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A identidade e a narrativa

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 56-60)

CAPÍTULO 1 – Narrativa e identidade: construindo um recorte teórico

1.3. Identidade, mobilidade e fronteira: os actantes do relato

1.3.3. A identidade e a narrativa

Para se compreendermos como se constrói a identidade do sujeito na narrativa, reportamo-nos primeiramente ao que se postulou no tópico anterior (3.1) sobre a identidade, e também ao que entendemos como narrativa (2.3). Em uma

acepção ampla, a identidade é um constructo produzido a partir do mundo cultural e social do indivíduo, que a produz em interação com um outro ao longo de sua trajetória; logo, configura-se como algo não inato ao sujeito, que está em constante construção e transformação através de processos inconscientes ao longo do tempo. Alude-se ainda que a identidade se “materializa” por atos de linguagem, e, sendo esses de caráter indeterminado e instável, através de nomeações e distintos atos de fala, pode-se ressaltar o seu caráter fluido ou fragmentado.

Reais ou ficcionais, eventos não se realizam de maneira objetiva no cotidiano do sujeito, mesmo que se possa pensar que ocorram em ordem cronológica, logo são relatados de forma subjetiva, pois tudo depende do ponto de vista do sujeito narrante. Tem-se, assim, a subjetividade como um dos traços intrínsecos à narrativa (BRONCKART, 2009). Nesse sentido, considerando que a identidade pode ser construída por recursos simbólicos e discursivos, a narrativa torna-se uma forma discursiva de expressão da identidade, tanto do sujeito narrante quanto dos demais actantes envolvidos no universo narrativo. Pela narrativa o sujeito pode refletir sobre sua autodefinição, suas relações sociais e demais práticas discursivas que denotam traços de pluralidade e individualidade identitários do dia a dia.

Anna de Fina (2009) expõe resumidamente estudos que focalizam a relação entre a identidade e a narrativa. A autora cita tendências contemporâneas de estudos: a primeira é oriunda da psicologia social, a qual define identidade como um conceito em si mesmo relacionado a um grupo social, de caráter estável, definido e voltado para o indivíduo; a segunda é oriunda da linguística ou antropologia linguística, que tem como foco o papel da linguagem em processo, ou seja, a linguagem contribuindo para a construção identitária de um membro de um ou mais grupos. Relacionando aos estudos narrativos, a identidade como constructo social se direciona por dois paradigmas, um se baseia na “tradição centrada na autobiografia e nas teorias psicológicas da identidade, e outra nos princípios de análise conversacional e na tradição etnometodológica” (DE FINA, 2009, p.124). Entender essas perspectivas de estudo se torna fundamental para a análise da identidade e da narrativa.

Como práticas discursivas, nas narrativas, conforme De Fina (2009, p.128) “os narradores constroem e articulam uma variedade de sentidos que vão na direção

da manifestação deles mesmos para incluir suas múltiplas relações em grupos e práticas sociais.” E ainda, análises deixam patente que, além de “avaliar” (DE FINA, 2009) a identidade, a narrativa também funciona como recurso de transformação e manutenção identitária, pois os sujeitos podem refletir suas crenças sociais, negociando e modificando-as no processo interativo. Nessa direção De Fina (2009) apresenta três níveis de análise de relação entre identidade e narrativa, que são o nível de adesão cultural aos caminhos do narrar, o nível de negociação de papéis sociais e o nível de categorização de membros a determinados grupos sociais.

