecimentos, embora a primazia seja do verbo, conforme concluem os teóricos estudados6.

É nesse sentido que pesquisas tradicionais costumam apresentar uma relação íntima entre os tempos verbais e a noção de tempo7. Além disso, para

Benveniste (1989), na análise dessa relação muitos estudos traçam sérias confusões, por exemplo, propor que somente as formas verbais traduziriam a noção de tempo, ou ainda, que o sistema temporal reproduz a natureza do tempo objetivo. Sobre isso o autor assegura que, tanto o tempo físico quanto o tempo cronológico comportam a versão objetiva e subjetiva da realidade. Mas o fato é que o verbo assume a tarefa de situar o processo de comunicação no tempo. Estudos recentes evidenciam que o verbo apresenta uma grande variedade em seu sistema flexional e

6 Esse aspecto refuta a noção ainda constante no ensino de língua, a de que somente a categoria gramatical do verbo traduziria a ideia de tempo.

7 Os estudos de Corôa (2005) mostram a relação intrínseca do verbo com a noção de tempo, contudo ela apresenta teóricos que, ao exemplificar uma variedade de línguas, mostram que a expressão temporal nem sempre se manifesta através das formas verbais. A autora apresenta ainda a definição de verbo, o que a leva a conclusão de que “os verbos estão sempre associados à noção temporal” (CORÔA, 2005, p.34). Consoante a isso Benveniste (1989) também apresenta exemplos de como se estruturam a noção de tempo em algumas línguas.

talvez esse vínculo não seja suficiente para explicar tal variedade, por isso é necessário acrescentar outras noções conceituais. Diante dessa variedade é que surgem as noções de aspecto e modos.

Os tempos verbais são importantes, segundo Bronckart (2009), para organizar temporal e/ou hierarquicamente os processos expressos semanticamente pelos verbos no texto e isso é assegurado pela coesão verbal. Esta representa um dos conjuntos de mecanismos de textualização, ao lado da conexão e da coesão nominal8, defendidos pelo autor. Em consonância com Corôa (2005), Bronckart (2009)

diz que não somente os morfemas têm essa função, mas também outros lexemas e principalmente os organizadores textuais9 (estes com ocorrência privilegiada nos textos

do modo de organização narrativo) apresentam valor temporal e assim atuam de forma coesa com as formas verbais nessa organização. Portanto, a coesão verbal consiste num processo de construção da temporalidade, já que se baseia na “combinação” de elementos que organizam a ordem temporal dos acontecimentos.

Nesse processo Bronckart (2009) destaca os tempos verbais e suas respectivas funções. O tempo presente tem grande ocorrência, podendo ser este de valor gnômico (validade geral). No caso de texto narrativo, o pretérito perfeito e o imperfeito são tempos considerados de base, contudo podem assumir papéis diferentes na organização dos processos verbalizados. Esses pretéritos contribuem para a organização do que Bronckart (2009) chama de temporalidade primária da narração, ou seja, o que esclarece o tipo de relação que há entre “a progressão da atividade narrativa e progressão efetiva dos processos constitutivos do conteúdo temático” (BRONCKART, 2009, p.127). Ocorre também a função de temporalidade secundária, a qual estabelece a relação temporal entre dois processos verbalizados. Há ainda a função de contraste local, que visa colocar como pano de fundo um processo verbalizado em relação a um outro processo central, o que ocorre normalmente por encaixamento sintático.

8 O mecanismo de conexão utiliza os organizadores textuais para marcar as articulações da progressão temática. A coerência nominal tem a função de introduzir o tema ou os personagens e assegurar as retomadas no desenvolvimento do texto (BRONCKART, 2009).

9 Os organizadores textuais a que Bronckart (2009) se refere são conjunções, advérbios ou locuções adverbiais, expressões preposicionais e outros grupos nominais e segmentos de frases que servem para assinalar transições entre tipos de discursos que compõem um texto, entre fases de sequências ou entre frases locais.

As formas verbais de presente figuram mais na ocorrência de segmentos de discurso interativo, sendo assim consideradas tempo de base. Nesse sentido o presente possui um valor de simultaneidade, o que significa a coincidência entre o momento no qual se realiza a fala e o momento em que se processam os acontecimentos, ou seja, ao empregar um verbo no presente se está designando, segundo Maingueneau (2008, p.106), “o próprio momento em que se produz o enunciado que contém esse presente”. Mesmo que na construção da temporalidade se busque uma coesão entre os tempos verbais, esta não logra um forte rigor, pois, dependendo da intenção do narrador ou da natureza da narrativa, é possível que o tempo predominante do discurso se alterne com outros tempos. Tal fato pode caracterizar esses mecanismos como particularmente complexos.

Ao abordar a temporalidade, Bronckart (2009) afirma que os valores desta são expressos pelos determinantes dos verbos, ou seja, os tempos verbais presente, as variações do passado, etc., e às vezes, por alguns subconjuntos de advérbios. Destaca também que é importante que esses valores devam ser analisados considerando a relação entre o momento da fala (tempo de produção ou de enunciação) e o momento do processo expresso pelo verbo (momento do evento ou tempo da predicação), com esta perspectiva se identifica as relações de simultaneidade (expresso por formas de presente), anterioridade (expresso por formas verbais de passado) e posterioridade (expresso pelas formas verbais de futuro), estes dois últimos processados com base no momento da produção (simultaneidade).

