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A mobilidade na fronteira

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 46-52)

CAPÍTULO 1 – Narrativa e identidade: construindo um recorte teórico

1.3. Identidade, mobilidade e fronteira: os actantes do relato

1.3.1. A mobilidade na fronteira

Historicamente a mobilidade populacional entre Brasil e Venezuela tem suas origens associadas aos processos de ocupação de Roraima que se estendem até a fronteira com a Venezuela, motivados principalmente pela exploração de garimpos de ouro e diamantes, a partir de 1917 (BARROS, 1996). Modernamente a mobilidade entre esses dois países está relaciona com a consolidação da BR-174. A construção dessa rodovia iniciou em 1970 e em 1977 foi concluída a ligação terrestre entre Manaus e a fronteira com a Venezuela, no local conhecido como marco BV-8. O asfaltamento dessa rodovia desde Boa Vista até a fronteira se deu em 1994, fato que possibilitou a transformação oficial do povoado do marco BV-8 no município de Pacaraima, em 1995. Consolida-se, assim, a ligação entre a capital roraimense e o sul da Venezuela e, consequentemente, intensifica-se o fluxo migratório e a mobilidade de pessoas, “entre outros fatores, pela busca de emprego nos países vizinhos, pelo comércio e turismo ecológico” (LEMOS, 2011, p.166).

Em função de um longo e intenso processo de imigração e mobilidade permanente, hoje esse ambiente fronteiriço é ocupado por pessoas oriundas de diversas regiões. Assim como todo o Estado de Roraima, segundo o IBGE, Pacaraima é habitada por brasileiros de todas as regiões do país, com mais de 50% oriundos de estados da Região Nordeste (a maioria do Maranhão) e depois da própria região Norte, a maioria do Pará. Além desses, destacamos que essa é uma área povoada por diversas etnias indígenas. Tanto em Pacaraima quanto em Santa Elena vivem pessoas oriundas de vários países, principalmente hispânico-falantes. Portanto é essa diversidade de povos que constitui o fluxo transfronteiriço, que cruza “la línea” diariamente motivados por inúmeros fatores, entre eles, pelo comércio.

1.3.1.1 O contexto sociolinguístico

Em função da diversidade populacional da região fronteiriça Pacaraima/Santa Elena, a realidade sociolinguística também é diversificada. Segundo Lemos (2011), há alunos venezuelanos (filhos de brasileiros e hispânico-falantes) que estudam em Pacaraima, onde recebem a educação formal em português (do nível fundamental ao superior), e alunos brasileiros (pais brasileiros e hispânico-falantes) que estudam em Santa Elena e em outras cidades venezuelanas. Assim se estabelece “o contato entre a língua portuguesa e a espanhola na fronteira, tornando muitos alunos bilíngues” (LEMOS, 2011, p.167). No uso da linguagem de grupo de pessoas podemos observar empréstimos linguísticos, com maior incidência no léxico (gírias, estrangeirismos, expressões idiomáticas, etc.), e também a alternância de código de uma das variantes utilizadas na comunicação.

A situação de alternância de código é demonstrada por Lemos (2011) a partir da fala de um aluno venezuelano, que cursa o 1º ano do Ensino Médio em Pacaraima, e sua mãe é venezuelana e pai é brasileiro e moram em Santa Elena: “O comércio é muy pegado así, uma avenida bem pegadinha, lá em Santa Elena é mais separado, más aberto, se... se encuentra más grande” (LEMOS, 2011, p.171). Observamos a alternância de código também em um aluno brasileiro, também do Ensino Médio, ao narrar uma história em sala de aula: “Putz! la gasolina acabou!, continuou” (LEMOS, 2011, p.174). Esse contato gera uma diversificação linguística e pode condicionar a intercessão multicultural e, conforme Couto (2009, p.49), a ocorrência de “algum tipo de convergência linguística”.

Além da situação relacionada ao ambiente escolar, podemos observar a diversidade linguística também no comércio, tanto em Pacaraima quanto em Santa Elena. Fala-se predominantemente o português no comércio de Pacaraima, mas devido a presença de falantes que tem como língua materna o espanhol (bolivianos, peruanos, venezuelanos), observamos a alternância de código nas relações comerciais. Os venezuelanos formam o maior grupo de compradores no comércio de Pacaraima, sobretudo quando o Bolívar se valoriza em relação ao Real. Mas, mesmo que a língua predominante seja o português, nessa situação, de acordo com

Braz (2010), usa-se o espanhol como língua veicular12: “a língua dos venezuelanos

é, portanto, apenas uma ferramenta utilizada para viabilizar as relações comerciais entre os brasileiros e seus clientes do país vizinho” (BRAZ, 2010, p.97).

