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CAPÍTULO 1 – Narrativa e identidade: construindo um recorte teórico

1.2. A temporalidade e a narrativa

1.2.1. O que é tempo?

Igualmente a muitos fenômenos relacionados ao funcionamento da linguagem em sociedade, a temporalidade, sob vários prismas e distintos objetos de investigação, há muito desperta interesse de pesquisas de renomados teóricos de diversas áreas, como a filosofia, a física, a psicologia, a narratologia, a semiótica, entre outras. Mas para discorrer sobre esse tema e sua relação com a narrativa, antes é relevante percorrer por reflexões que tentam definir o que é tempo, categoria tão complexa de conceituação, conforme atestaram historicamente indagações dos lógicos e filósofos antigos. Inicialmente se pode conceber que uma concepção de tempo demanda das experiências do homem, sejam individuais, sociais ou culturais, logo se conclui que há impossibilidade de se estabelecer conceito único e absoluto4.

O tempo faz parte do cotidiano de todos os homens, que o vivencia subjetivamente sem a necessidade de conceituá-lo. Portanto está presente em todas as atividades práticas, o que permite o estabelecimento de classificações, como a que apresenta Nunes (2003), ao estudar a narrativa literária e a relação com o tempo. O tempo físico é o que pode ser mensurado, seguindo assim uma ordem objetiva com base na conexão causa e efeito, e está relacionada à sucessão dos eventos naturais, “é um contínuo uniforme, infinito, linear, segmentável à vontade” (BENVENISTE, 1989, p.71). O tempo psicológico se refere ao tempo vivido interiormente, isto é, a duração interior dos eventos que ocorrem de forma imprecisa e descontínua com relação à referências temporais objetivas; é de caráter eminentemente subjetivo, qualitativo e variável, portanto distinto de um indivíduo para outro.

4 Na esteira de definição de tempo, Corôa (2005) apresenta três teorias, propostas e analisadas por filósofos, linguistas e físicos de distintas correntes teóricas. A primeira teoria é do tempo absoluto, que flui sem nenhuma relação com algo externo a ele, e comporta duas entidades temporais, o momento e o evento. A segunda é a teoria do tempo relacional, que tem como objeto irredutível os eventos, que se relacionam entre si; tal relação pode ser de contemporaneidade e sucessão (anterioridade/posterioridade). O tempo relativo foi formulado pelo renomado Einstein e ficou conhecido como Teoria da Relatividade Especial (TRE).

No capítulo A linguagem e experiência humana Benveniste (1989) fala em tempo cronológico. Este é o tempo no qual estão situados os acontecimentos, que englobam a própria vida, a qual, por ser constituída de uma sucessão de eventos, está ligada ao tempo físico; é o tempo medido pelo relógio. Inserido na temporalidade cronológica se percebem três tempos: o tempo litúrgico, que é voltado para o calendário das celebrações religiosas e rituais. O tempo político, regido pelos eventos cívicos, como as festas patrióticas, etc. O tempo histórico, que se baseia na duração das formas históricas, variável conforme os diversos padrões culturais; representa intervalos que podem ser mais curtos, como guerras e revoluções, ou outros eventos longos, como o advento do capitalismo ou o desenvolvimento do feudalismo, o iluminismo, etc. (conforme o evento, o ritmo desse tempo pode ser lento ou célere). Essa classificação de tempo apresentada por Nunes (2003) pode assim ser resumida5:

Nessa classificação Benveniste (1989) dá relevo ao tempo cronológico, pois sua natureza implica na visão de mundo do homem e na representação das experiências pessoais, ou seja, regula a própria existência cotidiana, assim “é o fundamento da vida das sociedades” (BENVENISTE, 1989, p.72). E ainda, ao se configurar em sequências contínuas de eventos este tempo abriga expressões temporais específicas, conforme a cultura em questão. Por isso, para Benveniste “É necessário que nos esforcemos para caracterizá-lo em sua estrutura própria e em nossa maneira de concebê-lo” (BENVENISTE, 1989, p.71). Igualmente ao tempo

5 Igualmente com intento de compreender a natureza do tempo, Corôa (2005) apresenta uma classificação análoga a essa, comumente encontrada em estudos linguísticos e que representa uma posição comum de muitos estudiosos da língua, sendo: tempo cronológico, que se caracteriza por um “ponto em contínua deslocação em direção ao futuro, de duração constante, uniforme e irreversível” (CORÔA, 2005, p.22); tempo psicológico, cuja duração é inconstante e disforme, haja vista sua ocorrência no mundo interno da pessoa. O terceiro é o tempo gramatical, que se caracteriza em português, pelo acréscimo de morfemas a um radical.

Tempo

Físico Psicológico Cronológico Linguístico

físico, o tempo crônico assume uma versão da realidade subjetiva e objetiva, essa muito buscada por distintas culturas e épocas; é o tempo socializado, que situa o homem na história.

A relação do sujeito com a linguagem fundamentalmente se processa pelo discurso, por conseguinte, além da noção de categoria de pessoa (ou interactantes), outra categoria relevante é o tempo. Tem-se assim, ao contrário do tempo cronológico, um tempo específico da língua: o tempo linguístico. Esse tipo de tempo é uma das formas linguísticas que revelam com mais propriedade a experiência subjetiva do indivíduo, e sua relação com a fala é muito profunda, conforme atesta Benveniste (1989, p.74) na afirmação de que o que particulariza esse tempo é “o fato de estar organicamente ligado ao exercício da fala” e também “de se definir e de se organizar como função do discurso”.

O centro do tempo linguístico está no presente do momento da fala. Isso significa que quando uma pessoa fala com outra é agora que se fala, ou seja, a forma linguística agora marca o presente da enunciação, representando o eixo temporal a partir do qual outros acontecimentos se ordenam, ou em retrospecção (passado) ou em prospecção (futuro). Esse deslocamento temporal torna o tempo linguístico intersubjetivo, condição que efetivamente possibilita a comunicação linguística. Mesmo com a progressão do discurso o presente continua presente, ou seja, ele situa o acontecimento contemporaneamente ao instante do discurso, e os acontecimentos retrospectivos e prospectivos a esse momento atualizam-se através dos marcadores temporais explícitos hoje, ontem, amanhã, depois, etc. Sobre esse aspecto Benveniste (1989) afirma que:

Na realidade a linguagem não dispõe senão de uma única expressão temporal, o presente, e que este, assinalado pela coincidência do acontecimento e do discurso, é por natureza, implícito. (...) os tempos não- presentes, sempre explicitados na língua, a saber, o passado e o futuro, não estão no mesmo nível do tempo que o presente. (...) A língua não os situa no tempo segundo sua posição própria, nem em virtude de uma relação que deveria ser então outra que aquela da coincidência entre o acontecimento e o discurso, mas somente com pontos vistos para trás ou para frente a partir

Contribuindo com a discussão sobre o presente, numa concepção de cunho mais filosófico, em Confissões (2002), Santo Agostino conduz à conclusão de que o presente é o único tempo efetivamente possível, pois para ele o passado não existe realmente e o futuro ainda não chegou. Mesmo quando se fala do passado ou do futuro se está utilizando o presente, já que os eventos se realizam no presente, e este sim, tem a possibilidade de ser medido em longo ou breve, mas somente enquanto passa; quando se trata do passado ou do futuro tais mensurações não seriam possíveis. O filósofo indica ainda que a comprovação da existência do tempo se dá pela própria linguagem, afinal quando se fala do passado, por exemplo, o que vem à memória não são os fatos em si, mas as palavras que representam as imagens dos acontecimentos, que já não existem mais.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 31-34)