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3. Playboy, o “xis” da questão

3.8. Beira-Mar, Pezão e Playboy

Nota-se uma tentativa de propor a construção do estereótipo de criminalidade no senso comum, ao sugerir que o interlocutor fixe o desvio a determinadas características

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Matéria de11/08/2015. Disponível emhttp://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/antes-do- crime-playboy-tinha-notas-baixas-e-perfil-normal-na-escola.html, acesso em: 15 out. 2018.

159 econômicas, sociais e de cor de pele. A narrativa localiza essas condições ao destacar a perplexidade dos personagens ouvidos na matéria, um contraponto diante das propostas produzidas em relação a Beira-Mar e Luciano Pezão, antea possibilidadede ingresso no mundo do crime como a mais provável para os sujeitos dessas condições sociais, econômicas e de cor de pele.

Em um dos trechos da matéria produzida pelo jornalista Antônio Werneck para descrever a infância de Luiz Fernando da Costa, o menino pobre da favela Beira-Mar chega a ser retratadocomo um aluno aplicado e colecionador de boas notas. Em um momento seguinte da reportagem, um dos amigos de infância de Luiz Fernando, Marcelo Barreto, chega a dizer: “Um ótimo aluno, inteligente, com boas notas. O que aconteceu? É um mistério. Teve oportunidades, outra opção? Talvez, é difícil dizer.”.

Eni Orlandi (2015) localiza o discurso também na reprodução de sentidos daquilo que já foi anteriormente apreendido. A autora chama esse processo de interdiscurso,algo que foi apreendido pelo sujeito e está guardado em determinado campo da memória, pronto para ser reativado no momento oportuno. Assim, o interdiscurso dialoga com o discurso e o resultado dessa combinação é o enunciado, uma produção discursiva que combina o que está sendo dito com aquilo que já foi dito. Orlandi (2015) vai considerar ainda a perspectiva histórica como algo determinante nesse processo de acionamento do já dito,até porque nossa memória social é constituída pela alimentação do entendimento do senso comum. O que está em discussão aqui é que alguém procura, sempre, orientar o senso comum,

Mas a contribuição de Orlandi (2015) não para por aí. A autora trabalha com a ideia de esquecimentos como condição necessária para que o interdiscurso seja manifestado. Esse esquecimento pode se dar na ordem da enunciação, quando o sujeito possui o entendimento de que toda forma de compreensão possível da realidade que se apresenta diante dele está nas explicações encontradas no discurso. Esse mecanismo leva esse mesmo sujeito a um processo de normalização da realidade, já que, uma vez que as respostas são prontas e acabadas, as situações se tornam extremamente mais simples, e esse caráter limitador é relacional com a capacidade reflexiva. Por isso, passa a ser compreensível que o pobre, negro e favelado tenha como caminho natural a criminalidade. Caminho oposto ao do sujeito de classe média ou classe alta, branco e

160 morador do asfalto. Essa limitação reflexiva é ainda mais condicionada ao caráter fixante do estereótipo, conforme contribuição de Bhabha (2014).

No entanto, Orlandi (2015) também menciona que ocorre outro tipo de esquecimento: aquele do campo ideológico. Temos a ilusão de que somos nós que dizemos o discurso,que ele é nosso. Está localizado na esfera do inconsciente humano aquilo que em algum momento foi dito por alguém e fez sentido ao interlocutor.

Temos a ilusão de ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes. Esse esquecimento reflete o sonho adâmico: o de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem, dizendo as primeiras palavras que significariam apenas e exatamente o que queremos (2015, p. 33).