Portanto, sendo o uso do espanhol como língua veicular ou como alternância, na escola ou no comércio, Braz (2010) analisou que o maior prestígio é atribuído ao português, sendo o espanhol considerada uma língua internacional. Observamos que em Santa Elena os comerciantes venezuelanos entendem o português, mas se comunicam predominantemente em espanhol ou com alguma alternância. Se levarmos em consideração as línguas indígenas faladas na fronteira e a diversidade populacional, esses aspectos nos levam à constatação de que essa região é multilíngue ou plurilíngue. Essa é uma realidade em praticamente todos os países, pois, conforme Couto (2009), “é provável que não haja país no mundo que não apresente algum tipo de complexidade linguística; nem mesmo a Islândia” (COUTO, 2009, p.114). Spolsky (1998, p.51) acredita que “Monolingual speech community are rare; monolingual countries are even rarer”13. No caso do Brasil, desde a época do

início da colonização aos dias de hoje sempre se conviveu com muitas línguas. Em Freire (2003) encontramos que quando os europeus estabeleceram os primeiros contatos na América do Sul, só na Amazônia brasileira havia 718 línguas. Esse número se ampliou com as investidas exploratórias de outros povos europeus, e desse processo tem-se hoje a convivência de várias línguas europeias principalmente no Sudeste e Sul do país14. Para o IPOL15, pesquisas apontam a

existência de mais de 200 línguas no Brasil, entre elas, cerca de 180 são indígenas (chamadas de autóctones) e 30 línguas de descendentes de imigrantes (chamadas de línguas alóctones). Desse total de línguas indígenas em Roraima são faladas 12

12Para Calvet (2002, p.57) língua veicular é “uma língua utilizada para a comunicação entre grupos que não têm a mesma primeira língua”. Ela pode ser a língua de um dos grupos que se comunicam, nessa situação no comércio de Pacaraima, fala-se o espanhol dos venezuelanos. Além desse caso, a língua veicular “pode ser uma língua criada, compósita com empréstimos dos diferentes códigos em presença” (CALVET, 2002, p.57).

13 Comunidade de fala monolíngue é raro; países monolíngues são mais raros ainda. (Tradução nossa). 14 Hoje no Brasil convive-se com cerca de 30 línguas alóctones de imigrantes oriundos da Europa,

Ásia, Oriente Médio e de outros países do continente americano (japoneses, alemães, italianos, poloneses, libanês e outros).

15 Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística, sociedade civil de caráter cultural e educacional constituída por profissionais de diversas áreas do conhecimento, para realizar projetos de interesse político-linguístico em sentido amplo (cf. http://ipol.org.br/).

(doze)16: Yanomami, Yanomama, Wai-Wai, Yekuana, Ingarikó, Patamona, Waimiri-

Atroari, Sanuma e Atoraiu; além dessas, destacam-se na região fronteiriça em questão o Taurepang, Makuxi (família Karib) e Wapixana (família Aruak), já que Pacaraima localiza-se nas reservas indígenas São Marcos e Raposa Serra do Sol. Logo concluímos que a região fronteiriça caracteriza-se pela diversidade linguística.

Além disso, estudos em dialetologia (COUTO, 2009) concluem que desde o século 19 não existe uma linha que demarque o limite de dominância de duas ou mais línguas. Existem limites geográficos e políticos estabelecidos oficialmente (rua, rio ou cadeia montanhosa) que, ao definirem as fronteiras de um país, costumam impor o limite de domínio da chamada língua “nacional” e língua “oficial”. Mesmo assim, Guisan (2009) questiona se uma determinada língua tem território, pois historicamente quando as fronteiras ainda não eram definitivas, – os estados nacionais ainda não haviam sido constituídos – o que havia era um continuum linguísticos – as “línguas” se interpenetravam sem determinação de limites de dominância. Contudo, mesmo com a noção de uma língua nacional definida pelos limites geográficos, ainda “existem línguas sem territórios, assim como várias línguas podem se sobrepor num mesmo espaço geográfico; enfim, as fronteiras podem se dissolver num continuum (...)” (GUISAN, 2009, p.23). Essa citação reforça a noção de o contato linguístico estar relacionado à noção de fronteira e ao fenômeno do multilinguismo, realidade sociolinguística da fronteira em estudo.

1.3.1.2 A fronteira norte: o contexto Pacaraima / Santa Elena

O Brasil possui uma faixa fronteiriça de 27% de seu território, e, de seus 28 (vinte e oito) estados, 11 (onze) se limitam com 10 (dez) países sul-americanos. Destes limites 56% constituem linhas de água e 44% representam linha seca17. Faz

parte do limite seco a fronteira norte Brasil-Venezuela, onde destacamos

16 Estes são dados do departamento de Antropologia da UFRR (Universidade Federal de Roraima). Também disponível em www.ufrr.br.

17 Dados disponíveis em http://www.ibge.gov.br/home/ e http://www.portal.rr.gov.br (Sítios acessados em dezembro de 2011).

