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A proposta de Kosik,de que não tomamos o conhecimento do todo porque não manipulamos aquilo com o que nos relacionamos cotidianamente, nos remete novamente à proposta de Heller, que, ao defender essa perspectiva, aponta a redução do espaço de reflexão nocotidiano e, assim, naturaliza o que nos é apresentado. Ora, quando Heller considera que o cotidiano é atravessado por representações sociais, devemos ter emmenteque os símbolos acionados ao tomarmos contato com as diversas realidades que nos são apresentadas no diaadia representam, na verdade, nossas formas de entendimento diante justamente da pluralidade de situações cotidianas. Fazemos isso o tempo todo para nos situarmos nessa pluralidade de símbolos que nos atravessam constantementedurante as inúmeras interações sociais com as quais nos defrontamos.

Esse processo de analogia que fazemos, ao associarmos uma situação exposta diante de nós com nosso arquivo de símbolos elaborado de acordo com aquilo que compreendemos por realidade de vida, Heller chama de ultrageneralização –uma espécie de ponte entre o que acontece diante de nós e os acessos que fazemos anossas memórias de signos. Ao procurarmos comparar os acontecimentos por analogia, fazemos uma espécie de exercício mental de recuperação de símbolos, com o intuito de associar as características simbólicas de um acontecimento e, com isso, tentarcompreender uma realidade (mesmo que parcial) que nos está exposta.

Ocorre que justamente porque nosso cotidiano é atravessado por uma variedade significativa de acontecimentos e muitos deles se apresentam diante de nós pela primeira vez, para tentarmos decifrar o ineditismo (ainda que parcial), associamos as características do fato com aquelas que julgamos equivalentes e já vivenciadas, sempre do ponto de vista simbólico. Tal associação só é possível porque possuímos aquilo que Heller chama de juízo de valor provisório, uma tentativa de nos anteciparmos diante de uma realidade inédita (algo que já fazíamos desde a época em que surge o sujeito cognoscente). Novamente aqui está a necessidade do sujeito de tentar antever um acontecimento, de saber o que vai acontecer ao dobrar aesquina.

62 No entanto, não podemos desconsiderar a possibilidade de essas características imaginadas para constituir determinada realidade não se confirmarem. Quando isso acontece e o sujeito não consegue abandonar o processo associativo, estando ainda preso a uma realidade não confirmada, Heller defende que estamos diante não mais de uma tentativa de antecipação da realidade, mas de um preconceito. Por isso, o preconceito é da ordem do individual, e mesmo Heller não desconsiderando que o cotidiano é terreno propício para seu fomento, ela considera, no entanto, que ele não se realiza no diaadia, mas por meiodo sujeito.

Contudo, se o preconceito é do campo da individualidade, o estereótipo representa uma manifestação do coletivo. É algo que a sociedade toma como verdade absoluta, uma espécie de cristalização do preconceito, mas atribuído a certo grupo ou segmento dessa mesma sociedade. O entendimento é produzido com a ajuda da psicologia social, de onde Allport (1973) vai além da definição de estereótipo, ao conceituar que são valores exacerbados cuja finalidade é simplificar categorizações, mesmo quando essas crenças não se comprovam. Por isso, o estereótipo pode ser considerado uma espécie de preconceito, mas visto como uma manifestação mais inflexível e generalizadora, já que é baseada em informações distorcidas que produzem uma variedade limitadora de opiniões acerca de certas categorias. Allport (1973) não tem dúvida ao afirmar que os estereótipos são reforçados pelos meios de comunicação de massa, atuando, assim, de forma sistemática para consolidar determinado conjunto de crenças.

Assim, no momento em que os jornalistas, por meiode seus perfis pessoais no Facebook, questionam o motivo de as favelas do Rio estarem na rota do turismo, reproduzem a narrativa midiática ao atribuir a esses espaços a reponsabilidade apenas pela produção de violência.Desse modo, pode-se acreditar que esse pensamento constrói uma proposta simbólica, na qual o favelado está no entedimento de criminoso, o outro, o outsider, conforme definição de Becker (2008).E mesmoseessa realidade não se confirmar – afinal, há, inegavelmente, trabalhadores e pessoas de bem nas favelas, assim como há criminosos (um deles já foicitado nesta pesquisa) em mansões no Jardim Botânico –, o sujeito mantém essa materialização de visão de mundo, por meiode narrativas que degeneram outras pessoas e cuja verdade não se comprova, estabelecendo, nesse momento, o preconceito, conforme o entendimento de Heller

63 (2004).

Ora, parece que, nesse ponto da pesquisa, já é possível deduzir que se o medo está localizado no discurso, é também por meiodele que o preconceito cumpre a função de fixá-lo. Ana Paula Bragaglia (2017), em um estudo sobre o preconceito na publicidade, lembra do conceito de fixidez,que o estereótipo visa cumprir ao dizer que “os estereótipos remetem a um comportamento de classificação (enquadramento de classes/grupos) e à rigidez (dificuldade de alteração) de ideias” (BRAGAGLIA, 2017, p. 117).

