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2. Beira-Mar e Pezão: o estereótipo de criminalidade que corrobora o discurso hegemônico

2.5. O estereótipo de criminalidade

2.5.1. A contribuição discursiva na manutenção do estereótipo

Acredita-se que os discursos midiáticos vão ao encontro daquilo que os sujeitos querem ouvir, sobretudo, porque este é o papel da grande mídia tradicional: produzir sensações. É o que Sodré defende em suas palestras ao mencionar com frequência que a mídia não é um aparelho, mas um dispositivo que, uma vez desligada, continua funcionado dentro do sujeito (como o slogan de uma grande emissora de TV fechada que diz que nunca desliga). E por que esse sujeito está sendo apreendido ciclicamente? Ou por que esses discursos produzidos ganham significado para esse sujeito?

Parece interessantesalientar e, mais uma vez, recorrer ao entendimento de Dahl (2012),que destaca a necessidade de reduzir o nível participativo dasclasses antagônicasno discurso hegemônico sob pena de ter o controle da estrutura social ameaçado. Abrir esse precedente significa, na visão do autor, aumentar a capacidade de negociação, o que implicaria considerar determinadas concessões, nem sempre bem- vistas. É claro que se admitem certas possibilidades de troca, mas a ciência política esforça-se para explicar a tentativa de manutenção de um controle já estabelecido, em que o caminho parece ser por meio da redução da capacidade reflexiva. Um desses caminhos seria fazer o maior número de pessoas, no máximo possível de tempo, acreditarque têm a própria opinião. A ideia do discurso hegemônico seria, sempre que possível, atravessar os outros discursos reproduzidos, de acordo com a perspectiva de enunciado já trabalhado por Orlandi (2015).Como já vimos que todo discurso possui uma intenção, a ideia de produzi-lo também visa cumprir algum objetivo. Aliás, a própria Orlandi (2015) também contribui nesse sentido. Para a autora, o discurso vem cumprir o papel dado pela ideologia e, por isso, reproduz aquilo que já faz parte do entendimento da estrutura histórico-social. Assim, dizemos aquilo que nosso repertório de acessos nos permite acessar, e talvez a chave para compreender esse fator necessariamente limitador esteja no entendimento de quem é o responsável por fornecer essa espécie de “cardápio de possibilidades discursivas”. Em suma, significa caminharmos para tentar responder a mais um questionamento: a quem interessa mostrar o que devemos dizer?É necessário, antes dessa análise, entender que o discurso é formador de sentido, já que é nas sensações do sujeito que ele vai ser apreendido. Posteriormente, sua materialização, por meiodas relações sociais, indica seu grau de eficácia esua manutenção reprodutiva não só reforçao habitus, de Bourdieu, maspassa a

107 compor o senso comum, dando, assim, um direcionamento para a história. Apesar da ideiade imutabilidade, a noçãode que esse cenário está pronto acaba por,meticulosamente, treinar o sujeito para acreditar que a manipulação da história é algo distante da realidade do cotidiano. Essa falácia cumpre a missão de servir ao discurso hegemônico e alimentar o estreitamento da capacidade reflexiva desse mesmo sujeito, que, ao não conseguir abandonar as ideias pré-concebidas que não se manifestam na realidade, difundem, mesmo que de forma não consciente, o preconceito. A manutenção desse sistema contribui, ainda, para restringiras relações sociais, assunto tão bem observado no auxílio de Heller,que fala que os esquematismos inevitáveis produzem,também,o estereótipo e o estigma.

Fixar uma realidade e garantir sua reprodução, em conformidadecomum entendimento marxista, nos permite recorrer a Althusser,queconsidera a ideologia não restritaao campo das ideias, mas materializada nas relações. Não estamos aqui falando de qualquer relação, mas, sim,da multiplicaçãodas relações de produção, ou seja, na reprodução de comportamentos, em queo sujeito se submetea um sujeito absoluto, para só assim se reconhecer como sujeito. Esse sujeito absoluto, segundo Althusser,são as instituições a serviço do capital, por meioda propagação de valores repassados à sociedade, pelodiscurso hegemônico. Esse movimento cíclico é fixado com a ajuda do estereótipo.

