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Os actantes e as representações identitárias

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 99-107)

CAPÍTULO 3 – Análise das narrativas

3. Análise da narrativa oral

3.4. Os actantes e as representações identitárias

Dentre as formas de exposição existentes, a narrativa é a que mais tem a ver com as experiências, com o convívio individual ou coletivo das pessoas, por isso contribui para a constituição identitária dos sujeitos. Entre os autores apresentados por De Fina (2009), alguns destacam que o “eu” pode ser construído socialmente a partir da narrativa, pois essa forma de exposição permite ao ser humano dar sentido as suas experiências e compreender-se como um todo. Enfim “a narrativa é central na codificação da experiência humana porque está baseada na sequência temporal e porque a própria experiência só se torna inteligível para os humanos quando eles passam a narrá-la” (DE FINA, 2009, p.125).

Ainda segundo De Fina (2009, p.121) “contar história é uma atividade que pode envolver vários participantes formais, refletindo o poder e as relações sociais entre os interactantes”. Nessas relações, a partir das experiências e eventos relatados, baseados numa sequência temporal, há inúmeras formas pelas quais esses participantes podem expressar traços identitários e características diversas de sua cultura e de outrem que influenciem no seu posicionamento social. Todos esses elementos podem ser identificados ao analisarmos os discursos narrativos, mas para isso é mister entendermos como os participantes são introduzidos pelo narrador e também como são retomados ao longo da narrativa. Igualmente, as formas como os actantes são nomeados ou qualificados podem ser reveladoras das identidades dos sujeitos expressos nas narrativas, principalmente porque quando o indivíduo constrói sua própria narrativa está construindo uma identidade.

Para estudarmos essa relação no ambiente de fronteira, baseamo-nos parcialmente nas concepções teóricas apresentadas por Anna De Fina (2009), especificamente as que focalizam a identidade enquanto constructo social; a abordagem relacionada à narrativa e a expressão da identidade, a qual se norteia pela relação entre o “eu” e o ato de narrar. Vislumbramos, portanto, um estudo “posicionando o ato de narrar com um ato de constituição da identidade” (DE FINA, 2009, p.124). Isso podemos obter, dentre outros processos, a partir da análise da

temporalidade e da relação actancial, componentes intrínsecos aos relatos, tanto oral quanto escrito.

Entendemos que para compreensão da constituição identitária dos sujeitos nesses relatos de deslocamento é importante que analisemos inicialmente os actantes. Para esses entes assumimos aqui a concepção de que são entidade sintática (substantivos ou sintagmas nominais) da narrativa, como um elemento (pessoa ou coisa) que participa do ato de comunicação, do processo verbal, podendo ser ativo ou passivo, assumindo assim funções distintas, um conjunto variável de papéis ao longo de um percurso narrativo (BARROS, 2005). São participantes envolvidos numa ação, segundo Charaudeau (2009), e sua caracterização pode ser analisada sob o ponto de vista da língua ou do discurso.

Quanto à importância, os actantes principais dessa narrativa oral são representados por Felipe, Salomão e José Luiz; já o “cara” taxista, a polícia venezuelana e o sargento da alfândega denotam importância secundária, e, mesmo sendo participantes circunstanciais da ação (GREIMAS, 2008) são igualmente determinantes para o desenvolvimento da trama. Como a narrativa foi produzida oralmente por um aluno em interação em uma sala de aula, os demais alunos, como interlocutores, contribuíram também para a construção das sequências através de processos verbais; esses actantes podemos classificá-los como actantes satélites.

É importante destacarmos que a análise estrutural da narrativa apresenta a distinção entre actante e personagem. O actante desempenha determinados papéis narrativos (por exemplo, distintos papéis de agente; fraco, forte, direto, indireto), mas à medida que esse se especifica qualitativamente, ou seja, as formas são semantizadas ou são investidas de valor semântico no discurso, aproximam-se então da forma tradicional chamada de personagem. Por isso Charaudeau (2009) denomina o actante de forma não qualificada, representando mais uma entidade puramente sintática, expressando assim o nível mais elevado de generalidade; já o personagem é denominado de forma qualificada, pois se configura como a concretização do actante em nível do discurso, ostentando mais particularidade, possuindo inclusive um nome próprio, dados biográficos que em sua apresentação os diferenciam do estereotipo sociológico.

