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Uma das hipóteses levantadas nesta pesquisa é de que antes dos sujeitos se formarem e atuarem como jornalistas, professores, médicos ou advogados eles já estão inseridos em um processo de formação como sujeitos sociais. Já introduziram discursos em momentos diferentes da vida, cuja relevância das narrativas midiáticas não pode ser, sob qualquer hipótese, menosprezada. Assim, antes de serem jornalistas são também o público, a audiência. A seguir, mais um diálogo entre jornalistas em seus perfis pessoais do Facebookque parece corroborar essa perspectiva.

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Fonte: Facebook.19

Figura 10: Novos comentários sobre a morte da turista Maria Esperanza.

Entre outras coisas, chama a atenção a parte do comentário que associa o apreço a uma cultura produzida na favela como adoração à miséria, evidenciando que em determinados espaços geográficos não estão legitimadas a produção cultural, a troca de conhecimento, mas o local serve apenas para fomentar o crime e a violência. Dessa forma, os jornalistas cumprem, sem se darem conta disso, a proposta presente nas narrativas midiáticas e, dessa forma, agemem consonância com esses valores preestabelecidos, se igualando aos internautas nos comentários sobre a prisão de Eike Batista. Assim, ao difundirem o preconceito, os profissionais de imprensa potencializam o poder do discurso, por meiode um lugar no qual estão autorizados a ter poder de fala, e ainda conforme Foucault (1996), reverberam esse poder, já que não estão impedidos de propagar seu discurso, o queviabiliza a disseminação de seus valores.

Mais do que os discursos produzidos no Facebook, os comentários de apoio surgem em uma velocidade digna da escalada tecnológica. São mensagens, emsua grande maioria, de apoio, num claro sinal de respeito aos jornalistas mais experientes ou, ainda, numa silenciosa admiração daqueles que sequer são jornalistas. Tal relação não se estabelece também por acaso.

Bourdieu(1989) compreende nossa sociedade sobuma perspectiva fisicamente estrutural. Cada campo dessa estrutura representa, para o sociólogo francês, um campo social, percebidocomo um espaço dentro dessa estrutura, cujos valores imprimem certo grau de relevância e uma capacidade de autonomia relativa. Nocampo social, os sujeitos usam os atributos que o legitimam, considerando aquilo que o campo social valoriza, aquilo que, para esse campo, possui valor.

A inegável contribuição de Bourdieu parte da inovação em apresentar uma teoria que uniu construcionistas e estruturalistas, ao considerar que as relações estruturam a sociedade diante das constantes tensões entre os campos sociais, mas também não ignoram que a estrutura social baliza as relações entre os sujeitos, ao fornecer o capital

19Disponível em:

https://www.facebook.com/search/str/rocinha/keywords_blended_posts?epa=FILTERS&filters=eyJycF9h dXRob3IiOiJ7XCJuYW1lXCI6XCJhdXRob3JcIixcImFyZ3NcIjpcIjEwMDAwMTI0NzYyOTc4NlwifSJ 9, acesso em 24/10/2017.

67 simbólico, mediador das ações em sociedade.

De acordo com essaperspectiva, Bourdieu considera que determinados campos sociais destacam-se diante da possibilidade de uso dessecapital simbólico. Para o autor, são agentes que possuem uma espécie de outorga da sociedade, mediante, sobretudo, uma estrutura preestabelecida, e queao se fazerem valer dessa prerrogativa, usam sua força de potência para difundir conceitos e influenciar comportamentos. Bourdieu acredita que os sujeitos que integram essescampos, detentores de capital simbólico, estão autorizados a definir e delimitar,por meioda autoridade que lhes é conferida de enunciador. Fazem parte desse campo social, na visão do autor, os políticos, os religiosos, os professores, os artistas e os jornalistas, por exemplo.