Michael Löwy (2015) é um dos raros autores e estudiosos do tema que procuram dividir a ideologia em duas partes: para a classe hegemônica, o conceito está mantido; já para a classe subalterna, a denominação muda para utopia, tendo em vista que esse grupo social ainda não alcançou o que almeja atingir pela visão social de mundo; logo, para Löwy, não faz sentido conceituar os dois processos da mesma forma. É um pensamento interessante, já que diferencia não só o que é ideologia, mas sua localização de acordo com a classe social. Essacompreensãopermite nos levar a uma segunda discussão, que a grande mídia tradicional utiliza o poder simbólico de que dispõe, conforme nos ensina Bourdieu, para garantir o controle político e econômico dos grandes conglomerados financeiros.

É importante termos em mente que, por ter um papel fixador, o estereótipo precisa cumprir a função normalizadora. Bhabha (2014), conforme já mencionado, ao tentar entendercomo os colonizados negociavam com os colonizadores para não ter suas

108 culturas varridas pela imposição do processo de colonização, analisou as narrativas do discurso colonial e identificou no estereótipo um importante vetor no processo de localizar sistematicamente o outro sem que este perceba que pode ser ele mesmo.

O que está em jogo é a necessidade da repetição para que não seja necessário reforçar um entendimento sobre determinada situação. Seria como se nos dissessem a todo instante que algo está lá só para não precisarmos ter dúvida sobre onde achar esse algo. Esse processo gera a normalização do entendimento e reduz as chances de questionamento. Estreitar as possibilidades de reflexão não é necessariamente uma novidade do capital, mas acreditamos que o fato de perseguir o mesmo objetivo não invalida a importância de tentar compreender suas formas de ação. “Reconhecer o estereótipo como um modo ambivalente de conhecimento e poder exige uma reação teórica e política que desafia os modos deterministas ou funcionalistas de conceber a relação entre o discurso e a política” (BHABHA, 2014, p. 118).

O ponto de vista defendido por Bhabha (2014), de que há interesses políticos na perpetuação do estereótipo, parece-nos, atualmente e, sobretudo aqui no Brasil, algo não tão distante da realidade. Talvez, o que nos escape, ainda, seja a compreensãode como essa relação se estabelece nesse cotidianoproduzido pelo discurso hegemônico e a serviço do mercado, de acordo com a visão de Sodré (2009).

Produzir relações já que não é possível captar vínculo. O jogo midiático traz, em determinados momentos, a ambivalência de Bhabha (2014)paraexplicar aquilo que falta, mas por um caminho no qual essa ausência está sempre a ser suprida. Esse outro lado da promessa está oculto por uma sensação de preenchimento presente implicitamente no discurso dos agentes sociais a serviço da classe hegemônica, o que faz com que o sujeito se veja no lugar em que gostaria – eternamente, mas que nunca consegue –de se ver representado.

Valedestacar que a publicidade faz isso de forma mais contundente entre os agentes a serviço do capital. Apesar de evidenciar a ausência de imparcialidade nos veículos de comunicação, faz-se necessário abrir um parêntese diante dos inegáveis valores prestados à sociedade pelos profissionais de imprensa na busca por uma sociedade mais justa e igualitária. Esta pesquisa não pretende confrontar o ethos da profissão, mas questionar a necessidade de um denso e crítico ativismo dos jornalistas de forma ampla e pouca crítica. A proposta, portanto, passa pelo debate acerca de

109 eventuais percepções subestimadas sobre a potência da influência do grupo hegemônico, diante da necessidade de manutenção da estrutura social de uma sociedade de classes.