A narrativa oral nos permitiu observar a relação actante e personagem principalmente a partir do sujeito Felipe, que no desenrolar da trama alternou seus papéis narrativos e relativamente representou distintos personagens. Observamos que no início seu papel actancial teve qualificações positivas, sendo um agente amigável, e como amigo ele se une aos outros visando realizar uma viagem para fazer compras e se divertir na Venezuela. As proposições que demonstram esse papel narrativo de Felipe levam-nos à conclusão de que esse actante representava o personagem turista-comprador, um tipo muito comum que contribui para a intensa mobilidade populacional nesse espaço (Brasil e Venezuela). Para comprovar esse aspecto temos na fase de orientação as sequências: (L.07) a gente foi pra barreira ali pra pegar (L.08) táxi pra ir pra Santa Elena a gente ia fazer umas compra por causa (L.09) do... essas coisa toda do bolívar e tal...

Em sequências posteriores o sujeito Felipe torna-se paciente e, conduzido por ações do taxista, assumiu o papel da vítima, resultante de um equívoco, pois juntamente com outros actantes foi deixado na rodovia venezuelana, fato que os levou a sofrer agressões físicas e verbais da polícia daquele país. A atitude dos agentes venezuelanos qualifica discursivamente Felipe, que, do ponto de vista dos estrangeiros, converteu-se em distintos personagens: um prisioneiro internacional, um suposto traficante de combustível e, mesmo seguindo o protocolo do ambiente fronteiriço, que consiste em apresentar os documentos diante de uma abordagem oficial, Felipe foi qualificado como um estrangeiro ilegal, fato comprovado com o anúncio de sua deportação pela polícia venezuelana, e ainda, para evitar esse expediente, Felipe assumiu o papel de agente-corrupto, já que no final da história foi condicionado a “comprar” sua liberdade, mediante pagamento de propina (suborno) à polícia – prática que podemos observar frequentemente nesse espaço fronteiriço.

Nesse relato, que tematizou um deslocamento de um grupo de brasileiros e que culminou em uma desventura, foi-nos possível observar que os várias papéis assumidos por Felipe, ou seja, todos os personagens que esse actante vivenciou, podem representar personagens reais que cruzam a fronteira diariamente, seja pelas mais distintas motivações. Se considerarmos todos os aspectos contextuais desse espaço fronteiriço, podemos entendê-los como sendo marcas de identidades

que são construídas pelos sujeitos (brasileiros e venezuelanos) a cada cruzamento dessa fronteira.

Nas primeiras proposições observamos que o papel actancial de benfeitor pode ser atribuído ao motorista do táxi, pois a ação prevista no início da trama é que ele transportaria os agentes-turistas do lado brasileiro da fronteira à Santa Elena. Mas a partir de eventos subsequentes, supostamente não previstos pelos sujeitos, o condutor abandonou os passageiros no meio da rua, deixando-os à mercê de outro agente-agressor, a polícia venezuelana. Isso nos leva a concluir que o benfeitor inicial converteu-se em agente-agressor; e como personagem, assumiu o papel de um traficante de gasolina – prática “profissional” comum nessa fronteira, conforme observação do contexto sócio-histórico da região – ou um taxista ilegal. Contudo o que pudemos perceber linguisticamente foi um novo papel actancial atribuído a esse personagem, ou seja, por fim caracterizou-se como um agente fugitivo da lei.

(L.19-23)

[...] tava na estrada do Santo Antonio vinha um carro da... da polícia

((risos)) la policía... não deu pra ver... ele pegó a gasolina e jogou no meio da rua e saiu correndo e deixou a gente lá sem entender nada ((risos)) a polícia, aí policial chegó [...]

