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A relação temporalidade e narrativa

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 40-46)

CAPÍTULO 1 – Narrativa e identidade: construindo um recorte teórico

1.2. A temporalidade e a narrativa

1.2.3. A relação temporalidade e narrativa

A temporalidade na narrativa se constrói basicamente a partir de uma estrutura temporal definida, com o predomínio do seu tempo de base, o pretérito (perfeito, imperfeito e mais-que-perfeito). Entendendo a narrativa como uma sequência de eventos, estes são expressos igualmente, segundo Maingueneau (2008, p.118), “por uma sequência de verbos por intermédio da qual o texto avança em direção a um final”. Mesmo assim é possível a alternância com outros tempos verbais, principalmente com o tempo presente (e suas modalidades) e, pouco frequente, com o tempo futuro, fato que pode influenciar consideravelmente no sentido da história. Para analisar a temporalidade na narrativa é importante antes compreender, entre outros aspectos, as concepções de mundos discursivos, apresentados por Bronckart (2009), baseado nos clássicos Weinrich e Benveniste.

Ao estudar o sistema verbal, Benveniste (1959/1966, apud BRONCKART, 2009) conclui que, com a função de situar o leitor ou o ouvinte no processo comunicacional da linguagem, os tempos verbais se organizam em dois planos de enunciação diferentes, sendo o da história e do discurso. O plano da história consiste apenas em relatar acontecimentos passados, e não implicam na intervenção do locutor, logo, nesse plano as formas verbais de pretérito são predominantes. Ao contrário, o plano do discurso caracteriza-se pela intervenção direta do locutor no processo de enunciação, principalmente com a função de influenciar o interlocutor de alguma forma, e para isso vários mecanismos convincentes são utilizados pelo locutor de acordo com o objetivo da enunciação; nesse plano os tempos verbais predominantes são o presente e o futuro do presente.

Análoga a essa divisão, Harald Weinrich (1973 apud BRONCKART, 2009; KOCH, 2002) estabelece dois sistemas temporais, e estes são responsáveis por dois mundos opostos: o mundo11 comentado e o mundo narrado. No primeiro há

comprometimento do locutor com o discurso, que o afeta diretamente. Compõem

11 Utiliza-se o termo “mundo”, conforme a proposta de Weinrich, significando um objeto semântico de conteúdos diversos, ou seja, os conteúdos de comunicação linguística são de “infinita densidade”.

esse mundo os tempos verbais presente, futuro do presente, futuro do presente composto e outras estruturas formadas por esses tempos; o uso dos tempos comentadores “constitui um sinal de alerta para advertir o ouvinte de que se trata de algo que o afeta diretamente e de que o discurso exige sua resposta” (KOCH, 2002, p.36). Ao mundo narrado pertencem os relatos de eventos distantes, no qual o locutor não interfere no discurso e o interlocutor torna-se um simples ouvinte. Os tempos verbais desse mundo são o pretérito perfeito simples, pretérito imperfeito, pretérito mais-que-perfeito, futuro do pretérito e demais locuções verbais afins.

A teoria literária também analisa esses planos ou tempos que se vinculam para a construção da temporalidade na narrativa. Há, portanto, o tempo da narração ou ação – refere-se à história, segundo Todorov (2008); é o que Genette (2008) denomina diegese. Nunes (2003) considera esse tempo pluridimensional, ou seja, vários acontecimentos podem ser desenvolvidos ao mesmo tempo, e tem ainda como propriedade permitir antecipações e retornos, podendo alternadamente acelerar ou retardar a sucessão temporal, assim ocorrendo o dilatamento de períodos em longos (anos, gerações) ou curtos (dias, horas, minutos).

O segundo tempo é do discurso ou da narrativa, que se reporta ao plano da expressão dos conteúdos. Refere-se à maneira pela qual o narrador faz o leitor/ouvinte conhecer os conteúdos (TODOROV, 2008). Para Nunes (2003) é o tempo que concretiza o conteúdo: no texto escrito tem-se tanto o seguimento das linhas nas páginas (cantos, estrofes, capítulos) quanto à ordenação da sequência narrativa (cenas, diálogos, descrição/narração); no caso da narrativa oral tem-se a emissão verbal. Logo se pode perceber como característica, segundo Todorov (2008), que este é um tempo linear, já que organiza os eventos um em seguida do outro. Os dois tempos são expostos separadamente, contudo na narrativa eles se relacionam entre si, equivalendo, portanto, ao tempo da história ou significado e o tempo do discurso ou significante. Nunes (2003) resume essa relação:

O discurso nos dá à configuração da narrativa como um todo significativo; a

história, o aspecto episódico dos acontecimentos e suas relações,

juntamente com os motivos que os concatenam, ambos impondo à narrativa um limiar de inteligibilidade cronológica e lógica, tradutível num resumo. Normalmente, o tempo de um corre paralelamente ao do outro (NUNES, 2003, 28, grifo do autor).

