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3. Playboy, o “xis” da questão

3.5. A credibilidade da imprensa a serviço do capital

Os veículos de comunicação são empresas, cujo interesse é também gerar lucro. Assim como qualquer negócio, trabalham com produtos que, no caso da grande mídia tradicional, é a informação. Ocorre que, para conseguir manter sua reputação (o capital simbólico de Bourdieu), a imprensa se declara neutra. Logo, o argumento de que toda notícia transmitida ao grande público é imparcial carece de fundamento diante das próprias teorias da comunicação, algumas, inclusive, já discutidas neste trabalho.

Negar a subjetividade do profissional de comunicação seria admitir que toda escolha é puramente técnica e que a intenção deve ser abandonada. Pesquisas recentes já revelaram, inclusive, o processo subjetivo durante a escolha de cientistas de ciências exatas em trabalhos de pesquisa, o que reforça o entendimento de que qualquer escolha obedece a algum grau de subjetividade. O tema não é nada inovador e já tem sido

138 amplamente debatido nas academias de comunicação, mas, ainda assim, grande parte do público acredita na imparcialidade do jornalismo. Por que será?

Ignácio Ramonet (2013) acredita que os meios de comunicação estão com a credibilidade em processo de declínio e credita tal fato ao surgimento de novas tecnologias e às mudanças no cenário econômico. Para o autor, a imprensa precisa aprender a lidar com a chegada de um volume maciço e veloz de informação, sobretudo pela internet, o que provoca a perda da lucratividade das empresas do ramo e a consequente necessidade de mudanças cada vez mais frequentes na linha editorial. Tais exigências constantes de adaptação,ainda segundo Ramonet, elevam os riscos de erros cometidos e trazem consequências diretas.

Paradoxalmente, são os riscos da sociedade midiatizada, de Sodré (2009),em que a abundância de informações e a velocidade como elas são transmitidas refletem uma das faces das novas descobertas tecnológicas. Por isso, o autor defende que vivemos em outra esfera de existência – a do Bios Virtual) –, na qual os agentes buscam direcionar as relações por meio da apreensão dos sentidos. E essalógica de globalização do capital –em que a economia não possui nacionalidade, mas raízes flexíveis em grandes corporações – também dá as cartasnas empresas de comunicação e funciona conforme a ideologia althusseriana, agindo como motor na perpetuação das relações de produção.

Está na interação a materialização desse sistema, em que o vívido é a relação social analisada por Heller (2002)e, por isso, os mecanismos de controle são discursivos, afinal de contas, pela perspectiva de Foucault (1996), todo discurso é uma potência de poder:está naquilo que se diz e, sobretudo, em comosediz a possibilidadede alcançar o poder ou se manter nele. Um trabalho constante, ciclicamente renovável, sob a lógica da sociedade civil como uma arena de disputa, conforme nos apresentou Gramsci (2002). Não de forma desinteressada, as narrativas do discurso hegemônico já fazem isso há séculos e,comonos demonstrou Bhabha (2014), está na ambivalência – ou nos processos de paráfrase e polissemia de Orlandi (2015) – o jogo de reforçar o que não precisa ser mais dito, mas isso não é o não dito que a autora também analisa, já queeste busca e volta ao terreno seguro e assume um papel imobilizante, do ponto de vista do referencial simbólico do sujeito, cuja relação atinge o sujeito comum, como naproposta de Sodré (2009), reproduzindo o que seria o vínculo, que passa, necessariamente, pelo caráter fixador do estereótipo de Bhabha (2014).Nesse contexto,

139 assumem ainda a mais necessária relevância de análise os aspectos simbólicos produzidos pelos discursos midiáticos diante do criminoso Playboy, sob a perspectiva política e econômica.

Ramonet censura a falta de autocrítica dos meios de comunicação, agravada ainda mais, de acordo com o autor, pelo fato de esses mesmos veículos de imprensa procurarem se legitimar na sociedade por meio de um viés de justiça, diante de críticas a todos os agentes que, no jugo dessa mesma imprensa, agem em não consonância com aquilo que a sociedade espera deles. Mas há mais do que essa impressão superficial propositalmente autodenominada pela mídia, uma vezque esse discurso de imparcialidade deixa incólumes os reais interesses econômico e políticos que os veículos de imprensa estão interessados em difundir. Dessa forma, acredita-se que a imagem de credibilidade procura, em certosmomentos, cumprir uma função mentirosa de autonomia discursiva em nome dos sujeitos, por meiode uma legitimidade também enganosa.

