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3. Playboy, o “xis” da questão

3.1. Playboy: de maluquinho a protagonista

Já foi mencionada aqui a discrepância entre as matérias das categorias Polícia e Sociedade relacionadas com os criminosos Pezão e Fernandinho Beira-Mar. O que parecia ser desproporcional ganhou outro sentido diante de uma nova desproporcionalidade. Apesar de parecer paradoxal, o mesmo critério de análise destinado às narrativas midiáticas sobre Playboy mostra que essa falta de proporção entre as duas categorias é bem mais amena; o que, em última análise, corrobora algumas hipóteses levantadas por esta pesquisa.

Ao todo, são 53 matérias destinadas ao bandido entre janeiro de 2005, ano em que Playboy começa no mundo do crime, até dezembro de 2015, ano de sua morte. Desse total, 36 reportagens estão dentro da categoria Polícia e as 17 restantes, em Sociedade. Em termos proporcionais, algo em torno de 68% e 32%, respectivamente. Índices bem diferentes dos relacionados com Beira-Mar (91% e 9%, respectivamente) e Pezão (96% e 4%, respectivamente).

Esta análise permite uma conclusão inequívoca: os veículos de comunicação do Rio de Janeiro mostraram mais interesse pela vida pessoal de Playboy do que de Beira- Mar e de Pezão. Logo se, quantitativamente, já há uma certeza sobre o interesse midiático por Playboy, qualitativamente, esse movimento se mostra instigante do ponto de vista simbólico. Faltava, então, aplicar a metodologia de análise de discurso também nas matérias relacionadas com a categoria Sociedade que envolvem Celso Pinheiro Pimenta antes de ele se tornar Playboy. Apesar de a técnica ser a mesma aplicada nas outras duas vezes, dessa vez, a dificuldade parece ser maior aqui, já que Playboy e Celso se imbricam, pelo menos diante da produção da narrativa midiática, e, consequentemente, podem produzir significações valiosas a serem estudadas.Antes, porém, acredita-se ser importante destacar determinadas situações relevantes para a linha cronológica de ações que envolvem Celso Pinheiro Pimenta e também Playboy.

No dia 22 de outubro de 2013, parte da imprensa do Rio de Janeiro e do Brasil destacava que Playboy gostava do personagem Menino Maluquinho, criado pelo escritor Ziraldo. A Folha Online foi um dos sites que destacaram esse lado pessoal do bandido, até então tratado pelos veículos de comunicação como o responsável pela

114 venda de drogas ilícitas no conjunto de favelas da Pedreira, no bairro de Costa Barros, na zona norte do Rio. O noticiário fluminense também dizia que o bandido estava à frente de uma quadrilha que assaltava caminhões de cargas na Avenida Brasil. Pela primeira vez, era revelada uma curiosidade sobre Playboy que não serestringia às páginas policiais. A curta matéria, de apenas dois parágrafos, perfazendo um total de quatro linhas, usou apenas umapalavra para falar sobre Playboy, “fã”, para demonstrar a paixão que ele nutria pelo personagem de Ziraldo, do qual mandou fazer uma miniatura de ouro com um adereço para carregar um fuzil nas costas, numa clara demonstração do interesse de Playboy pela ostentação. Mas o que realmente chamou a atenção desta pesquisa não estava no texto, mas no botão localizado na parte superior da tela, onde deveria aparecer a imagem do boneco em miniatura que o bandido mandou fazer (a imagem não foi carregada ao abrir a página). O botão Folha – Cotidiano mostra o interesse do veículo em localizar a breve narrativa produzida pelo jornalista Marco Antônio Martins, da editoria Rio, em um espaço onde se relatam os fatos do dia a dia, aqueles que não devem produzir reflexão, já que constituem o pronto, o dado.

Essa percepção parece ser corroborada pela reportagem do correspondente na América do Sul do site do jornal espanhol El Mundo, Luis Tejero, ao descrever a vida de luxo que era levada por traficantes do conjunto de favelas do Alemão antes da invasão local pelas forças de segurança pública. Aliás, Playboy era um dos traficantes do mesmo conjunto de favelas que, assim como Pezão, fugiu à época da chegada das forças de segurança.

O que a matéria da Folha Online39 parece propor é uma espécie de marcação de lugar do criminoso do morro, reconhecido como uma pessoa que gosta de ostentar objetos e adereços de ouro ou prata. A imagem com a qual Playboy foi apresentado, fora das ações criminosas, corrobora o estereótipo de criminalidade produzida para e pelo senso comum. Mas parece que,no ano seguinte, as coisas iriam mudar definitivamente.

