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A história nos ensina que o preconceito sempre foi usado como uma forma de nortear o homem em sua localização e, por consequência, emsuas decisões. Entre os séculos XI e XIII, o contato entre os povos se tornou uma necessidade impressa pelas Cruzadas. O comércio do Mediterrâneo provocou aemigração de cerca de 200 mil pessoas do Ocidente para o Oriente. Entre as consequências desse movimento, é possível destacar a troca no comando político na região, produzida pelos confrontos militares entre muçulmanos e cristãos.

A explicação de Bethencourt (2018) avalia ainda as trocas culturais, movidas pela interação entre os povos, que criaram, por meioda identificação da religiosidade, um mecanismo de proteção regional. Assim, tipos físicos e vestimentas eram associados a crenças religiosas. Foram medidas tomadas para avaliar os diferentes povos dentro de um mundo de mudanças e onde o estereótipo visual estava a serviço da identificação de potenciais ameaças. Os indivíduos precisavam se sentir seguros. Dessa forma, as Cruzadas contribuíram para a renovação do preconceito étnico, dentro de um contexto de guerra. Uma guerra religiosa, mas que, como todas as guerras, está submetida aos interesses políticos e econômicos.

Esse pensamento excludente por meioda fisionomia já era praticado por gregos e romanos letrados. Eles atribuíam às terras onde o sujeito nascia suas características físicas e mentais, já que estava no clima e na geografia a origem de tudo. Assim, torna- se relevante o conceito de ascendência, no entendimento da ligação entre o sangue e o solo. Na definição de Bethencourt, é possível perceber a relação do preconceito por civilização:

36 Também se disseminaram preconceitos contra povos específicos, algo que frequentemente revelava a origem dos seus principais autores: os turcos eram considerados infiéis, os bizantinos eram maus, os khãzares insolentes, os povos negros não eram sérios, os eslavos eram covardes e os indianos, promíscuos (BETHENCOURT, 2018, p. 43).

Chama a atenção o fato de que todos são classificados por regionalidade, exceto os negros, considerados não sérios, o que parece evidenciar um estigma relacionado à cor da pele.

Em conformidade com a lógica de construção simbólica por meio da narrativa produzida, chama a atenção o estudo de Bhabha (2014), aodefender que o discurso colonial também corroborava esse preconceito histórico, aoperceber que as narrativas produzidas colocavam o negro como umsujeito não confiável. Para o autor, esse discurso possui uma proposta clara: mostrar que o negro não tem autonomia, logo, alguém precisa lhe dizer como agir, o que fazer. Assim, qualquer movimento fora dessa perspectiva não está autorizado. É uma desobediência, e o negro deve colher os frutos dessa insubordinação.

Ao analisarmos que o negro, historicamente, não está autorizado a falar, nossa percepção ultrapassa o colonialismo e avança até os dias atuais. Becker (2008), em seu estudo sobre outsiders (cujo tema será amplamente discutido mais à frente, nesta pesquisa), ao analisar os conceitos de Hughes em relação a traços de status principais e auxiliares, nos mostra que a cor de pele representa um traço relevante para corroborar uma expectativa social de classes.

Como Hughes mostra na sociedade norte-americana presume-se também, informalmente, que um médico tenha vários traços auxiliares: a maioria das pessoas espera que ele seja de classe média, branco, do sexo masculino e protestante. Se não for assim, tem-se a impressão de que de certo modo não preencheu os requisitos (BEKCHER, 2008, p. 43).

As defesas simbólicas parecem emergir com mais força quando as expectativas não são realizadas. De acordo com uma lógica de cotidiano, em queas ações são basicamente irrefletidas, essa necessidade perece mais presente, sob pena de deixar o “sujeito de bem” ainda mais vulnerável à violência do dia a dia. Assim, da mesma forma que o então prefeito Eduardo Paes ergue barreiras entre o conjunto de favelas da

37 Maré e as Linhas Amarela e Vermelha, em 2010, num movimento que pode ser compreendido como um alerta aos turistas desavisados, diante da necessidade de identificar territórios que não devem ser ultrapassados no Rio de Janeiro, conforme matéria do Estadão.8

Acredita-se, no entanto, que uma sociedade de classes se faz valer do cotidiano para alimentar a naturalização da esquematização dos acontecimentos. Assim, os sujeitos se encontram em categorias sociais por causa de uma lógica de características secundárias, por meio das quais, através de vestimentas, por exemplo, é possível perceber a doçura dos corpos e a submissão a essas regras. Importa ainda destacar: essas possibilidades ficam ainda mais espontâneas no cotidiano,fruto da ruptura da representação de um papel social. Assim, quando o momento vai além desse instante de representação, pode-se abrir pressupostos para a generalização de características dos sujeitos por sua situação social ou cor da pele.

Essa reflexão pode problematizar uma espécie de classificação dos sujeitos pela exteriorização de suas representatividades na sociedade. Dessa forma, muitas babás e empregadas domésticas que circulam pela zona sul do Rio precisam estar uniformizadas em um branco de paz, cujo símbolo pode nos remeter a uma segunda simbologia mais profunda, na qual,pela ótica barthiniana, nesses momentos, estão erguidas as bandeiras da paz, em queo negro aceita temporariamente as barreiras simbólicas.

Desse modo, se o médico negro representa um risco às expectativas da sociedade, a babá corrobora o estereótipo de cor, uma das maneiras de categorizar os sujeitos nessa estrutura social proposta.