Sobre esses momentos, ou “pontos” temporais, alguns estudos (CORÔA, 2005; BRONCKART, 2009) apontam que quando se trata das noções expressas pelas formas verbais, não há somente as relações de precedência e de sucessividade, e para comprovar isso destacam os estudos de Reichenbach – o primeiro a formalizar uma interpretação temporal das línguas naturais –, que acrescentou ao momento de fala (MF) e ao de produção (evento) (ME), o momento psicológico de referência (MR). Trata-se de um sistema temporal fixo a partir do qual se definem a simultaneidade e posterioridade; refere-se à perspectiva de tempo transmitida pelo falante ao ouvinte na contemplação do ME. O MR é o que mais se aproxima do tempo psicológico (concepção tradicional de tempo), mesmo que possa

ser identificado no texto com indicações concretas (datas). Cada momento é distinto, assim Corôa (2005) resume:

Dos três momentos, é o ME que se manifesta mais concretamente por ter um referente definido e captar mais objetivamente o intervalo de tempo em que ocorre o processo, evento, ação ou estado descrito. (...) O MF, por estar ligado mais diretamente ao ato da comunicação e à pessoa do discurso, tem seus limites um pouco mais ambiguamente colocados: é mais uma classe de indivíduos do que intervalo de tempos concretos (...). Entretanto o MR é o mais complexo desses constructos. Sua natureza quase estritamente teórica faz com que ele esteja mais afastado do ato de comunicação do que o MF e seus contornos sejam ainda menos concretamente percebidos (CORÔA, 2005, p.38-39).

Considerando que nem sempre há coincidência entre o ME e o MF, o momento de referência assume destaque na análise das relações temporais, porque acrescenta a uma sequência temporal mais um parâmetro, que, a rigor, conforme Bronckart (2009), já estaria implícita, evidenciando processos verbais que seriam anteriores ou posteriores ao momento da enunciação. Para isso, pode-se usar, por exemplo, palavras ou grupo de palavras com valor temporal. Eis algumas frases exemplificativas: (a) “Amanhã José constrói a casa” e (b) “Amanhã José construirá a casa”. Nessas sentenças o eixo de referência (MR) é delimitado pelo advérbio “amanhã”, que expressa um valor de posterioridade em relação ao MF, já que as formas verbais em (a) [constrói] expressa o presente e em (b) [construirá], o futuro.

Corôa (2005) também destaca a importância do MR na construção da temporalidade, pois para ela este é um “sistema de inércia que serve de referencial fixo para uma definição de tempo” (CORÔA, 2005, p.39), assim o MR teria a propriedade de garantir a simultaneidade a dois momentos dentro de um mesmo conjunto; e pode ainda ser expresso por outras medidas de tempo, como em (a) “Em 1891 inicia a primeira república no Brasil”, (b) “Em 1930 inicia a segunda república no Brasil” e (c) “Em 1992 acontece o primeiro impeachment da história do Brasil”. As três sentenças expressam momentos passados distintos, contudo as formas verbais estão no presente, ainda assim não caracterizam estruturas agramaticais. Isso ocorre porque esse agora explicita os passados através de medidas de tempo (no caso, o ano) que representa o momento de referência. A relação entre esses

presentes não afeta o conhecimento de mundo dos falantes, e assim pode representar um ponto “contínuo” que limita o passado e o futuro.

Temos agora as sentenças: (d) “Inicia a primeira república no Brasil”, (e) “Inicia a segunda república no Brasil” e (f) “Acontece o primeiro impeachment da história do Brasil”. A ausência de um referencial fixo pode gerar ambiguidade na compreensão dessas sentenças. No caso de (d) e (e) – acontecimentos históricos conhecidos no Brasil – só seriam aceitáveis se esses eventos tivessem ocorridos no momento da enunciação; já a sentença (f) até poderia ser aceita se o impeachment pudesse fazer parte do momento de referência tanto do produtor da sentença quanto de um possível ouvinte. Logo, a cronologia das sentenças (a), (b), (c) se torna clara graças à utilização da medida de tempo (anos) e (f) conforme o MR compartilhado pelos interlocutores. Compreendendo a relevância do MR, Bronckart (2009) conclui:

Essa abordagem tricotômica é decisiva, na medida em que expõe claramente que qualquer análise da temporalidade implica a consideração desse terceiro parâmetro constituído pela referência temporal psicológica e na medida em que também mostra que o valor de um tempo verbal resulta de uma decisão de codificação da relação estabelecida entre o “momento do processo”, de um lado, e o “momento da fala” ou o “momento de referência psicológica”, de outro (BRONCKART, 2009, p.277-278, grifo do autor).

Portanto, de acordo com o contexto comunicativo, levar em consideração o momento de referência pode ser decisivo para apreensão dos mundos expressos pela narrativa. Mesmo que se fale em isocronia (BRONCKART, 2009), ou seja, do paralelismo do curso da atividade narrativa e do curso da história, normalmente expresso pelo pretérito, torna-se difícil haver uma “coincidência” entre esses momentos. O fato da narrativa se basear na criação de um mundo distinto do mundo ordinário10, podendo ser totalmente fictício, torna a história contada não objetiva, e

isso condiciona ao fenômeno de prolepse (antecipação dos acontecimentos) e de analepse (retorno a acontecimentos anteriores), o que indica que momento de fala não reproduz necessariamente o evento do evento.

10 Bronckart (2009) chama de mundo ordinário ao mundo representado por agentes humanos, contrário ao mundo discursivo que se refere aos mundos virtuais, ou seja, ao resultado da atividade de linguagem, de natureza semiótica.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 34-40)