Talvez possa estar nesse contexto parte das explicações dadas por alguns repórteres ouvidos nesta pesquisa,ao ompreenderm o cotidiano das redações como o resultdo de ações prontas e, praticamente, imutáveis, já que não imaginam a possibilidade de essa realidade ser manipulada. Pode-se discutir ainda a explicação para a reação desses mesmos jornalistas, ao mencionarem, em seus perfis pessoais do Facebook, palavras preconceituosas em relação ao morador da favela, cujo discurso, produzido fora das funções profissionais, procura manter a fixação da alteridade,por meio do estereótipo, e, ao localizar e imobilizar o outsider, baliza as relações em um viés de imutabilidade com acionamento e difusão de estigmas de cor e condição social, dando, mais uma vez, um caráter personificador da criminalidade.

Os veículos de comunicação perecem saber disso e, por isso, acredita-se que procuram cumprir esse real papel social, o de limitar as relações e, assim, manter a estrutura de classes. Cientesde sua condição na sociedade midiatizada, as mídias tradicionais ocupam esse lugar, numa espécie de missão dada pelas grandes corporações financeiras. Mais uma vez, é importante recorrer a Serrano (2013), citado em um trabalho do professor Dênis Moraes (2009), cujo interesse era analisar o comportamentoda mídia hegemônica, compreendido como falacioso, diante de um discurso de busca pela neutralidade e interesse social, em razão implícita da propagação de valores da classe hegemônica.

161 Assim, Serrano procura deslegitimar essa construção simbólica, em que veículos de comunicação parecem nascer com a finalidade de levar justiça aos necessitados e, com isso, garantir um equilíbrio social, o que, em última análise, se mostra implicitamente contraditório ante o que explicita ao grande público.

“No marco do mercado, essa possibilidade [de um quarto poder independente] é uma tolice, porque, nessas condições, só há um poder, que é do dinheiro, o poder que manejam as companhias e corporações” (SERRANO apud MORAES, 2016, p. 122).

Ocorre que tais narrativas não podem mostrar seu interesse de forma explícita, sob pena justamente de arcar com a perda do status, ou capital simbólico de Bourdieu (1989), de imparcialidade, o que eleva os veículos à condição de merecedores da credibilidade social, uma espécie de outorga da sociedade para falar em nome dela. Essa característica, conforme, mais uma vez, Bourdieu salienta, ao analisar que os campos sociais detentores de capital simbólico são aqueles dotados de possibilidades de limitar e, por isso, são capazes de determinar quais agentes do discurso possuem a potência de produzir no senso comum a noção de que alguém está apto a falar em nome de todos, constrói um fértil terreno de legitimidade social.

Sabedores desse percurso, os veículos de comunicação estão agora autorizados a discursar para toda a sociedade, sob o mantra de representá-la, mas cujo interesse real está na difusão de valores que corroborem a manutenção da estrutura social e a ampliação do lucro das grandes empresas. Manter essa lógica significa caminhar ao encontro da ideologia de Althusser (1985).

Compreendida essa parte no processo, é preciso, então, analisar como esse discurso vai apreender as consciências ou, como nos diz Sodré (2009), como vai capturar nossos comportamentos.

Não é tarefa fácil, mas o êxito garante ao mercado a necessária estabilidade em uma proposta de restrição de inconformidades. O discurso deve atender a esta máxima: convencer. Por isso, ele nasce como uma proposta e, para alcançá-la, deve ir buscar espaço em hiatos de sensações, cuja carência simbólica encontra sustentação sobre aquilo que o outroprecisa ser informado. Essa perspectiva está condicionada ao que já foi dito sobre o surgimento do preconceito, posto de forma relacional aos aspectos

162 geográficos e físicos do sujeito, sendo, posteriormente, atribuído ainda a vestimentas de cada grupo social.

Dessa forma, o preconceito está localizado na exterioridade e sua atribuição, condicionada a imputações da sociedade. O preconceito é, assim, um discurso, já que não possui materialidade senão nas relações entre os povos, entre os diferentes. Sua consequência se dá na percepção, manifestada no entendimento daquilo que foi percebido, logo, na expressão e também no discurso. Assim, o preconceito não é inaugurado pelo discurso, mas o discurso inaugura a percepção social do preconceito.