Alguns estudos teóricos acrescentam aos dois planos o tempo da instância narrativa ou da interação. Trata-se do evento comunicativo particular em que se situa o processo da narrativa, ou seja, seria o meio utilizado, conforme Todorov (2008), uma mesma narrativa poderia ser transmitida por um livro, um filme, ou apenas ouvida de uma testemunha. Para efeito de análise este plano tem ocorrência menor em relação ao plano da narrativa e do discurso. Estes dois tempos caracterizam uma dupla temporalidade, principalmente quando se trata de narrativas ficcionais.

Comparativamente, ao plano da história equivale o mundo narrado ou contado, e ao plano discursivo equivale o mundo comentado. Sobre isso Nunes (2003) destaca que as concepções de Weinrich, o narrar e comentar, são conceitos mais flexíveis que a enunciação histórica e a discursiva, de Benveniste. Os tempos de pretérito representariam um certo momento do tempo na narrativa e que caracterizaria um não comprometimento do locutor narrador com o enunciado, provocando assim impessoalidade, o que evidenciaria os eventos como já ocorridos, portanto, pertencentes ao passado, quer seja num texto fictício ou não. Mas as duas situações de enunciação não são estanques, logo os tempos verbais de um dos mundos interpenetram em outro, configurando o que Weinrich chamou de metáfora temporal.

A metáfora temporal caracteriza-se como um recurso importante na construção da temporalidade do texto narrativo, pois mesmo o pretérito sendo considerado o tempo principal do mundo narrado, o chamado tempo zero, pode ocorrer, por inobservância ou conforme a intenção discursiva do locutor narrador, a discordância dos respectivos tempos, ou seja, a alternância com o presente – o tempo zero do mundo comentado. Quando isso ocorre, segundo Koch (2002, p.39), os verbos do tempo comentado “levam consigo algo de sua tensão, compromisso e seriedade, dilatando a validez do relato ou insistindo sobre ela”, pois é como se narrasse comentando no texto. Os demais tempos verbais funcionam como tempos de prospecção e retrospecção baseados no tempo zero de cada um dos mundos.

A temporalidade narrativa organiza sequências de eventos em um determinado espaço. Este é tomado sempre como ponto de referência das mudanças dos acontecimentos, e, mudança das sequências acarreta mudança de espaço. Nesse sentido, nos procedimentos ligados à localização espaciotemporal, Charaudeau (2009) afirma que as mudanças se manifestam pela oposição dos

tempos e isso pode produzir diferentes efeitos de sentidos na narrativa, ou seja, ao narrar pode-se optar pelo tempo passado ou o tempo presente. Aquele transmite um efeito de ficção histórica, por exemplo, as emissões radiofônicas ou televisivas quando reconstituem acontecimentos; já este, produz um efeito de ficção autobiográfica ou de atualidade, podendo ser verdadeira ou falsa (CHARAUDEAU, 2009).

Retomando os conjuntos de mecanismos de textualização apresentados por Bronckart (2009) no tópico anterior (2.3), temos outro processo de construção da temporalidade narrativa: a coesão verbal, que se concretiza pelos tempos verbais e visa organizar a ordem temporal dos acontecimentos no texto narrativo. Vale lembrar que essa ordem não se efetiva somente pelas marcas morfológicas dos verbos, mas também por outras unidades linguísticas que denotam valor temporal, como os advérbios e principalmente os organizadores textuais. Além disso, essa temporalidade depende também dos demais mecanismos de textualização (coesão nominal e conexão). A combinação dos verbos parte do tempo de base da narrativa, o pretérito. Os demais tempos que figuram no desenvolvimento do texto conduzem a distintas mudanças semânticas.

Normalmente dominantes no texto narrativo, os pretéritos perfeito e o imperfeito contribuem para a organização da temporalidade primária. Esta é responsável por explicitar qual o tipo de relação existente entre a progressão dos acontecimentos da diegese e a progressão do discurso. O pretérito pode também garantir à sequência narrativa o valor de isocronia, ou seja, serve para indicar que as progressões da atividade narrativa e dos acontecimentos da diegese desenvolvem- se paralelamente. Outros tempos verbais provocam um distanciamento entre as progressões, ou seja, a não isocronia. O futuro do pretérito, por exemplo, pode denotar a sequência um valor projetivo, ou seja, indica um caráter antecipado ou posterior em relação ao tempo do discurso; já o pretérito mais-que-perfeito pode traduzir um valor retroativo, isto é, indicar um caráter anterior ao momento da atividade narrativa.

