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Os actantes e demais sujeitos da narrativa

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 60-68)

CAPÍTULO 1 – Narrativa e identidade: construindo um recorte teórico

1.3. Identidade, mobilidade e fronteira: os actantes do relato

1.3.4. Os actantes e demais sujeitos da narrativa

O discurso da narrativa, segundo Charaudeau (2009), é organizado pelo modo narrativo, que se distingue de outros modos (descritivo e enunciativo) pela visão de mundo que transmite e pelo papel desempenhado pelo sujeito que narra. Esse modo se caracteriza pela articulação entre a “organização lógica da narrativa”, voltada para o mundo referencial, e a “organização da encenação narrativa”, responsável pela construção do universo narrado, nesse caso, “sob a responsabilidade de um sujeito narrante que se acha ligado por um contrato de comunicação ao destinatário da narrativa” (CHARAUDEAU, 2009, p.158). A construção de uma sucessão de ações se dá a partir da lógica narrativa, que se constrói pela configuração de procedimentos necessários entre os actantes, os processos e as sequências.

Em uma acepção ampla, actante pode ser concebido como aquele que pratica ou sofre uma ação. É uma entidade sintática (substantivos ou sintagmas nominais), de caráter formal da narrativa; é um elemento (pessoa, coisa, objeto, animal, valor moral) que participa do ato de comunicação, do processo verbal (REIS, 1988). Como pertencente à categoria de discurso, pode ser classificado em primeiro actante (agente da ação), segundo actante (recebe a ação) e terceiro actante (beneficiário da ação), assim assume funções distintas, ou seja, ao longo de um

percurso narrativo pode assumir um conjunto variável de papéis (BARROS, 2000) relacionados à ação da qual faz parte e depende. O actante está, portanto, ligado às ações narrativas, independente da finalidade dessa ação e, nessa perspectiva, está subordinado ao verbo, constituindo sintaticamente um predicado que compõe uma sequência narrativa.

Em termos topológicos, segundo Reis (1988, p.144), os actantes podem ser considerados “lugares vazios, espaços ou porções virtuais que vão ser preenchidos por um certo número de predicados dinâmicos e/ou estáticos”. Em uma concepção semiótica (BARROS, 2000; GREIMAS, 1993), no interior do discurso enunciado, o actante pode ainda distinguir-se tipologicamente em actante da comunicação, que correspondem ao narrador e narratário; e actante da narração, que equivalem ao destinador e destinatário. Do ponto de vista da gramática, pode classificar-se em actante sintático e actante funcional (ou sintagmático) que relaciona ao papel actancial (estados narrativos ou posições sintáticas modais) de um percurso narrativo.

Para Charaudeau e Maingueneau (2008) os actantes “são os participantes que estão implicados em uma ação” (2008, p.33), e nas ações a caracterização desses pode ser analisada sob o ponto de vista da língua ou do discurso. Ainda para esses teóricos, sobre os papéis actanciais (sujeito/objeto, adjuvante/oponente, destinador/destinatário), a determinação desses na narrativa se daria conhecendo o contexto onde se realiza o enunciado, expressando assim a finalidade da narrativa. Tomamos aqui o exemplo de Charaudeau (2009, p.160): “um homem de sobretudo cinza manda um embrulho ao dono do café”. Considerando os diversos contextos possíveis, os sujeitos envolvidos nessa cena narrativa (homem de sobretudo e o dono do café) poderiam assumir o papel de um agressor-justiceiro, um adversário, um aliado ou um retribuidor. É possível também que um agente não desempenhe nenhum papel narrativo.

Os actantes do enunciado linguístico não se ligam por uma hierarquia, entretanto os actantes da narrativa se hierarquizam de acordo com dois pontos de vistas: o primeiro se refere a sua natureza, ou seja, os actantes de base, que são considerados actantes humanos, por isso ocorrem em número limitado na narrativa. O segundo ponto de vista é o da importância na trama narrativa. Estes actantes

podem ser principais ou secundários quando a trama se constrói em torno de polos, fato que condiciona a presença de actantes satélites.