Esse entendimento é valioso para esta pesquisa, sobretudo por considerar que o discurso de classes já encontrou terreno fértil no preconceito, além de toda a sua potencialidade pelo estereótipo, sobretudo o estigma. Parte-se dessa análise para compreender que a narrativa publicada no G1 mostra-se inconformada com o fato de Celso Pinheiro Pimenta ter se tornado um criminoso, por ter sido criado em um bairro da zona sul, em uma família de classe média e ter frequentado escolas particulares. A foto do histórico escolar do menino Celso não dá nenhuma explicação para o fato de ele ter se tornado um bandido. Mesmo que o argumento relacional fosse igual ao produzido para Luiz Fernando da Costa e Luciano Martiniano, em que a inconformidade das matérias jornalísticas se dá porque ambos tinham boas notas na escola, a narrativa produzida para Celso Pinheiro busca outros acessos simbólicos, afinal, o menino de Laranjeiras era péssimo aluno, assim sendo, teria (de acordo com essa lógica relacional entre escolaridade e criminalidade) dado sinais de que poderia se tornar um criminoso no futuro.

O que está sob análise aqui é uma narrativa extremamente preconceituosa, produzida por um veículo de imprensa (nesse caso específico, o G1 que pertence ao sistema Globo, cujo interesse é atender a uma audiência elitizada e, não rarasas vezes, preconceituosa. Talvez o exemplo da jornalista, moradora de Jacarepaguá e frequentadora da Barra da Tijuca, ilustre essa perspectiva, sobretudo porque ela acredita que a diferença no tratamento de ações criminosas, de acordo com o poder aquisitivo de moradores por região, trata-se de algo que “simplesmente é”.

O caráter de naturalidade dado ao cotidiano reduz a capacidade reflexiva dos sujeitos e, assim, corrobora a manutenção da estrutura de classes. Algo que, mais uma vez, se enquadra no conceito dehabitus, de Bourdieu (1989). Todavia, uma discussão

163 que se pretende cumprir é sobre a construção dessa introjeção e, consequentemente, a difusão de comportamentos similares em conformidade com o discurso hegemônico. Em suma: alguém nos educa.

Os veículos de comunicação cumprem papel essencial nesse processo. Os diretores e todos aqueles que ocupam cargos estratégicos nas emissoras de comunicação têm a clareza de que o dito, ao obedecer a essas categorizações – ou ainda conforme Heller (2004), que definiu o recurso de o sujeito categorizar o cotidiano em esquematismos, além de garantir a estrutura de classes – encontra conformismo em grande parte da sociedade. Por isso, Orlandi (2015) já havia compreendido que o sujeito pode experimentar no sentido de se imaginar como o outro.

Esse processo permite que o sujeito imagine como seu interlocutor reagiria a suas palavras. É, por assim dizer, uma tentativa de antecipação de comportamentos, uma maneira de tentar prever como seriam as reações. Por isso, Orlandi (2015) chama a atenção para a produção simbólica compreendida no discurso, cuja finalidade vai ser produzir determinados efeitos no interlocutor. Não é possível abandonar a perspectiva de que essa previsibilidade não será sempre cumprida, haja vista a subjetividade do sujeito. O que esses discursos parecem buscar aqui é compreender e compactar essas percepções em um nível médio, em uma maximização possível desse entendimento.

Talvez o que potencialize esse ponto de vista esteja exatamente no jogo entre aquilo que os veículos de comunicação escondem e representam diante do que eles procuram passar como imagem. A falácia da credibilidade em um discurso de neutralidade que dá a eles a outorga social de representatividade conduz esses veículos de comunicação a uma posição privilegiada, em que seu lugar de fala prende mais a atenção dos interlocutores. E o que Orlandi (2015)vai chamar de relação de forças, é quando, mais do que o dito, importa quem diz. Algo que vem sendo reproduzido sistematicamente em nossa sociedade, quando diz, em tom de brincadeira: “Se deu no

Jornal Nacional, então é verdade.”.