O dia 13 de março de 2014 marca a estreia nacional do filme Alemão. O longa- metragem conta a história de cincopoliciais que têm como missão se infiltrarem no

39Matéria em 22/10/2013. Disponível em: <https://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/10/1360533-

115 conjunto de favelas do Alemão, mas acabam sendo descobertos pelos traficantes locais e sãopresos. A única saída seria o resgate pelasforças de segurança. O papel do protagonista coube ao ator Cauã Reymond, que vive justamente Playboy. O UOL foi um dos veículos de noticiaram a estreia do filme.

A narrativa da matéria destaca, logo no primeiro parágrafo, que o longa- metragem foge ao padrão dos filmes que procuram divulgar carnificinas em favelas do Rio, já que a intenção da direção era propor uma reflexão sobre a pacificação do Alemão.O próprio diretor, José Eduardo Belmonte, afirma que procurou ser fidedigno àrealidade, um dado curioso, já que, no parágrafo seguinte, Belmonte conta a necessidade de compreender a linguagem utilizada em filmes defaroeste e chega a misturar a importância de construir um filme dramático e reflexivo, já que, ao abordar as questões humanas envolvidas nesse contexto, é preciso falar em guerra.Tal afirmação parece considerar a necessidade de expor o caráter violento da favela, desconsiderando, assim, suas histórias e nuances, além dos relatos de tiros e mortes.

Fonte: UOL.40

Imagem18: Trecho da matéria sobre o lançamento do filme Alemão.

40Matéria de 10/03/2014. Disponível em https://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2014/03/10/antonio-

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Fonte: UOL.41

Imagem 19: Trecho da matéria sobre o lançamento do filme Alemão.

José Eduardo Belmonte usou um viés que não foge à espetacularização da violência, conforme fica ainda mais marcante em seu outro filme Carcereiros. Essa sua inclinação artística já o levou a ter esses dois filmes reproduzidos em minisséries da Globo. O filme – que parece adquirir um caráter apelativo – lembra a análise de Baiense ao criticar a editoria Guerra, criada pelo Extra, compreendida nesta pesquisa como uma narrativa legitimadora de potencialização do enfrentamento nas favelas do Rio de Janeiro. Assim como em 2002 e 2018, quando a imprensa sugeria que o Estado estava atravessando uma guerra contra a venda substâncias ilícitas, diante de uma proposta de direcionar o olhar do senso comum para a compreensão fragmentada do tráfico de drogas, o diretor Belmonte parece corroborar a construção desse pensamento. Essa concepção nos leva a uma dialética: Belmonte utiliza o filme com a intenção de reproduzir a construção da criminalidade estereotipada da sociedade ou, a exemplo de muitos jornalistas, ele também já faz parte dessa construção, uma possibilidade, se considerarmos o discurso do elenco, como do ator Milhem Cortaz, que justificou a

41Matéria de 10/03/2014. Disponível emhttps://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2014/03/10/antonio-

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necessidade de discutir a favela de forma imparcial e, por isso, buscou repassar para os telespectadores a tensão que se vive lá.

Fonte: UOL.42

Imagem20: Trecho da matéria sobre o lançamento do filme Alemão

Não é novidade que o senso comum compreende a favela somente como o espaço produtor de violência, ignorando sua cultura, afetos, lazer e tudo o que representa um espaço social em uma localidade. Já se procurou discutir aqui o papel dos jornalistas como cidadãos, fora de seus ambientes de trabalho, diante das narrativas que produzem. Acredita-se que a fala apresentada pelo diretor Belmonte mostre mais sobre ele do que os filmes que produziu. Parece haver, nessas construções,o entendimento de que a favela é um local a ser evitado, exceto se ocupado pelas forças policiais. Esse ponto de vista considera a possibilidade de o discurso hegemônico apreender dois importantes campos da estrutura social: a arte e a imprensa –dois agentes dotados não só do capital social de Bourdieu, mas do lugar onde os sujeitos de Heller podem suspender

42Matéria de 10/03/2014. Disponível emhttps://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2014/03/10/antonio-

118 o cotidiano, o que parece tornar ainda mais difícil a missão desses mesmos sujeitos, de refletir sobre uma realidade que se apresenta como dada.

O ano midiático de 2014 de Playboy pode se quase que totalmente resumido em duas ações: comandar invasões a favelas cujo controle da venda de drogas ilícitas se dava por facções rivais e orquestrar o roubo de cargas na Avenida Brasil. No dia 26 de outubro do mesmo ano, o Disque-Denúncia aumentou de R$ 2 mil para R$ 20 mil o valor da recompensa por informações que ajudassem a levar Playboy à prisão. Quatro dias depois da medida surge o que a imprensa chamou – e as forças de segurança pública passaram a chamar também – de a primeira ação ousada de Playboy, aquela que passou a ser reconhecida midiaticamente como o enfrentamento às forças de segurança pública.