Portanto essa ação do condutor do táxi pode fazer-nos compreender que esse aspecto relaciona-se à constituição da identidade dos sujeitos desse contexto fronteiriço. Em nossas visitas a essa fronteira observamos que um dos fatores que contribuem para a mobilidade populacional nesse espaço é o trânsito livre de táxis da Venezuela cruzando a fronteira. Esse serviço é feito basicamente por carros velhos e é muito barato em relação ao mesmo serviço prestado pelo segmento brasileiro, e além de alguns taxistas atuarem profissionalmente de forma ilegal ainda transportam gasolina para entregar a revendedores clandestinos brasileiros. Esses são dados conhecidos pelos sujeitos que vivem nesta fronteira, provavelmente por isso o sujeito narrante tenha de certa forma estigmatizado a ação do condutor do táxi que o transportou. Notamos esses aspectos já na situação inicial: (L10-13) vem um cara muito engraçado num táxi bem velhinho assim bem velhinho (...) “vamos nesse aí vai cobrar baratinho”... (...) o táxi só gasolina dentro do carro...

O papel de agente-agressor pôde ser preenchido ainda pelos personagens dos soldados da guarda venezuelana e pelos fiscais da alfândega que, devido ao equívoco, não se relacionaram amistosamente com os turistas brasileiros, pois esses acabaram tornando-se prisioneiros internacionais, conforme foi possível deduzirmos a partir da proposição (L.33) eles falaro “a gente vai ter que deportar vocês”. O agente-agressor é um papel que cabe também ao sargento venezuelano, não nominado no texto, mas pela análise semântica das sequências foi possível depreendermos que seja um dos comandantes da corporação responsável pelo departamento de migração, que, após um longo tempo, concordou em liberar os prisioneiros mediante o pagamento de propina, conforme a proposição seguinte:

(L.44-45)

chegou o::... o sargento lá que a gente teve que subornar ele com o único dinheiro que a gente tinha que eram duzentos bolívar...

Vimos, portanto, que os sujeitos venezuelanos participantes do relato também assumiram distintos papéis, pois analisando as circunstancias enfrentadas pelos actantes brasileiros na trama pudemos perceber que o narrador confere aos sujeitos venezuelanos distintos personagens. Esse aspecto pode também ser a evidência de uma representação identitária construída em relação ao “outro” nesse ambiente fronteiriço. Lá na fronteira observamos cenas de brasileiros sendo maltratados pelos venezuelanos, não só na Aduana, mas principalmente no posto de combustíveis (controlado pelos militares) e no comércio em geral (supermercados e demais lojas em Santa Elena). Especificamente vimos que nem sempre há polidez no tratamento dos venezuelanos para com os turistas brasileiros. É possível percebermos esse fato na fase de complicação: (L.22-25) a polícia, aí policial chegou “no chão, no

chão, deita, deita, traficante, traficante” a gente “nã::o o carro nem nosso não é:: ((risos)) nem nosso não é”... “não entra no carro” pronto prendeu a gente. No momento da interação, notamos que ao falar sobre a polícia, o narrador o faz entre sorrisos e risos com os ouvintes, inclusive ele repete com a pronúncia em espanhol (la policía), como se quisesse enfatizar um traço desses sujeitos venezuelanos como sendo oponentes naturais dos brasileiros naquela região.

Podemos ainda analisar os sujeitos da narrativa identificando os componentes da encenação narrativa, já que distinguem-se, pois “Quem conta (uma história) não é quem escreve (um livro) nem quem é (na vida)” (CHARAUDEAU, 2009, p.183). A encenação articula-se a partir de dois espaços de significação, um externo ao texto (extratextual), onde se encontram o autor e leitor “real”, portanto com identidades sociais, e outro interno ao texto (intratextual), onde estão o narrador e o leitor- destinatário, os quais possuem identidades discursivas. O autor da narrativa é Felipe, que corresponde ao sujeito falante; já o leitor real, ou ouvinte, são os demais alunos em interação em sala de aula, que discursivamente equivalem ao receptor- interpretante, conforme proposta teórica de Charaudeau (2009).