Foucault (1996),ao trabalhar o poder que há no discurso, analisou também as formas de controle do discurso. O autor procurou demonstrar como a sociedade autoriza o sujeito a ter o direito à palavra e de que forma essa condição é dada. Foucault (1996) buscou compreender como a alguém é dado um lugar de fala e o que esse lugar representa em termos de repersentação de poder.Tal condição de poder de fala tem

164 levado, historicamente, a imprensa tradicional a ter a possibilidade de produzir o que Orlandi (2015) chama de formações imaginárias,compreendidas como formas de projeção diante do entendimento de vida que se concretizam nas relações com o outro. Como a própria autora define: é a passagem da situação para a posição ou da posição empírica para o discurso. Assim, o sujeito pode experimentar por meio do contato simulado,em que a abstração é produzida, e consumir por meio do contato,no qual se materializa e se fecha (temporariamente) esse ciclo de subjetividades.

Daí, talvez, alguma análise possa ser feita em cima das percepções de Sodré (2009), ao defender que, na sociedade midiatizada, não é incomum que as subjetividades sejam apreendidas pela mídia. Esse raciocínio parece reverberar nessa perspectiva falaciosa de quarto poder, queparece estar mais condicionado a acessar o quarto narrador, conforme artigo de Demétrio Soster (2017).

O autor analisa ainda as narrativas produzidas pela mídia em relação às ações de violência, partindo do interesse em compreender como os veículos de comunicação são provocados para noticiar justamente determinados temas violentos. Soster (2017) vai engendrar narradores, uma espécie de componentes que vão contribuir para o processo final da matéria produzida pelo veículo de comunicação. Conforme essas categorizações, há espaço para o suporte material dado pela empresa – o próprio repórter, as fontes usadas na produção da matéria e, finalmente, a ambiência que influencia o texto.

O que Soster (2017) está discutindo é justamente quando uma temática causa uma espécie de desequilíbrio no senso comum, forçando uma reposta dessa mesma sociedade, tanto do ponto de vista político, quando do social. Playboy desarruma o que o senso comum compreende como criminalidade. O bandido analisado não possui o estereótipo de... bandido! Estamos diante de um criminoso incoerente com os traços de status auxiliares, conforme definição de Hughes (HUGHES apud BECKER, 2008, p. 43).

O que parece, no entanto, peculiar em relação às narrativas midiáticas produzidas sobre Playboy é que essa reação aparenta certa preocupação do discurso hegemônico em dar uma resposta para a sociedade diante de uma evidente situação de desconforto, ao presenciar a formação de um criminoso em um ambiente cujo processo não é condizente, de acordo com esse mesmo senso comum.

165 Talvez aqui a diferença esteja na compreensão da grande mídia, de que ela não precisa ser provocada para dar publicidade ao fato. Parece ainda possível deduzir que esse movimento de antecipação – de acordo com a perspectiva de Soster (2017) – vai ao encontro da necessidade de manter a estabilidade social. Dessa forma, uma jovem baleada em umauniversidade, uma segunda jovem morta na estação do metrô ou, ainda, cenas de violência em Copacabana durante o carnaval legitimam um discurso de indignação seletiva e produzem o envio de tropas federais para reforçarem a segurança pública do asfalto e promoverem o extermínio na favela, local limitado para a violência.

Sendo assim, Celso Pimenta é do asfalto e ainda do asfalto da zona sul. Celso não teve pais traficantes e ainda é branco. Por isso, ao tornar-se Playboy, também evidencia a necessidade da proteção regional. Assim, a voz da mídia precisa intervir, sob o pretenso discurso de cobertura da violência, mas que, ao se interessar mais pelo Celso para entender o Playboy, mostra, implicitamente, por meio de uma segunda análise simbólica, conforme ensina Barthes (2001), que o risco precisa ser contido ou, como já mencionado pelos próprios colegas jornalistas do Extra, a guerra precisa ser freada.