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A questão da identidade

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 52-56)

CAPÍTULO 1 – Narrativa e identidade: construindo um recorte teórico

1.3. Identidade, mobilidade e fronteira: os actantes do relato

1.3.2. A questão da identidade

Inúmeras áreas do conhecimento, muitas desde a antiguidade clássica, têm se dedicado ao estudo da identidade – a Antropologia, a Filosofia, a Sociologia. Conforme De Fina (2009), destacam-se também tendências mais contemporâneas baseadas na Psicologia social e na Linguística ou Antropologia linguística. A bibliografia consultada (SILVA, 2000; WOODWARD, 2000; BAUMAN, 2005; HALL, 2006; DE FINA, 2009) parece indicar que ainda existe uma indefinição conceptual, e isso é observável provavelmente por se tratar de um constructo de natureza tão

23 Dados disponíveis em http://www.lagransabana.com/santaelena.htm, acessado em julho de 2012. 24 O comércio/tráfico de gasolina na fronteira do Brasil/Venezuela é praticado por muitos brasileiros e

venezuelanos. É uma atividade lucrativa e fonte de renda de muitas famílias. O que motiva tal prática é o baixo preço. No posto em Santa Elena o litro da gasolina custa em média R$ 0,20 (vinte centavos); no posto da fronteira custa R$ 0,58 (cinquenta e oito centavos); já em Pacaraima (Brasil), custa entre R$ 1,00 e 1,50, muito mais barato que na capital Boa Vista, onde custa entre R$ 2,85 R$ (dois e oitenta e cinto) e 3,00 (três reais) (Dados coletados em jan./2012).

complexa e abrangente. Para o entendimento do tema, neste trabalho partimos inicialmente das concepções postas por Stuart Hall (2006), que introduz seus estudos destacando três concepções distintas de identidade, as quais levam em consideração a noção de sujeito. Em forma de simplificações, Hall (2006) discorre sobre as noções de sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno.

O primeiro sujeito era basicamente aquele indivíduo totalmente centrado, único, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação; essa era uma concepção muito “individualista” (uma pessoa) do sujeito e de sua identidade. O sujeito sociológico estava envolto na complexidade do mundo moderno e tinha a “consciência de que este núcleo interior (...) era formado na relação com ‘outras pessoas importantes para ele’, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava”. E ainda, a identidade era “formada na interação entre o eu e a sociedade” (Hall, 2006, p.11). Essa concepção condiciona a necessidade de se preencher o espaço entre o mundo pessoal e o mundo público. E o indivíduo alinha seus sentimentos subjetivos com os lugares, objetivos do mundo social e cultural, ‘costura’ o sujeito à estrutura. Entretanto, esse sujeito, considerado unificado e estável, torna-se fragmentado, composto de inúmeras identidades, conforme afirma Hall (2006):

A identidade preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” [...]. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura [...]. Argumenta-se, entretanto, que são essas coisas que agora estão “mudando”. O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades (HALL, 2006, p.12).

Como resultado das transformações do sujeito sociológico, surge o sujeito pós-moderno, o qual apresenta uma identidade instável, não sendo essencial ou permanente; é uma “‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006, p.13). A identidade desse sujeito é definida historicamente, assim ele pode assumir identidades diferentes em diferentes

momentos. Para Hall (2006), “Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”, e conclui que, “A identidade plenamente identificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2006, p.13). Na realidade o indivíduo se depara constantemente com uma multiplicidade de identidades possíveis, com as quais ele poderia se identificar, ainda que temporariamente.

Ainda dentro da concepção de sujeito sociológico, a identidade está ligada à diferença. Para definir essa identidade, Silva (2000) considera que seria muito fácil se fosse levado em consideração “simplesmente aquilo que se é” (SILVA, 2000, p.74), por exemplo, “eu sou professor de espanhol” ou “sou jogador”, “sou bonito”, “sou estudioso”. Dessa forma a identidade seria concebida como algo independente. Nessa mesma linha, há a diferença, que é considerada uma entidade também independente, ou seja, ela é aquilo que o outro é, por exemplo, “José é arquiteto”, “ela é criança” ou “ele é estudante”. Mesmo sendo entidades independentes, a:

identidade e diferença estão em uma estreita relação de dependência. A forma afirmativa como expressamos a identidade tende a esconder essa relação. Quando digo “eu sou brasileiro” parece que estou fazendo referência a uma identidade que se esgota em si mesma. “Sou brasileiro” - ponto. Entretanto, eu só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres humanos que não são brasileiros. Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não fariam sentido (SILVA, 2000, p.74-75).