Logo, em uma sociedade midiatizada, a força – ou o capital simbólico – de que dispõem os jornalistas não pode ser renegada e, consequentemente, sua potencialidade, subestimada. Assim, a mídia pertence ao grupo que tem a capacidade de influenciar comportamentos, criar – recorremos novamente a Bourdieu –o habitus, esses dispositivos introjetados, apreendidos e manifestados no corpo e em práticas populares, mas cuja proposta pertence à classe hegemônica. Dessa forma, ao perceberque muitas visões de mundo do sujeito possam estar atreladas às perspectivas propostas por esses agentes, sobretudo a mídia, a considerar nossa sociedade contemporânea, dentro da perspectiva de bios virtual, deSodré (2009), não podemos ignorar que os profissionais de imprensa, antes de se tornarem jornalistas, são também,elesmesmos, sujeitos sociais, em que pesem, nesta proposta, os comentários de alguns deles em seus perfis pessoais do Facebook, conforme já comentado nesta pesquisa.

O que se pretende abordaraqui é que se o cotidiano é o espaço da irreflexão, as redações jornalísticas também o são. A necessidade de acompanhar a velocidade da tecnologia – que provoca o caráter de imediatismo da notícia –, diantedacompetição com a concorrência, acirrada pela convergência midiática, produz um efeito de estreitamento ainda mais acentuado na relativização dos acontecimentos e, consequentemente, na reflexão sobre o cotidiano. Então, assim como o cotidiano das ruas está naquilo que parece dado, o cotidiano das redações também se esconde em uma lógica falaciosa do pronto.

Mas por que muitos jornalistas reproduzem os valores determinados pela mídia? Talvez em função do capital simbólico dentro da estrutura social,por meio da

68 perspectiva de Bourdieu(1989), além do uso dessa possibilidade para o sujeito se legitimar nacampo em que desempenha seu papel social. Se considerarmos ainda que os campos estão em constante interação, não podemos desqualificar o caráter dinâmico da estrutura da sociedade, de acordo comuma perspectiva de classes. Ora, ao considerarmos ainda que a mídia possui relevância nessaestrutura, não só corroboramos a visão de Bourdieu, mas nos aproximamos tambémda perspectiva de Althusser (1985), cuja análise sobre a propagação da ideologia hegemônica está compreendida emuma proposta que abrange os aparelhos ideológicos doestado. Aqui também a mídia ocupa essa posição de destaque, classificada sob a ótica do aparelho de informação.

É bem verdade que Althusser,nessaperspectiva, destaca a escola como o mais relevante dos aparelhos ideológicos doestado. O autor considera que as instituições de ensino recebem o sujeito social ainda enquanto criança e, portanto, vulnerável no processo de compreensão de mundo. Sobre esse autor algumas observações devem ser feitas: Althusser (1985) analisa essa questãosob aperspectiva da década de 1980, em quea tecnologia despontava para o mundo, mas cuja influência era muito menor do que nos dias atuais,assim, é compreensível que o autor desse ênfase às instituições escolares.No entanto, parece mais oportuno, para os dias atuais, perceber a eficácia da influência da tecnologia, da quail a mídia se apropria em larga escala para lhe dar essa condição, ainda mais preponderante, de contato direto com o sujeito social enquanto criança e, consequentemente, em período de maior vulnerabilidade na construção de suas visões de mundo.

Desse modo, a mídia forma juízos de valor nos sujeitos sociais, o que parece influenciar as relações sociais, já que está na interação a realização desse sujeito comoator social. O que esta pesquisa quer investigar reside na perspectiva viva de que esse mesmo sujeito é sistematicamente capturado pelo discurso hegemônico, eque tal processo de captura não representa um caminho sem volta, mas uma construção constante,por meiode apreensões realizadas e frustradas. Ao considerar esses momentos de passagem, em queas sensações e os comportamentos são apreendidos, o sujeito se manifesta de acordo comuma perspectiva direcionada ou tem seu particular permeado pelo genérico. Logo, antes mesmo de passar para o humano genérico de Heller, já possui parte desse particular apreendido, por intermédiode um movimento de imbricação.