O primeiro nível está ligado à identidade narrativa, pois se relaciona às questões linguísticas, retóricas e interacionais próprias do narrar, que são construídas e compartilhadas pelo narrador (estratégias do contar, linguagem, tópicos de história, etc.). Esses aspectos podem identificar os sujeitos como pertencentes a um grupo social, étnico e até de gênero, conforme apontam pesquisas citadas por De Fina (2009). No segundo nível, ao longo da história o narrador estabelece uma negociação pessoal dos papéis sociais, ou seja, ele pode, por exemplo, assumir diferentes posicionamentos narrativos na representação do “eu” no mundo da história a partir de escolhas linguísticas ou outros aspectos sociais relacionados ao mundo da interação do qual faz parte no momento do relato. No terceiro nível os sujeitos podem expressar seus sentimentos de pertencer a uma comunidade através de categorização, ou seja, através das histórias o narrador pode avaliar os personagens e a si mesmo, ou posicionar-se em função de valores, crenças e comportamentos implícitos e explícitos. Pois:

Valores e crenças estão associados aos personagens das histórias, e os personagens são avaliados de acordo com categorias tais como moralidade ou imoralidade, normalidade ou anormalidade, adequado ou inadequado em função de suas ações. Assim as narrativas permitem ao narrador relatar as identidades com comportamentos aceitáveis ou inaceitáveis (DE FINA, 2009, p.132).

Os argumentos apresentados por De Fina (2009) demonstram que, além de uma proposta de definição de narrativa, evidenciam que essa, sendo muito frequente nos mais variados contextos de interação social, se torna um recurso discursivo rico para a reflexão sobre as identidades; as narrativas, portanto, “são um

tipo de prática social que envolve o reflexo, a negociação e a constituição de identidades” (DE FINA, 2009, p.133), tanto do sujeito narrante quanto dos “personagens”. As pesquisas dessa autora se voltam para a identidade de grupo, sobretudo baseadas nos dois últimos níveis, os quais tratam da representação e reelaboração dos papéis sociais e na categorização de membros de comunidades.

Para análise das relações entre identidade e narrativa, De Fina (2009) apresenta uma proposta baseada inicialmente no modelo estrutural de narrativa de Labov (ver tópico 2.3), a quem faz uma crítica afirmando que nesse modelo se confunde o mundo narrado com o mundo interativo. Por serem organizadas em unidades discursivas, ou cláusulas (construção oracional), as narrativas servem para o estudo de fenômenos linguísticos e de questões discursivas, principalmente relacionadas ao nível lexical, pragmático e interacional. No nível lexical, Anna de Fina (2009) destaca, por exemplo, os pronomes, que podem ser usados para identificar tanto o narrador quanto os demais sujeitos envolvidos, verbos e construções sintáticas que referenciem de algum modo a relação entre história contada e o mundo narrado.

No nível textual ou pragmático se pode analisar a narrativa considerando as diversas formas de proposições implícitas e pressuposições, relações entre causa e consequência ou entre descrições identificadoras e as ações, além de mecanismos coesivos e relações argumentativas entre diferentes partes do texto. No nível interacional se pode analisar os mecanismos e estratégias diversos, como, codificação das conexões entre os mundos narrado e da interação, o distanciamento relacionados aos interlocutores ou aos eventos narrados, além de outros recursos performativos como a fala reportada, o tom, o ritmo, a repetição, tudo relacionado aos personagens e eventos. Apesar de inúmeras críticas feitas ao modelo laboviano, ao considerar a narrativa como uma forma de recapitulação de experiências passadas, metodologicamente contribuiu muito para a análise de narrativas de diversas áreas do conhecimento humano, principalmente narrativas orais.

Podemos ainda analisar narrativa e identidade, segundo De Fina (2009), a partir de um foco puramente discursivo, ou seja, da Análise Conversacional (AC). Essa corrente de análise diverge em alguns pontos do modelo de Labov (apud DE FINA, 2009), mas destaca a noção de contexto atribuído à narrativa. Para a AC o

modelo laboviano “não dá conta da dinâmica interacional que supõe o contar e narrar, e trata a narrativa de forma isolada do seu enquadramento discursivo, do ambiente discursivo do evento no qual ela está inserida” (DE FINA, 2009, p.136). Ao contrário de Labov, que tratava normalmente de narrativas monologais obtidas por entrevistas, separando-as do contexto, a AC considera a narrativa como parte integrante da interação, do resultado da negociação entre os participantes (narrador e recebedor), do ambiente de fala, ou seja, o “aqui e o agora” são fundamentais para a abordagem conversacional.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 56-60)