O que vimos até aqui foiuma lógica excludente, através da situação econômica, social e da cor da pele do sujeito. O que falta começarmos a analisar é porque isso acontece e quem determina esses parâmetros.

Para ampliarmos essa discussão, vamos tentar entender por que muitos colegas jornalistas corroboram a proposta apresentada pelo jornal Extra e defendem que,por meiodas tropas federais, a violência será freada no Rio. Eis o ponto que propomos discutir aqui. Frear sugere uma ideia de que algo precisa ser parado. Nessaperspectiva,

8Matéria de 12/03/2010. Disponível em https://www.estadao.com.br/noticias/geral,rio-poe-barreiras-

38 esse mesmo algo não pode continuar em movimento, não pode continuar seguindo adiante. Deve ficar onde está. Como nossa análise se dá sobre as questões da violência, significa dizer, em última medida, que a violência deve ser contida emseu lugar de origem. Assim, antes de ser contida, deve ser mantida emsua localização, onde está autorizada (legitimada) a ficar.

Destaca-se, no entanto, a inegável capacidade reflexiva dos sujeitos, diante dos mais variados contextos sociais,emuma perspectiva de suspensão do cotidiano, conforme análise de Heller. No entanto, parece oportuno salientar que essas possibilidades podem ser acessadas pelos sujeitos em qualquer papel social eque exercem no cotidiano. Assim, não se deve ignorar a capacidade de reflexão realizada, sobretudo, no ambiente de redação jornalística, local dotado de sujeitos com poder crítico ediscernimento, a considerar o estudo de Bourdieu sobreos campos sociais e suas relações com o capital simbólico.

Contudo, mesmo diante do entendimento de que alguns profissionais de comunicação agem de maneira consciente em relação à intencionalidade presente nos discursos hegemônicos, ainda assim, parte-se do pressuposto de que os jornalistas também não estão isentos de repetir os estereótipos propostos por essas narrativas. Por isso, assim como as brechas da normalização do cotidiano e suas suspensões não devem ser restrita às ruas, percebeu-se, durante a pesquisa feita com colegas de redação, que o mesmo raciocínio se aplica aos ambientes de trabalho.

O que se pretende discutir aqui, na verdade, é justamente a impossibilidade de destacar as motivações (o ser particular de Heller) de dentro do sujeito social (o humano genérico da mesma autora). Essa perspectiva busca compreender a necessidade de o mesmo sujeito cumprir diferentes papéis sociais, orientados por paixões, mas alimentadas pelo meio. Logo, acredita-se que antes de a sociedade ter médicos, professores, jornalistas,ela concebe, a todo instante, sujeitos sociais. Esse entendimento me fazcrer que meus colegas não reproduzem esse discurso hegemônico de maneira intencional, já que agem emum cotidiano, do qual fazem parte e pelo qual foram constituídos antes de se formarem em jornalismo São, antes de qualquer coisa, os sujeitos humanos genéricos de Agnes Heller.

A compreensão de que o genérico está em toda atividade ou ação do homem dentro da sociedade é importante para constatarmos a relevância da compreensão dos

39 sujeitos, através de regras sociais necessárias para a convivência. Assim, por exemplo, o trabalho é uma categoria do ser humano genérico, assim como suas paixões e preferências. Essa explicação de Heller, apesar de dizer respeitoa uma perspectiva de sociedade de classes, dialoga com o conceito de consciência proposto por Hobbes (1997), ao considerá-la parte do coletivo. É bem verdade que, para Heller, quando o sujeito faz uso dessas paixões está no campo do particular.

O que interessa para esta pesquisa é que a maneira de usar alguma coisa (como um sentimento, por exemplo) é uma consequência do entendimento dessa mesma coisa. Assim, o campo particular age em consonância com as referências constituídas no campo genérico, esse espaço que compreende as possibilidades, por meiodas relações sociais. Portanto, o particular aqui não é nem o sentimento, nem a paixão, mas o modo de manifestar-se, como o “eu” vai se colocar diante das situações.Mas para esta pesquisavaleentender que esse mesmo eu, compreendido como particular, ao se manifestar, leva consigo as motivações que lhes são próprias, mas que não podem ser descoladas das influências produzidas pelo meio social em que o sujeito vive. Portanto, suas manifestações são reflexo de suas influências. Está na comunidade em que vive a representação dos sujeitos que Agnes Heller nomeia de humano genérico.

Ocorre que o sujeito não se dá conta desses movimentos, já que representam estágios cumpridos de forma imbricada e quase instantânea, cuja reflexão é inibida no cotidiano, espaço atravessado pela multiplicidade de experiências, o que impossibilita essa consciência do choque entre o particular e o genérico.Essa relação imperceptível parece fazer sentido na escolha da profissão –os profissionais da área de humanas, normalmente, tendem a optar por uma formação profissional que vá ao encontro de determinadas ideologias de vida. Como os médicos e bombeiros, por exemplo, que querem salvar as pessoas; os advogados, que querem defender os injustiçados; e, um último exemplo, os jornalistas, que sonham em denunciar injustiças e mudar realidades cruéis. Todos possuem algo em comum: querem utilizar suasespecializações acadêmicas (humano genérico) como motor de motivações pessoais (humano particular). O que nos interessa debater aqui é até que ponto essas motivações foram construídas de acordo com interesses externos e específicos (direcionados).