• Nenhum resultado encontrado

2. Beira-Mar e Pezão: o estereótipo de criminalidade que corrobora o discurso hegemônico

2.3. O caso Beira-Mar na Folha de SãoPaulo

Há 17 anos, em novembro de 2002, ano da prisão de Fernandinho Beira-Mar,o então editor chefe da Folha Online publicou uma matéria31 em que também procurou analisar o perfil de Fernandinho Beira-Mar. Na narrativa – que assim como a matéria de Antônio Werneck também compõe a categoria de Sociedade –, logo após o primeiro parágrafo, em que o autor parece introduzir a história de Luiz Fernando da Costa, Ricardo Feltrin começa um texto descritivo no qual, da mesma forma que Werneck, relaciona a condição social de Beira-Mar às poucas possibilidades de tentar fugir da criminalidade. No caso de Feltrin, os argumentos parecem cumprir também a manutenção da construção simbólica relacional entre criminalidade e pobreza.

O primeiro parágrafo é pouco opinativo e o único adjetivo que aparece é “maiores”, uma referência à dimensão que Beira-Mar atingiu no mundo do crime. O texto e as impressões até aqui são similares aos apresentados pelo colega Antônio Werneck, de O Globo, em relação à fama de celebridade que o bandido conquistou com suas ações.

31Matéria veiculado em 1/09/002. Disponível em:

93

Fonte: Folha Online.32

Imagem 15: Trecho da matéria com o perfil de Luiz Fernando da Costa.

Mas no segundo parágrafo, dedicado sobre a infância de Luiz Fernando da Costa, o primeiroadjetivo digitado é “pobre”. Agora, além da dicotomia escolaridade e criminalidade, já que, na infância, Luiz Fernando foi um aluno aplicado, o texto que se apresenta mostra uma sutil linearidade entre a pobreza e a criminalidade, sobretudo quando o jornalista menciona que o jovem Luiz Fernando ainda tentou seguir uma profissão, ao ingressar no Exército, o que poderia representar uma maneira de tirá-lo da miséria, sem, com isso, precisar recorrer ao submundo do crime. Ao fim, o profissional de imprensa dá a entender que, apesar do esforço, não houve alternativa, e Beira-Mar torna-se um criminoso, num quase uso do advérbio “enfim”.

O que foidito na matéria é que toda pessoa busca alternativas para sair da pobreza; o que está dito por meiodo nãodito é que, para uma pessoa de origem humilde, conseguir deixar a pobreza sem entrar no mundo do crime significa estar diante de uma

32Matéria de 11/09/2002. Disponível em

94 situação quase que extraordinária e, como um fato considerado inusitado, deve se tornar notícia. Talvez seja preciso compreender a dimensão teórica que pode dar conta de certas propostas narrativas, como as analisadas até aqui.

A teoria doNewsmaking – termo inglês que significa produzir notícias – procura analisar o que é levado em conta pelos veículos de comunicação para transformar um acontecimento em notícia. O estudo elenca três pilares de sustentação teórica ao procurar entender esse processo,em conformidade com os requisitos dados ao conteúdo de determinadas situações: a disponibilidade estrutural necessária nessa ação, a maneira como a imprensa admite o entendimento de seu público e, finalmente, a análise desse conteúdo em relação à produção noticiosa da concorrência – uma forma de organizar a estrutura noticiosa de modo a não desconsiderar, nesse contexto, a maneira como os outros veículos de comunicação tratam o mesmo assunto.