A identidade e a diferença não são simplesmente elementos da natureza, elas têm que ser produzidas, pois são criaturas do mundo cultural e social, fabricadas pelos indivíduos que interagem em determinados contextos igualmente culturais e sociais (SILVA, 2000). Segundo Silva (2000), a identidade e a diferença são criadas por meio de atos de linguagem. E esta “é caracterizada pela indeterminação e pela instabilidade” (SILVA, 2000, p.80), dessa forma, através de nomeações e distintos atos de fala, ressalta-se o caráter “fluido”, “fragmentado” da identidade, segundo concepções da maioria dos teóricos do tema.

Ao dizer que a identidade é “um movimento na história”, Orlandi (2006, p.204) confirma o caráter instável da identidade. Esse movimento garante que a identidade nem sempre seja igual a si mesma, portanto seria ilusório acreditar que ela fosse imutável, pois está em constante transformação. Orlandi (2006) afirma ainda que a identidade não resulta de processos de aprendizagem, mas refere-se “a posições que se constituem em processos de memória afetados pelo inconsciente e pela ideologia” (ORLANDI, 2006, p.204). Isso significa que ao longo da trajetória de um sujeito, ele pode se identificar com determinadas ideias, assuntos ou afirmações que imagina que combinem com algo que ele já tem. A isso Orlandi (2006) chama de interdiscurso, ou, “o saber discursivo, a memória dos sentidos que foram se constituindo em nossa relação com a linguagem” (ORLANDI, 2006, p.206).

A identidade e a diferença, segundo Silva (2000), tem o poder de performatividade. Esse conceito, de acordo com J. L. Austin (1998), dá à identidade a noção de movimento e transformação pelas palavras. Linguisticamente significa que o “dizer” faz com que algo “aconteça”. A identidade, representada por processos discursivos e linguísticos, incialmente tem um caráter descritivo. Mas além desse caráter, “a linguagem tem pelo menos uma outra categoria de proposições que [...] não se limitam a descrever um estado de coisas, mas que fazem com que alguma coisa aconteça” (SILVA, 2000, p.92). Silva (2000) exemplifica que quando se utiliza o termo “negrão” para se referir a alguém, além de essa palavra representar todos os traços de uma descrição, pode contribuir para reforçar traços negativos que advenham do uso dessa palavra em uma dada sociedade. Portanto:

ao dizer algo sobre certas características identitárias de algum grupo cultural, achamos que estamos simplesmente descrevendo uma situação existente, um “fato” do mundo social. O que esquecemos é que aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de atos linguísticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade que supostamente apenas estamos descrevendo (SILVA, 2000, p.93).

Por essas exposições percebemos que estamos longe de esgotar as discussões sobre identidade, pois essas demandam de análises de questões psicológicas, sociais, entre outras – e nem é o objetivo principal deste trabalho –, por isso não se pode chegar à afirmações conclusivas rigorosas. Contudo há pontos que

estão sempre presentes nas discussões teóricas. A identidade, segundo Hall (2002), não é inata ao sujeito, existente na consciência no momento em que ele nasce, mas é algo construído através de processos inconscientes ao longo do tempo. Não sendo algo pronto e acabado, deveríamos entendê-la como identificação, ou seja, como um processo em andamento (Hall, 2006). E como processo, o sujeito está em constante relação com outro. Portanto, a “identidade surge (...) de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros”, são as chamadas representações (Hall, 2006, p.39). Entende-se representação como forma de atribuição de sentidos as coisas, assim, é através dela que a identidade e a diferença adquirem sentido (SILVA, 2000).

Voltadas para o estudo de narrativas, as pesquisas de Anna de Fina (2009, p.122) levam-na a concluir que “não há uma forma neutra para caracterizar identidade”, dessa forma, com vista ao estudo da identidade na narrativa, a autora parte da análise de tendências contemporâneas opostas, sendo essas oriundas da psicologia social e antropologia linguística. Após extenso percurso teórico, De Fina (2009) afirma que, na busca de definir identidade, a psicologia social refere-se “ao sentimento de pertencer a categorias sociais”, já a linguística foca a definição considerando “o papel da linguagem em processo” (DE FINA, 2009, p.122).

Dentre outros autores, Silva (2000) afirma que a identidade é criada a partir de atos de linguagem, mas Kroskrity (2000 apud DE FINA, 2009) diz que a identidade pode não ser necessariamente expressada a partir dos sentidos da linguagem, mas que essa possui um papel central no processo de construção identitária. O fato é que historicamente linguagem e identidade estão relacionadas à constituição do indivíduo, portanto são inerentes à humanidade.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 52-56)