Feitas essas importantes ressalvas, é preciso, ainda, discutir a sutil diferença entre representatividade e representação mencionada por Sodré (2014). Segundo o autor,tal distinção não produz apenas falsa consciência de classes, mas a estabilização de suas relações. Ao procurar manter a ordem que lhe interessa, o discurso hegemônico tenta inibir a reflexão,por meio dos dispositivos simbólicos que lhe convêm, entre eles o estereótipo. Esse processo busca, em última instância, naturalizar o que pode ser questionado e, assim, os discursos fazem, quase sempre, sentido, já que, antes mesmo de serem produzidos (os discursos), os sentidos já foram apreendidos e a relação se aproxima do vínculo e até o imita.

Esse entendimento parece também ter algum sentido diante dos comentários de jornalistas que pretendiam frear a violência ou enjaular o favelado. Quem nasce, portanto, na favela é bandido. Ao darem as mãos, o preconceito, o estereótipo e o estigma localizam o negro, o pobre, o outro. O terreno passa a ser propício para o status auxiliar, citado por Becker(HUGHES apud BECKER, 2008). Por isso, assim como a sociedade norte-americana espera que o médico seja de classe média, branco, do sexo masculino e protestante, nossa sociedade espera que o preto, pobre, sem escolaridade e favelado seja bandido e, apesar de, racionalmente, muitas vezes sermos capazes de discernir esse estereótipo, não podemos deixar de reconhecer que essa mesma sociedade não enxerga,de forma similar, o criminoso condenado pelo tráfico de drogas e aquele político condenado por desviar milhares de reais em recursos públicos. Talvez a foto que encerra o primeiro capítulo desta dissertação resuma um pouco o sentimento da sociedade brasileira, na qual boa parte dos cidadãos não consegue enxergar além do que os olhos estão treinados para ver.

Quem os treina? Apenas a mídia tradicional? Uma boa pista para essas perguntas está na análise de Demétrio Soster (2017), em artigo publicado na Intercom37 em 2017. O autor, que trabalha a perspectiva de sociedade midiatizada, conceito cunhado por

37A Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) é

umainstituição sem fins lucrativos com int eresse na produção e no intercâmbio de conhecimento que envolva tanto pesquisadores como profissionais que atuam no mercado.

110 Sodré (2009), ao considerar o processo de influência da mídia nas relações sociais noestímulodereprodução de sentidos, defende que esses sentidos atravessam a lógica discursiva da mídia,por meioda ambiência que esses mesmos discursos causam. Seria uma espécie de diálogo silencioso entre o discurso hegemônico e tudo aquilo que os discursos hegemônicos já produziram simbolicamente para o sujeito.

O que parece fazer ainda mais sentido se considerarmos o discurso silencioso promovido pelo jornalista Antônio Werneck, durante a produção da matéria para o site deO Globo, sobre a infância de Luiz Fernando da Costa e como Fernandinho Beira-Mar entra no mundo do crime. Soster (2017) analisa o discurso midiático por meiodasquatro classificações do narrador: o primeiro narrador está associadocom o aspecto corporativo e representa a estrutura (suporte) necessária para que o profissional desempenhe sua tarefa;osegundo é compreendido como o profissional de comunicação em si;já o terceiro são as fontes consultadas pelo jornalista na produção da matéria; e o quarto narrador é entendido como todos os sentidos que agem sobre a narrativa.

É por isso que, quando as ofertas de sentido são feitas pelo quarto narrador, o caso de uma campanha contra a violência, a tematização se sobrepõe a questões identitárias internas ao dispositivo (a marca, o nome, a origem etc.), ainda que não prescinda destas (SOSTER, 2017, p. 49).

É importante destacar que Soster (2017) está analisando as narrativas sobre violência e parte da perspectiva da midiatização de três objetos de estudo cuja publicidade dos fatos chamou a atenção da sociedade e exigiu providências dos governantes locais. Aqui, o efeito parece ser contrário: o quarto narrador estabiliza as relações e procura manter o dialogismo entre mercado e Estado em recados contínuos de que as coisas devem ficar como estão.