Fazendo parte da encenação, da qual toda narrativa depende, o sujeito Felipe narra a história a partir de suas experiências individuais e coletivas, ou seja, os eventos que relata resultam de suas práticas sociais, as quais compõem sua identidade enquanto autor. E como ele tem um nome próprio, Charaudeau (2009) define esse tipo como autor-indivíduo. Esse sujeito participa dos relatos que narra, ou seja, age como uma testemunha dos eventos vividos por ele, tornando-se assim um personagem da narrativa, ancorado em um contexto histórico específico, conforme comprova a sequência (L.01) como todo mundo me conhece aqui eu sou Felipe. Além disso, a relação autor-personagem foi atestada na sua identificação com o ambiente da trama, e em proposições posteriores ele expressa parte das experiências individuais ou coletivas vivenciadas (L.01-09). Observemos:

(L.01)

eu sou Felipe... eu sou daqui de Pacaraima.

(L.07-09)

a gente foi pra barreira ali pra pegar táxi pra ir pra Santa Elena a gente ia fazer umas compra por causa do... essas coisa toda do bolívar e tal...

A encenação narrativa se configura ainda por outros procedimentos, os quais se referem à identidade, ao estatuto e ao ponto de vista do narrador textual. Inúmeros tipos de sujeitos podem atuar em uma narrativa e com distintas identidades, e isso, para Charaudeau (2009), equivale basicamente a responder

“quem fala” no texto. Assim observamos que na narrativa oral, seguindo a classificação proposta pelo teórico francês, a identidade do sujeito Felipe é tanto de autor-indivíduo como de narrador-contador, pois ele conta sua própria história, sendo um dos personagens atuantes, e conta também a história de outros participantes porque os conhece tanto quanto eles próprios. Os traços da identidade de narrador e de seu estatuto, ou seja, o narrador que conta sua própria história, analisamos através das marcas discursivas, ou modalizadores linguísticos, que, no caso desse relato, são exemplificados pelas proposições (L.02) EU sou daqui, (L.04) EU e mais dois amigos (grifo nosso).

Formas linguísticas ou nominalizações também constituem recursos usados para analisar a identidade na narrativa. Para se reportar aos personagens principais, os únicos nominados no relato oral, como ocorre na orientação e depois na fase de resolução – Felipe, Salomão e José Luiz (Fumaça), o narrador utilizou a estrutura linguística a gente na indicação de primeira pessoa do plural, equivalente ao pronome sujeito nós. É uma estrutura que atua com função pronominal, sendo muito recorrente na narrativa, já que observamos 09 (nove) vezes na fase de orientação, 04 (quatro) vezes na fase de complicação, 15 (quinze) vezes na resolução, e ainda, há 04 (quatro) ocorrências na última parte do texto, a qual o pesquisador interfere na sequência com questionamentos ao narrador (L.48-64).

É comum as gramáticas normativas (CUNHA & CINTRA, 2001; BECHARA, 2009) descreverem a forma a gente como pronome indefinido, pronome pessoal de primeira pessoa e até como pronome de tratamento, mas nem sempre registram como pertencente ao quadro pronominal. É uma marca que revela a intervenção explícita do narrador e o comportamento elocutivo do sujeito falante no relato (CHARAUDEAU, 2009). O fato é que essa forma é uma constante na comunicação cotidiana, especialmente na variante coloquial da língua e, pelo processo de gramaticalização41 já se incorporou ao sistema pronominal do português como

indicação de primeira pessoa do plural, em alternância com o pronome pessoal nós.

41 Como qualquer área de investigação da linguagem, a gramaticalização não está isenta da influência de distintas correntes teóricas na sua definição. Nesse sentido, entende-se aqui gramaticalização como estudo “das alterações de propriedades sintáticas, semânticas e discursivo- pragmáticas de uma unidade linguística que promovem a alteração de seu estatuto gramatical”, ou seja, ocorre quando unidades linguísticas adquirem propriedades de forma gramaticais ou tem sua gramaticalidade ampliada (GONÇALVES, S.C.L. et. al., p.17).

Mas no relato oral não houve alternância entre nós e a gente, ficou-nos claro que o narrador optou pelo emprego da segunda forma. Concluímos assim que o uso constante de a gente linguisticamente qualifica a identidade de narrador- personagem, com a qual manifesta expressiva aproximação com os sujeitos ouvintes; enfim, concluímos que a gente representou uma evidência linguística constitutiva da natureza do texto oral.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 99-107)