69 Mais do que agir em conformidade com as normas do grupo, esse sujeito, como o jornalista que reproduz o discurso preconceituoso e estereotipado em relação ao favelado, reproduz as relações de produção, seguindo a lógica da ideologia de Althusser.

Por isso, ele se coloca como uma peça de uma engrenagem em movimento, cuja participação é fundamental para continuar a propagar a ideologia da classe hegemônica. Contribui, assim, para o habitus, de Bourdieu, mas o faz sem de dar conta. Age envolvido – novamente recorremos a Bourdieu – pelo poder simbólico, uma força que está em todos os lugares e não está em lugar nenhum. Trata-se de uma orientação disfarçada de opinião, uma legitimação camuflada de autonomia, e como a mídia já foi compreendida, tanto por Bourdieu como por Althusser, como peça essencial nessalógica de poder na sociedade estruturada por classes, é inegável a participação dos veículos de imprensa nesse processo.

Um processo no qual osjornalistas se apropriam do valor desse campo social para legitimar suas paixões pessoais, mas que também são usados como canal para a difusão de valores do mercado. Assim, da mesma forma que esses jornalistas criticam o turismo na favela do Rio, defendem uma intervenção das Forças Armadas também nas favelas do estado. Tanto para lazer, como para a segurança, o medo está localizado e o

outsider, consolidado.

Orlandi (2015) nos diz que as palavras não pertencem ao sujeito. Elas estão pairando sobre nossos sentidos, prontas para ser assimiladas em um contexto, sobretudo se são oferecidas pelas instituições legitimadas pela sociedade para cumprir esse papel. São os campos sociais de Bourdieu detentores do capital simbólico ou, emuma perspectiva similar, proposta por Althusser, são as instituições que possuem o aparelho hegemônico do Estado e, por isso, detêm o privilégio do local de fala. São esses campos – ou os indivíduos sociais que estão inseridos nesses campos sociais – que possuem uma espécie de outorga social para delimitar a fala, aquilo que deve ou não ser discutido. Apesar de não negar as características ativas da recepção, dotadas de discernimento e vontade própria, também se torna inegável destacar a potência de possibilidadesantea latente influência dessas instituições no meio social, sobretudo a midiática, diantedascaracterísticas de nossa sociedade midiatizada, conforme já mencionado por Sodré (2009).

70 Daí a importância dos veículos de comunicação no processo de construção da opinião das pessoas. Compreender essas pessoas comosujeitos sociais significa entender que todos os nossos valores vão sendo constituídos pelos valores da sociedade em que vivemos, assim, ao ingressar no mundo, o bebê passa a ser experimentado em determinados padrões preestabelecidos e os assimila, formando aquilo que Locke (1973) compreendeu como o pensamento. Dessa forma, o processo de formação do pensamento – uma característica individual – está associado aos ensinamentos da sociedade – uma característica do coletivo –, em que,por meiode sua propagação com a assimilação e repetição, tem-se o habitus de Bourdieu.

Essa concepção de sociedade nos impõe condições que noseducampara nos transformarmos justamente em sujeitos sociais. Assim, ao exercermos nossa capacidade humana genérica, conforme nos ensina Heller (2004), a fazemos em consonância com uma expectativa lógica social. Essa compreensão pode dificultar o entendimento do processo de formação social, no qual, antes de sermos pais, médicos, mães, jornalistas, sindicalizados, heretossexuais ou homossexuais, ricos ou pobres, somos formados porum sistema de crenças e valores que nos constituem comoseres sociais. É evidente que essa construção é um processo contínuo e permanente, cujas escolhas são resultado dessas influências,que resultam nessas escolhas, oque só reforça a intervençãodo meio no qual o sujeito está inserido, com destaque para o papel relevante da imprensa nessas escolhas.