Charaudeau (2009) admite que “não existe um actante em estado puro” (2009, p.161), por isso acrescenta que, em uma concepção puramente estruturalista, o actante narrativo deveria ser considerado como uma forma vazia de conteúdo, o que seria definido pela sua função na trama. Nesse sentido, tais formas são semantizadas, ou seja, os actantes recebem uma qualificação que, de alguma maneira, intervém na determinação do papel narrativo. Resumindo, de acordo como desempenha o papel de agente – possibilidade de ser forte ou fraco, voluntário ou involuntário, direta ou indireta, etc. –, um mesmo actante assumiria distintos papéis narrativos. Assim Charaudeau (2009) afirma que “coloca-se o problema da existência de um princípio que distinguiria uma forma e um papel vazios de qualquer substância semântica, e uma forma e um papel semantizados” (CHARAUDEAU, 2009, p.161, grifo do autor).

Essas considerações remetem-nos ao tipo de definição que se atribui aos actantes e seus papéis. Isso significa que, quanto mais se define de forma geral e abstrata um actante e seu papel, mais ele se aproxima do chamado arquétipo actancial25. Mas ao se qualificar, ou seja, definir a especificidade qualificativa do

actante e seu respectivo papel, então se aproxima do que tradicionalmente se chama personagem. Charaudeau (2009) julga interessante estabelecer a diferença entre actante e personagem. Esse será a forma qualificada (semantizada), podendo ser uma entidade figurativa (antropomórfica ou zoomórfica) ou não (o destino, por exemplo) (REIS, 1998), enquanto aquele, a forma não qualificada (ampla e abstrata), que só seria concretizado pelo personagem. Logo, um actante pode assumir vários personagens (sucessiva, alternada ou simultaneamente) e um mesmo personagem pode desempenhar papéis narrativos diversos, portanto, diferentes actantes.

Na análise dos actantes da narrativa, Charaudeau (2009) propõe um questionário, e neste apresenta perguntas voltadas para dois actantes de base

25 Como exemplo, Charaudeau (2009) afirma que, quer se conte a história de “um camundongo que salva um leão da rede” ou “um leão que salva um camundongo da ratoeira”, de uma forma ampla, “camundongo” e “leão” têm papéis idênticos na narrativa, o que configuraria o arquétipo actancial, mas ao qualificá-los, estes terão papéis distintos, ou seja, um é “fraco” e outro é “forte”.

(agente e paciente) e prevê ainda especificações de papéis e as qualificações mais usuais. Assim, quando o actante age ele pode ser agressor, benfeitor, aliado, oponente ou retribuidor; essa ação pode ser feita de maneira voluntária, involuntária, direta ou indireta. E ainda, se o actante sofrer a ação ele pode ser vítima ou beneficiário, e se reagir pode fazê-lo por fuga, resposta ou negociação. Se, como beneficiário o actante reagir, a reação pode acontecer por retribuição ou recusa. E, finalmente, as qualificações mais comuns são positivas e negativas. Além dos actantes propriamente ditos, outros sujeitos contribuem para a construção da narrativa.

Muitos estudos, segundo Charaudeau (2009), têm sido feitos para descrever o processo de enunciação da narrativa, ou seja, investiga-se como são configurados o narrador e leitor na narrativa. Uma distinção é importante estabelecer: embora possa parecer a mesma pessoa, o indivíduo que conta a história não é mesmo que a escreve nem o mesmo na vida real. Isso significa que há um indivíduo, ser social e psicológico, o autor, que escreve a narrativa, e o narrador, o “ser de papel” que conta uma história. Tem-se, assim, o sujeito narrante, que “desempenha essencialmente o papel de testemunha que está em contato direto com o vivido (...), isto é, com a experiência na qual se assiste a como os seres se transformam sob o efeito de seus atos” (CHARAUDEAU, 2009, p.157). Distinção análoga se pode traçar do leitor. Na realidade pode-se conceber o indivíduo social, o leitor real, de quem se exige competência leitora, e o leitor “ser de papel”, que corresponde ao destinatário da narrativa.

A encenação narrativa se processa, conforme Charaudeau (2009), a partir de dois espaços de significação relacionados ao texto. O primeiro é um espaço externo (extratextual), que é o espaço onde estão o autor e leitor “reais”. São, portanto, seres de identidade social e corresponde ao sujeito falante e ao sujeito receptor- interpretante. O espaço interno (intratextual) é onde estão os sujeitos da narrativa, que são seres de identidade discursiva (“seres de papel”), sendo, portanto, o narrador e o leitor-destinatário (equivalem no dispositivo geral da comunicação ao enunciador e ao destinatário). O objeto de troca dos sujeitos do espaço extratextual é o texto, seja na forma escrita ou falada. Portanto quatro sujeitos interligados dois a dois compõem o dispositivo da encenação narrativa.