O que a autora defende é que o estereótipo tem a função de reduzir o todo adeterminadas características nem sempre corretas. Esse reducionismo cumpre, assim, um papel de educar o interlocutor, mostrando a ele, por meiode uma visão simplista e muitas vezes falaciosa, a imagem que ele deve ter do outro. Assim como Bhabha (2014) analisou a função fixadora do estereótipo no discurso colonial e Bragaglia,da mesma forma, o fez no discurso publicitário, esta pesquisa pretende contribuir para essa reflexão no discurso jornalístico, sobretudo se considerarmos a perspectiva de sociedade midiatizada.

Os avanços tecnológicos alteraram também a relação entre os grandes veículos de imprensa e a audiência. Como parâmetro é possível citar oJornal BandNews Rio

PrimeiraEdição, o principal jornal da rádio all newsda BandNews FM. Durante a

veiculação do programa,chegam, em média,500 mensagem pelo WhatsApppor hora. O número mostraum aumento de 400% entre 9h30 e 11hsobre a circulação média de informações ao longo do dia na emissora.

O exemplo da BandNews FM não foi por acaso, nem se dá pelo fato de o autor desta pesquisa trabalhar no veículo em questão. A ideia aqui é mostrar como os recursos tecnológicos convergem, nesse caso, o telefone celular –pelo WhatsApp– e o rádio. Duasplataformasutilizadas simultaneamente para a produção de informação, o que geraimediatismo e velocidade cada vez mais vorazes. Assim está composta, atualmente, nossa sociedade.

É facilmente perceptível como, nos dias atuais, a tecnologia se faz cada vez mais presente, e a comunicação, como no exemplo do rádio, procura se apropriar dessas novas plataformas. Entender essa realidade é compreender ainda que a comunicação é, nos dias de hoje, a criação progressiva de outra forma de vida. É aquilo que Sodré

64 (2009) chama de bios virtual –oautor defende que a revolução eletrônica deve ser analisada com mais atenção do que a revolução do motor, já que mexeu de forma mais profunda com a consciência e o estilo de vida das pessoas, os hábitos. Assim, para Sodré, os meios de comunicação criaram uma nova esfera existencial, cuja realidade está presente em nosso cotidiano de forma preponderante, em queos sujeitos se relacionam com máquinas e máquinas se relacionam com máquinas. Por isso, para Sodré, os desejos estão estimulados e se fazem presentes nas relações, também estimuladas, mas para obedecer a um sistema. O autor problematiza assim que nossos desejos estão sendo sistematicamente produzidos e reproduzidos para que imaginemos que são nossos, mas cuja última função é atender aos desejos do capital, talvez aqui o único agente capaz de refletir o cotidiano, já que defende estar no discurso hegemônico o impulso ao consumo, em última análise, à apreensão de comportamentos. O que Sodrédiscute está justamente na redução dacapacidade reflexiva dos sujeitos na sociedade contemporânea, diante, sobretudo, do aumento da produção e da velocidade de informação, cujos discursos estão notoriamente e majoritariamente a serviço da classe hegemônica

A mídia passa,desse modo,a ser compreendida como algo que vai além da linguagem e da tecnologia, que seriacomo um complexo sistema capaz de propor direcionamento às subjetividades dos sujeitos. São as subjetividades que Sodré afirma estarem sedentas por informação e tecnologia.Compreender essa proposição significa entender ainda que, ao entrarem em contato com os símbolos produzidos pelos discursos midiáticos, os sujeitos vivenciam uma realidade construída de acordo com o próprio conhecimento, baseado em discursos, códigos preexistentes que, em última análise, validam a notícia de acordo com a visão de mundo que possuem.

É importante destacar que Sodré, assim como diversos autores estudiosos de comunicação, não acredita no sujeito passivo, consumidor indiferente de informação que age de acordo com as expectativas estabelecidas e, portanto, incapaz de fazer uso de suas faculdades reflexivas. O que Sodré questiona, no entanto, é quando essa visão de mundo está referenciada justamente pela mídia, camuflada na promessa de uma informação, uma cilada capaz de fazer o sujeito criar um universo novo e nele viver. Algo que não nos parece tão distante assim, se novamente recorrermos aos comentários

65 dos internautas noG1 em consonância com a narrativa midiática produzida na cobertura da prisão de Eike Batista.

Mas se os internautas estão sob o álibi de não serem estudiosos do tema, o que dizer dos jornalistas que reproduzem preconceitos na internet, como no caso da morte da espanhola Esperanza Jimenez, na favela da Rocinha? O que pensar das ideias preconceituosas exibidas fora do ambiente da redação e longe da pressão do trabalho?