Ocorre que,na análise do conteúdo, chamada por Wolf (2001) de critérios substantivos, e a parte que interessa a esta pesquisa, são observadas algumas características esperadas desses acontecimentos para que sejam noticiados. Entre esses requisitos, a teoria considera o interesse e a ideologia que envolvem a classe hegemônica, a quantidade de pessoas implicadas direta e indiretamente na narrativa e a relevância do tema. Percebe-se que o último item possui, talvez, o maior grau de subjetividade nesse processo. Compreender como os jornalistas identificam o que é relevante para o público não parece ser uma tarefa das mais fáceis. Mas a própria teoria nos dá pistas de como esses profissionais devem proceder. O Newsmaking considera fundamental nessa escolha que os jornalistas possam discernir quais desses assuntos vão gerar novas repercussões e, consequentemente, garantia de novas matérias subsequentes. Assim, parece que a teoria relaciona a relevância de um assunto diante da capacidade que eletem de manter presa a atenção da audiência. Logo, está no interesse prolongado uma das características que permite ao jornalista identificar um acontecimento como sendo relevante para o público.

Esse ponto exige uma reflexão mais detalhada. Tanto Werneck como Feltrin condicionam a Luiz Fernando da Costa e a Beira-Mar qualidades distintas. Ao considerar que os adjetivos reduzem o sentido de algo ou de alguém (substantivos), por meio de características que são imputadas a coisas ou pessoas, passa-se a considerar a possibilidade associativa de uma característica opinativa da matéria jornalística,

95 quepode assumir um caráter explícito ou velado. Sendo assim, quando os jornalistas usam os adjetivos para, em última análise, classificar o personagem da matéria, procuram localizá-lo no imaginário do interlocutor. Esse raciocínio pode produzir algumas reflexões, como a necessidade de organizar as sensações, missão esta queos veículos parecem ter se encarregado de cumprir.

Antônio Werneck, 17 anos após a prisão de Beira-Mar, ao produzir uma narrativa da categoria Sociedade, define Luiz Fernando da Costa pelosadjetivos “aplicado”, “pobre”–de forma implícita, ao classificar a família do criminoso– e “estudioso”. Feltrin não foge a essa estrutura e descreve o menino Luiz Fernando como “pobre”. Os mesmos jornalistas usam adjetivos que produzem uma qualidade de exaltação ao retratarem Fernandinho Beira-Mar:na matéria de O Globo, o bandido é definido como alguém que se tornou “famoso”, importante na função de controlar a venda de drogas ilícitas e armas no Brasil, descrição feita por meio das palavras“barão” e “grande”;já a Folha Online não foge a essa concepção e classifica Beira-Mar como um dos mais relevantes traficantes do país, construção que pode ser compreendida pelas qualificações “maiores”, “cabeças”, “grande” e “revolucionário”. A mesma narrativa se preocupa em demonstrar o quanto Beira-Mar era bem quisto na favela em que controlava a venda de drogas ilícitas. Para isso, o editor utiliza-se do adjetivo “querido”.

Diante desse contexto, parece haver uma proposta de entendimento aparentemente ambíguo, mas, possivelmente, dialógico com as perspectivas do discurso hegemônico. O que se discute, então, está naquilo que parece ser uma intencionalidade velada de propor estereótipos, nos quais o menino preto e pobre da favela possui um futuro árduo e de possibilidades estreitas, cuja dedicação ao estudo passa a ser a única garantia de adquirir condições econômicas mínimas da vida adulta.

Talvez seja necessário ressaltar que esta pesquisa não desqualifica, em hipótese alguma, o estudo como um importante motor de transformação social. No entanto, acredita-se ser necessária uma reflexão mais profunda acerca daquilo que pode ser compreendido como exitoso na vida do sujeito e – talvez o mais importante –esobre a lógica que relaciona o pobre, preto e favelado com uma espécie de resistência, por meio dos estudos, em não entrar para o crime organizado. Supõe-sefundamental ampliar essa perspectiva, considerando que todos os sujeitos são potenciais criminosos, independentemente da região geográfica onde vivem, de sua condição social e,

96 sobretudo, sua cor de pele. Afinal, o Congresso Nacional tem sido alvo de inúmeros escândalos de corrupção, e a predominância étnica não é negra, tampouco por lá há pobres, muito menos favelados. Isso para ficar em apenas um exemplo entre tantos possíveis.