Nessa relação dos sujeitos da encenação narrativa, outras categorizações advêm da maneira como esses parceiros se posicionam ante suas identidades. O autor pode ser denominado autor-indivíduo, que tem personalidade, age na vida social, e vive experiências das práticas sociais; tem uma biografia pessoal, portanto, possui também nome próprio. Na narrativa ele pode estar ausente ou presente, nesse caso torna-se um dos personagens, e assim, segundo Charaudeau (2009, p.185), “testemunha de uma história vivida que lhe é pessoal, ancorada num contexto sócio-histórico”. Esse autor convoca o leitor real – também indivíduo social – a “receber (e eventualmente a verificar) a veracidade dos fatos em função de sua própria experiência de vida” (CHARAUDEAU, 2009, grifos do autor).

O autor pode ainda desempenhar a identidade de escritor, sendo assim autor- escritor, dessa forma apresenta um projeto de escritura26, “o qual depende das

experiências individuais e coletivas que ele conheceu como escritor, no mundo das práticas da escritura (literária ou não)”. Ele convoca o leitor real a “receber e principalmente reconhecer a natureza de seu ato de escritura” (CHARAUDEAU, 2009, p.186, grifo do autor). Desse leitor se exige uma competência básica de leitura. O projeto de escritura pode ser anunciado pelo próprio autor.

Possuindo o papel do sujeito que conta uma história, o narrador pode fazê-lo como um historiador ou como um contador. Como historiador recolhe os fatos de uma realidade histórica e procura ser fiel a ela. Como contador inventa ou cria uma história de acordo com seu saber artístico ou sua imaginação, portanto conta algo de natureza ficcional. Esses dois tipos de narradores convocam o leitor destinatário a receber as histórias, as quais compõem um mundo realista e um mundo ficcional; ao recebê-las o leitor pode verificar ou não a veracidade dos fatos, ou receber e partilhar a história contada como inventada.

Ao tratar dos mecanismos enunciativos, Bronckart (2009) aborda sobre o autor e outras vozes presentes no texto. Para esse teórico o autor está na origem do texto narrativo, pois “como agente da ação de linguagem que se concretiza num texto empírico, é, aparentemente, responsável pela totalidade das operações que darão a esse texto seu aspecto definitivo”, e ainda, “é, aparentemente, ele quem

26 O projeto de escritura pode ser entendido como uma referência à natureza do que vai ser escrito, ou seja, basicamente o gênero, como diário, memórias, biografia, entre outros.

decide sobre o conteúdo temático a ser semiotizado, quem escolhe o modelo de gênero adaptado à sua situação de comunicação (...)” (BRONCKART, 2009, p.320, grifo do autor). Com Bronckart se alinha a noção de autor-indivíduo defendida por Charaudeau (2009), para quem o autor é considerado a sede de um vasto conjunto de conhecimentos e de representações, sobretudo das que se referem ao contexto físico e social, e tudo isso é mobilizado no ato comunicativo da narração. Nesse sentido, o narrador é uma instância de responsabilidade, formal ou interna ao texto; e ainda, pode ser “re-definido como a instância de gestão ou de gerenciamento dos mundos discursivos da ordem do NARRAR” (BRONCKART, 2009, p.323, grifo do autor).

Ainda relacionado ao narrador, Charaudeau (2009) discorre sobre os procedimentos de configuração da encenação narrativa, os quais se referem à identidade, ao estatuto e aos pontos de vista do narrador, procedimentos que se relacionam estritamente. Os vários tipos de sujeito narrador – com identidades distintas – assumem diferentes papéis na encenação narrativa. O autor-indivíduo vale-se de marcas discursivas que o remetem a contexto sócio histórico ou a seus pensamentos, principalmente quando se expressa com um eu. O procedimento de narrador autor-indivíduo pode transmitir um efeito de veracidade, tornando-o um personagem que se dirige ao leitor como um cronista, observador e testemunha de sua própria época, ou contador-testemunha. A remissão ao contexto sócio-histórico é percebida pelo uso de marcas discursivas, além de marcadores temporais, data e indicadores espaciais.

Quanto às formas de intervenção do autor-escritor na narrativa, estas podem realizar-se em geral através de marcas discursivas que remetem ao projeto de escritura, e isso pode revelar veracidade ao que se conta, já que esse autor é um sujeito social. Essa intervenção ocorre em forma de um anúncio no prefácio da obra escrita, por exemplo, no qual ele pode se justificar como sujeito escritor, pode também revelar a fonte de sua inspiração para aquela narrativa, ou ainda atuar como um relator de uma narrativa fiel, sendo ela real ou fictícia, oriunda de outras fontes orais ou escritas.

