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2. Beira-Mar e Pezão: o estereótipo de criminalidade que corrobora o discurso hegemônico

2.1. Apresentando os estudos de caso

Luiz Fernando da Costa nasceu no dia 4 de julho de 1967, no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Em 1975, cursava a primeirasérie do ensino fundamental na Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha, na Favela Beira-Mar. O jovem negro favelado ede origem humilde não conheceu o pai. Fora criado, com as duas irmãs, pela mãe, Zelina Laurentina da Costa, descrita pelos moradores da região (conforme matéria analisada mais à frente) como uma pessoa presente na educação dos filhos. Chegou a ser coroinha na paróquia localizada na mesma favela onde cresceu. Ainda adolescente, serviu o Exército, de onde acabou excluído em 28 de novembro de 1986, após ser preso pela Polícia Civil. Quatorze dias antes, havia sido flagrado assaltando uma empresa em Duque de Caxias. Era a morte de Luiz Fernando da Costa e o nascimento de Fernandinho Beira-Mar.

O primeiro parágrafo é o máximo de informação que esta pesquisa conseguiu coletar, ao analisar 33 matérias on-line, entre janeiro de 1992 e dezembro de 2002, sobre a vida pregressa e o perfil pessoal do maior narcotraficante de armas e drogas do Brasil. A carência de reportagens sobre Luiz Fernando da Costa contrasta com a quantidade de informações sobre as realizações do bandido Fernandinho Beira-Mar. Para este trabalho, tal desproporção é significativa para reiterar algumas hipóteses aqui levantadas.

As 33 matérias, verificadas no intervalo de duas décadas, foram obtidas noGoogle, em decorrência da pesquisa pela palavra-chave “Fernandinho Beira-Mar”. O método utilizado procurou privilegiar a forma como o criminoso é reconhecidamente chamado pela mídia e pelos comparsas de crime. Entende-se que a mesma busca pelo nome de batismo do bandido não surtiria o mesmo efeito, tendo em vista a possibilidade de homônimos e a consequente ineficácia de resultados. A faixa temporal da pesquisa procurou considerar o período de maior evidência midiática do criminoso até sua prisão, já que, notoriamente, na década de 1990, Fernandinho Beira-Mar se notabilizou como o maior narcotraficante de armas e drogas ilícitas do país.

80 O número de resultados encontrados para Fernandinho Beira-Mar (33) poderia ser mais expressivo se considerarmos que a internet ainda dava os primeiros passos no Brasil no mesmo período em que o criminoso esteve em evidência midiática, mas, para efeito de resultados esperados por esta pesquisa, o que mais chama a atenção é a grande quantidade de matérias jornalísticas em que são abordadas as questões ligadas às ações criminosas de Fernandinho Beira-Mar, em detrimento do baixo número de reportagens sobre a vida pessoal do criminoso.

Para efeitos didáticos, esta pesquisa dividiu esse universo de matérias coletadas em duas categorias: Policial e Sociedade. Nas matérias destinadas à categoria Policial, foram consideradas as reportagens que tratam exclusivamente das ações do bandido e da necessidade de sua captura, passando porsua periculosidade, prisão e prováveis sucessores na organização criminosa, seu comportamento no presídio, transferência para outros presídios, audiências na Justiça e condenações. Já as menções de qualquer natureza feitas a sua escolaridade, família, religiosidade, curiosidades da infância, relacionamentos amorosos ou ainda alguma atribuição de status pelo fato de ser um importante criminoso (desde a forma como ostentava uma vida de luxo enquanto era bandido até uma entrevista de opinião) foram consideradas na categoria Sociedade. No caso específico de Fernandinho Beira-Mar, das 33 matérias produzidas no intervalo de duas décadas, três estão incluídas na categoria Sociedade e as 30 restantes, na categoria Polícia. Em temos percentuais, os números representam 9% e 91%, respectivamente.

É preciso aqui abrir um importante parêntese: o material foi selecionado pela internet, o que não nega a possibilidade (mesmo que irrisória) de mudança na produção do resultado final, já que as variações estão condicionadas à data da coleta de dados realizada26 e ao endereço de IP27 da máquina de onde a pesquisa foi feita. Apesar da variação, o método foi mantido em função da expressividade do resultado alcançado e, ainda, da inexpressividade das variações de acordo com os parâmetros anteriormentemencionados, o que, em última análise, parece corroborar determinadas hipóteses que motivaram esta pesquisa. Tais esclarecimentos se fazem válidos,

26Pesquisa feita em 7 de julho de 2018.

27IP vem do termo inglês Internet Protocol, que significa determinada combinação de números capazes de

identificar o dispositivo em uma rede. Esses dispositivos representam parte de uma rede e são identificados por um número de IP único dessa rede.

81 sobretudo, porque os métodos utilizados foram os mesmos para os outros dois objetos de estudo desta pesquisa: os criminosos Luciano Martiniano, mais conhecido como Pezão, cujas matérias vão ser analisadas ainda neste capítulo, e Celso Pinheiro Pimenta, mais conhecido como Playboy,cujas análises de matérias são ainda mais significativas para esta pesquisa, razão pela qual será destinado a elas um capítulo à parte.

Para a pesquisa de Luciano Martiniano foi possível acessar 48 matérias, de janeiro de 2007 a dezembro de 2017. O período contempla a entrada do bandido no mudo do crime até o momentoem que ele passa a ser apontado, pelas forças de segurança pública do Rio de Janeiro, como o criminoso responsável pela venda de drogas ilícitas no conjunto de favelas do Alemão. O termo escolhido para a pesquisa não considerou o apelido do bandido porque parte da mídia tradicional também trata o criminoso pelo nome de batismo. Além disso, o apelido Pezão não é incomum, sendo utilizado também por outros criminosos, alguns deles, inclusive, conhecidos pela população.

O que não é conhecido do grande público é a história de vida de Luciano Martiniano de Souza. As únicas informações sobre o perfil do bandido dão conta de que ele nasceu no conjunto de favelas do Alemão, no dia 19 de junho de 1975. É filho da união entre a paraibana Josefa Martiniano e o carioca Manoel Martiniano. Desse relacionamento, além do primogênito, Pezão, o casal teve ainda mais quatro filhos. Assim como Fernandinho Beira-Mar, Pezão é negro, favelado e de origem social humilde. Atualmente, encontra-se foragido da polícia e a recompensa para quem der informações que levem à prisão dele está em R$ 30 mil. As semelhanças entre Pezão e Beira-Mar não ficam restritas aos aspectos físicos e sociais. A mesma pesquisa realizada com o nome Luciano Martiniano provocou o resultado de 48 matérias. Desse total, 46 estão incluídas na categoria Polícia e apenas duas encontram-se na categoria Sociedade. Proporcionalmente, essa divisão representa 94% e 4%, respectivamente.

Mais do que entender essas diferenças entre categorias e justamente para tentar desvendaressas discrepâncias, faz-se necessária uma análise de discurso sobre as narrativas midiáticas produzidas na categoria Sociedade. Tal estudo parece oportuno para analisar ainda a produção simbólica orientadapelo discurso hegemônico, em uma perspectiva de construção de identidades baseada na alteridade e na formação de uma proposta de memória social.

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