BOA VISTA

respectivamente o estado de Roraima e Estado Bolívar. Daquele a capital é Boa Vista, localizada a 215 quilômetros fronteira18, e deste, o município de Santa Elena

de Uairén. Em Roraima, além dos municípios de Uiramutã, Alto Alegre, Iracema e Amajari, situa-se Pacaraima19, município que tem sua origem ligada a um processo

histórico de lutas territoriais de demarcação de fronteira com a Venezuela, configurado, entre outros fatores, principalmente pela exploração de garimpos, evento registrado a partir de 1927 (BARROS, 1996), e com declínio a partir de 1960. Essa atividade de “mineração deixou um pequeno quantitativo de população ao norte de Boa Vista, no piedmont de Pacaraima” (BARROS, 1996, p.255), que, a partir da Vila BV-8, seria oficialmente elevado à categoria de município em 1995, com uma extensão territorial de 8.063,9 Km²20.

MAPA 01

Municípios de Roraima que são fronteiriços com a Venezuela

(Mapa: David Sena Lemos)

Da extensão territorial de Roraima, 46% equivalem a terras indígenas, assim possui uma das maiores populações indígenas do Brasil21. O município de

18 Pela posição geográfica a capital roraimense está dentro da faixa de fronteira, conforme a Constituição Federal de 1988, no Artigo 20, § 2º, ou seja, uma faixa de até 150 km de largura ao longo de 15.719 km da fronteira terrestre brasileira. Ver mapa 01.

19 Ver mapa 01.

20 Dados disponíveis em http://www.pacaraima.rr.gov.br/portal1/municipio/localizacao.asp?iIdMun= 100114011. Acessado em janeiro de 2011.

21 Quando se trata de povos indígenas em Roraima, normalmente os órgãos que investigam o assunto divergem quanto aos resultados. Pesquisas do ISA - Instituto Sócio-Ambiental (http://www.socioambiental.org/), FUNAI (http://www.funai.gov.br/) e IBGE (http://www.ibge.gov.br) estimam a população indígena do Estado entre 32 a 47 mil índios vivendo em 32 terras indígenas (demarcadas ou em processo de demarcação) em Roraima. Destaca-se que muitas dessas terras, de acordo com estudos geológicos do Governo Federal, são constituídas de grandes reservas minerais (ouro, diamante, entre outros), principalmente nas reservas Raposa Serra do Sol e

FAIX A DE 50 KM FAIX A DE 10 0 KM FAIX A D E 150 KM

Pacaraima ocupa 98,81% dessas terras, na reserva São Marcos, onde vivem indígenas das etnias Taurepang, Makuxi e Wapixana22. Diante dessa diversidade

étnica podemos dizer que as inúmeras aldeias, o artesanato e as lendas desses povos fazem parte do valor simbólico dessa região. Além disso, destacamos outros atrativos turísticos do município, como a Trilha da Nova Esperança, o Sítio Arqueológico da Pedra Pintada, a Pedra do Perdiz, a Cachoeira do Macaco, o Monte Roraima, além de tradicionais eventos festivos, como o Micaraima (carnaval fora de época), evento que provoca intensa mobilidade de roraimense e amazonenses.

Do lado venezuelano, a cidade de Santa Elena de Uairén está localizada a 15 quilômetros da fronteira com o Brasil (“La línea”) e é a sede do município de Gran Sabana, Sudeste do Estado Bolívar. A cidade foi fundada na década de 20, tendo seus primeiros povoamentos a partir da chegada de missões religiosas e pela exploração de minérios (diamante e outros). Sua população gira em torno de 26 mil habitantes (Censo 2006), e entre os nativos vivem pessoas de outras nacionalidades hispânico-falantes, além de etnias indígenas. Sua população é de origens diversas: venezuelanos, brasileiros, colombianos, peruanos, guianenses, alemães, chineses, japoneses e muitas etnias indígenas (Pemón e Yanomani), que já habitavam a região bem antes da colonização e criação da cidade.

MAPA 02

Roraima: faixas de fronteiras E reservas indígenas

(Mapa: David Sena Lemos)

Ianomâmi, fato que tem registrado históricos conflitos de acordo com a mídia local e nacional.

(Sítios acessados em janeiro de 2011).

22 SEPLAN-Secretaria de Planejamento do Estado de Roraima (2010). Informações socioeconômicas

Em 1999 foi declarada área de livre comércio (Puerto libre)23, aspecto que

torna a base de sua economia, além da mineração, que continua sendo um importante setor produtivo, que atrai inclusive muitos brasileiros de diversas partes do país. O turismo ecológico é outro segmento relevante da economia, pois na região situa-se o parque nacional Canaima e a Gran Sabana, compostos por muitas belezas naturais, que atraem turistas de todo o mundo em período de alta temporada, incluindo muitos brasileiros, principalmente da região Norte do país.

Esses aspectos fronteiriços condicionam a atitude de muitas pessoas que lá vivem, provocam o contato entre povos através da exploração mineradora, do turismo e do comércio de mercadorias (legal e ilegal). Esta última modalidade é reforçada do lado brasileiro pela instabilidade da moeda venezuelana, que constantemente mantém-se desvalorizada em relação à moeda brasileira, aspeto que provoca o intenso “descaminho de combustível”24. Portanto essa é a situação

sócio-política do espaço fronteiriço.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 46-52)