A função da temporalidade secundária (também denominada relativa por Bronckart) estabelece a relação temporal entre dois processos verbalizados, sendo um primeiro com um segundo, que é objeto de localização de temporalidade primária. A relação dos processos pode expressar-se por: anterioridade relativa,

marcado primeiramente por um encaixamento sintático e depois pela oposição dos tempos verbais; a simultaneidade relativa, que se marca exclusivamente por encaixamento sintático; e a posterioridade relativa, que é marcada pelo encaixamento sintático de orações infinitivas.

A função de contraste global consiste em indicar que dois ou mais processos verbais (séries isotópicas) são colocados em plano distintos no texto, sendo um em primeiro e outro em segundo plano. Bronckart (2009) acrescenta que a diferença entre o primeiro e o segundo plano foi objeto de análises de teóricos, entre eles, Labov (1972 apud BRONCKART, 2009), quem propôs a reformulação em termos de oposição entre frases narrativas – que traduziriam uma sucessão fiel à cronologia os acontecimentos da diegese; e frases não narrativas – que não se submeteriam a essa ordenação temporal, dessa forma poderiam ser deslocadas sem prejudicar a lógica da narrativa. As frases narrativas, por estarem referenciadas temporalmente, assegurariam a progressão do conteúdo temático, e a compreensão ou avaliação destas seria baseada nas informações complementares dadas pelas frases não narrativas.

Nesse contraste, em primeiro plano são colocados os processos mais dinâmicos atribuídos aos personagens principais, normalmente expressos pelo pretérito perfeito; já os processos estáticos, psicológicos, ou ainda descritivos e explicativos geralmente são postos em segundo plano, materializados pelo pretérito imperfeito e mais-que-perfeito. Mas a distribuição dos processos em primeiro ou segundo plano pode se mostrar relativa, ou seja, a correspondência nem sempre é sistemática, já que, às vezes, depende do posicionamento do narrador, este pode passar processos de natureza psicológica ao primeiro plano ou aspectos do protagonista podem ser colocados em segundo plano. Além disso, considerando que a história contada não é objetiva, torna-se difícil estabelecer uma espécie de hierarquia de importância, o que definiria concretamente o primeiro e segundo planos.

Outra característica do contraste global na narrativa é que há coincidência com as cinco fases do texto narrativo (as quais seguem uma ordem obrigatória) ou as macroproposições, de Adam (2008). A situação inicial, por ser responsável pela exposição ou orientação, e a situação final, por explicitar o estado de equilíbrio obtido pela resolução, podem assim serem caracterizas como momentos estáveis,

portanto elas seriam postas em segundo plano. Já as fases de ação, responsável pelo desencadear dos acontecimentos, e a resolução estariam ligadas mais a processos dinâmicos ou de movimento, sendo assim quase sempre postas em primeiro plano. A fase complicação, que corresponde ao desencadeamento, se caracterizaria por uma oposição entre os dois planos.

Ainda entre as funções da coesão verbal tem-se a de contraste local, que visa colocar como pano de fundo um processo verbalizado em relação a um outro processo central, o que ocorre normalmente por encaixamento sintático. Ou seja, visa, “colocar em oposição específica dois processos, independentemente de qualquer série isotópica”, dessa forma, portanto, “um dos processos é apresentado como um contexto local sobre o fundo do qual se destaca o outro processo” (BRONCKART, 2009, p.295, grifo do autor). Essa função às vezes se confunde com o contraste global ao interagir com as fases da narrativa apresentadas acima, pois o processo de fundo pode ser expresso pelo pretérito imperfeito ou mais-que-perfeito, e processo em relevo pode ser marcado pelo pretérito perfeito.

Para concluirmos, quando tratamos especificamente de narrativas ficcionais, a teoria literária descreve ainda outras temporalidades. A temporalidade do leitor é extratextual, ou seja, depende de aspectos culturais; segundo Nunes (2003, p.72), depende do “tempo histórico real que condiciona a recepção e assegura a fortuna interpretativa das obras literárias”. Enfim, de acordo com as características de alguns escritores e conforme os gêneros narrativos – romances, contos, ensaios, entre outros, pode ocorrer também uma distância temporal separando o narrador do leitor, e ainda uma distância entre a história narrada e o ato de narrar, a temporalidade do narrador e o tempo das ações.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 40-46)