Pascual Serrano (2013) chama a atenção para a bandeira da liberdade de imprensa defendida pela mídia e acredita que a liberdade de expressão é que está em jogo, em um sentido democrático de acesso às informações, de modoque esses mesmos veículos de imprensa cumpram o compromisso assumido de garantir que um fato vai ser publicado, independentemente dos interesses econômicos em curso. Para o autor, o discurso de liberdade de imprensa é, assim, também falacioso, já que procura, em última análise, resguardar o empresário do setor de comunicação de difundir os valores de interesse das grandes empresas, por meio do discurso hegemônico, o que acaba por perpetuar a estrutura da sociedade de classes.

Serrano critica o status de quarto poder atribuído à mídia, em uma alusão ao capital simbólico desse campo social, considerado, figurativamente, igual aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, já que, justamente por meio dessa perspectiva de senso de justiça, o autor destaca a necessidade de a sociedade olhar para os demais valores em jogo nos outros campos sociais.

É um mero apêndice dos grupos empresariais, mas não hesitaríamos em considerá-lo mais poderoso do que os outros três. Basta observar a agressividade de suas reações contra políticas progressistas na América Latina. Hoje, a oposição a esses governos não é a dos

140 partidos políticos de ideologia contrária, a par de sua militância cidadã, mas os grandes meios de comunicação, que se tornaram atores políticos fundamentais (2013, p. 72).

É importante destacarmos que este livro foi lançado em 2013, quando a configuração política na América Latina, diferente da dos dias atuais, assumia uma predominância da esquerda no poder. Ainda de acordo com a análise de Serrano, torna- se valioso salientar a proximidade com a definição de capital simbólico de Bourdieu (1989), sob a perspectiva do poder de atuação e da influência das relações sociais na estrutura de classes.

Considerar a presença de grandes corporações por trás dos veículos de comunicação, conforme se discute nesta pesquisa, não pode e não deve anular a reflexão diante dos interesses de exploração. Esse processo se dá pela expansão do capital de variados segmentos por parte dos empresários do setor de comunicação, cujas empresas também ajudam nesse propósito,por meio de lobby político e econômico e das bancadas do Congresso que representam cotidianamente essa realidade. A presença da política por pressão dos veículos de comunicação não é uma novidade, conforme a análise do envio de tropas federais ao Rio de Janeiro, em fevereiro de 2003, e pela intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2018.

Localizar a violência parte da necessidade de também personificar a criminalidade, atribuindo-a ao senso comum, cuja constituição se dá pela construção sistemática da memória social. A grande mídia tradicional cumpre relevante papel nesse processo e suas narrativas são importantes pistas desse movimento, que preconiza fixar a ordem das coisas, dando-lhes um caráter natural, cuja compreensão acontece no cotidiano.

Preto, pobre e favelado são a personificação da criminalidade, cujo estigma cumpre seu caráter fixador, e, por serem um tipo de estereótipo, conforme já nos disse Goffman (1988), reduzem as possibilidades de análise de determinado povo, por meio de características limitadoras imputadas ao grupo do qual fazem parte. Por isso, Beira- Mar e Pezão dificilmente seriam outra coisa senão bandidos. Por isso, Playboy, Eike Batista, Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão não podem ser vistos na mesma lógica de bandido.

141 A diferença aqui é que Celso Pinheiro Pimenta se tornou Playboy e, ao gravitar entre a classe hegemônica e a oprimida, poderia desestabilizar o senso comum diante do entendimento do outsider, de Becker(2008),e qualquer risco de produzir uma nova memória social que contraria a ordem desse discurso hegemônico precisaria ser extirpada. Afinal, o bandido até pode andar de helicóptero, quer seja com o dinheiro público, quer seja para transportar cocaína, mas o criminoso (a palavra carrega mais peso simbólico), aquele que deve de fato ser temido e rejeitado pela sociedade, de acordo com as prerrogativas de outsiderde Becker(2008), é o traficante e, como todos sabem, lugar de traficante, se não está preso ou morto, é na favela. Playboy transcendeu esse não lugar como se fosse um mito.