Feitos esses indispensáveis esclarecimentos, acredita-se também que a escolha de determinados adjetivos, tanto para Luiz Fernando como para Beira-Mar, denota aquilo que os veículos de comunicação compreendem como fatos que vão manter apreendida a audiência, já que vai ser um assunto que pode ser novamente debatido. Acho importante propor uma nova discussão aqui: produzir uma notícia por considerar o fato relevante pode estar associado ao caráter de excepcionalidade. No entanto, talvez seja possível considerar que o caráter incomum possa ser também uma construção. Afinal, compreender o que é comum diante de um fato significa aceitar certas normas de conduta e, com isso, considerar tudo que não obedece a essas expectativas como algo que não é comum.

Parto dessa análise para discutir que o comum está associado a algo que é do entendimento de, pelo menos, duas pessoas. É a consciência na percepção de Hobbes (1997). Logo, de acordo com esse ponto de vista, a categorização de um fato como comum ou não é algo social. Dessa maneira, ainda seguindo o percurso teórico adotado nesta pesquisa, esses entendimentos vão ser construídos por meio das relações,que são formadas pela comunicação. Logo, toda essa análise é construída, também, pelo discurso. Assim, entende-se que o discurso tem a possibilidade de nortear o que passa a ser compreendido como excepcional pelos sujeitos, afinal, o discurso propõe o habitus, de Bourdieu.

Assim, pode-se discutir que a excepcionalidade precisa ser alimentada no imaginário social. A discussão, então, passa a considerar que, para algo ser entendido como excepcional, o senso comum deve ter clareza para saber distinguir o novo do repetitivo. No entanto, a possibilidade associativa parece estar diante de um conhecimento prévio, tanto do repetitivo quanto do novo. O que se está propondo discutir aqui é uma das funções do discurso: educar os sujeitos. Por isso, Hobbes (1997) já analisou que a consciência é produzida com base no raciocínio.

Ocorre que as duas matérias, ao atribuir características distintas ao mesmo personagem, parecem não só potencializar a construção do entendimento social diante

97 do negro, pobre e favelado, mas identificar as probabilidades de um sujeito se tornar um criminoso. Ao tentar antever esse processo, por meio de uma estrutura de classes, acredita-se, também, que a imprensa cumpre a função de difundir o preconceito. Ao tentar fixar esses grupos sociais, supõe-se, ainda, que os veículos de comunicação produzem e reproduzem o estereótipo de criminalidade diante da estigmatização dessas classes sociais.

Esses discursospodem estar em consonância com o cotidiano. No entano, alocalização do medo por meiodos limites geográficos da favela não deve impossibilitar uma leitura crítica das desigualdades por território em nosso país, sob pena de um discurso cruel e simplório da meritocracia. Acreditamos, no entanto, que uma pesquisa deve se lançar para além do discurso comum e procurar terreno para a reflexão além da miopia proposta intencionalmente pelo discurso hegemônico. Tal pesquisa deve, também, cumprir o papel de questionar a ausência de debates de propostas para que se mude uma realidade meticulosamente esquecida cuja crueldade alicerçada nasdiferenças baliza um hiato social capaz de sustentar apenas promessas populistas e oportunistas (sobretudo a cada biênio),emum universo já considerável de dívida social, diante de uma população marginalizada, seja pelo aspecto político e econômico,seja pelo aspectoevidentemente social.

A mesma lógica discursiva, que associa a dicotomia escolaridade e criminalidade, é reproduzida nasduas matériassobre Luiz Fernando da Costa. Defende- se, no entanto, que essa proposta semântica restringe a mobilidade social e, consequentemente, interessa a quem quer se manter no topo da pirâmide dessa mesma sociedade. Logo, esse discurso importaa quem se beneficia do hiato social. Esse grupo é a classe hegemônica.