Como narrador-historiador há marcas discursivas que “protegem” o narrador do subjetivismo, dando à narrativa credibilidade histórica. Na função de narrador- contador, normalmente ele não aparece no texto, contudo a própria organização

dessa narrativa testemunha sua presença. Assim ele pode contar revelando-se explicitamente com o uso de pronomes pessoais (eu, nós) ou outros apelativos, como narrador ou contador, entre outros recursos, que às vezes implicam na presença do leitor-destinatário. Esses são procedimentos através dos quais o narrador pode intervir na narrativa escondendo-se ou expondo-se.

Para Charaudeau (2009), determinar a identidade de um narrador equivale basicamente a responder “quem fala” no texto e a definição do estatuto do narrador deve responder a “quem conta a história de quem”. Concluímos que o narrador é tratado como a instância que conta, assim ele pode interferir de diferentes formas, ou seja, pode contar uma história de um outro, pode contar a sua própria história, neste caso ele faz parte dela como personagem (principal ou secundária ou outras categorias) e ainda ocorrem interferências em que podem figurar vários narradores num processo de encaixamento de várias histórias.

Ao contar uma história de outro, o narrador (autor-escritor) o faz em terceira pessoa, dessa forma não é personagem, por isso mantém uma postura externa à narrativa. Esse procedimento pode conferir à narrativa tanto o efeito de realidade como o de ficção, o que lhe dá a possibilidade de a história ser contada tanto no passado quanto no presente, dependendo da intenção que pretende entre leitor e história. Esse mecanismo se efetiva através dos tempos verbais, neste caso, o tempo passado promove um distanciamento, já as formas verbais de presente dão um efeito de atualização aos eventos. Nesse estatuto o narrador pode interferir de modo totalmente exterior ou pode se apresentar apenas como uma testemunha.

O narrador conta a sua própria história quando faz parte dela como personagem. Mesmo que ele possa encaixar histórias de outros personagens procedimento comum – a narrativa desenvolve-se em primeira pessoa, assim o “narrador e herói são supostamente idênticos”, segundo Charaudeau (2009, p.195). Este teórico descreve ainda outras possibilidades desse estatuto, por exemplo, o narrador pode ser o porta-voz do autor-indivíduo-escritor (autobiografia real) ou não, o narrador-personagem pode ser simultaneamente o autor-indivíduo e um indivíduo fictício (o herói da história coincidiria em parte com o autor-indivíduo). Quando existem muitos narradores, consequentemente têm-se várias histórias que se

encaixam e os narradores podem ser primários (história que se destaca do conjunto) ou secundários (história se encaixa na narrativa primária).

A relação que se estabelece entre narrador e o seu personagem é descrita como ponto de vista do narrador. Após análise de pertinentes e polêmicas opiniões de teóricos que estudam esse aspecto da narrativa, Charaudeau (2009) adota a noção de pontos de vista interno e externo e postula que estes se combinam com outras categorias da encenação narrativa. O ponto de vista externo é caracterizado como objetivo, pois o narrador trata da exterioridade do personagem, seus aspectos físicos e demais traços que podem ser notados ou verificados por outros sujeitos. O ponto de vista interno é caracterizado pela subjetividade, já que o narrador versa sobre o interior do personagem, ou seja, utiliza interpretações dos seus sentimentos, expõe o que sente e o que pensa, além de outras emoções interiores. Esses aspectos seriam percebidos diferentemente por outros sujeitos diferentes do narrador.

Consoante ao aspecto acima, Bronckart (2009) fala em posicionamento enunciativo, o qual, além da narrativa, abrange discursos de outra natureza. Esse teórico também discorre sobre outras terminologias, mas para essa discussão opta pelo ponto de vista, ou seja, trata-se do ângulo pelo qual “são ‘vistos’ os acontecimentos constitutivos da diegese”, esses pontos referem-se à visão externa do narrador, que assume caráter objetivo, a visão introjetada de um personagem, neste caso, para Bronckart, “vai construir então os segmentos de monólogos interiores” (BRONCKART, 2009, p.325), e pode ainda haver a combinação desses pontos de vistas. Estruturalmente essas visões se manifestam, mesmo que parcialmente, pelos diferentes tipos de discursos, ou seja, o discurso direto, indireto e outras variações possíveis.

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