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D. Lei nº 9.799, de 1999

5. COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL: ESPECIAL

5.3. A cooperação judiciária internacional institucional no Brasil

5.3.2. A cooperação judiciária e sua previsão em normas internas

A tradição brasileira na área da cooperação judiciária internacional é que os atos judiciais estrangeiros sejam recepcionados ou reconhecidos no território nacional por três procedimentos: a carta rogatória, a homologação de sentença estrangeira e a extradição393.

A carta rogatória consiste no meio mais tradicional de cooperação judiciária internacional institucional, utilizada quando um órgão do Poder Judiciário de um Estado necessita da prática de um ato processual fora do território sobre o qual exerce jurisdição, devendo rogar ao Poder Judiciário de outro Estado que realize tal ato processual. No Brasil, para o cumprimento da solicitação encaminhada por carta rogatória, é necessária a prévia concessão do exequatur, ordem de cumprimento pelo qual se declara que o pedido de cooperação cumpre os requisitos para tanto, após passar pelo juízo de delibação, em que se analisa o cumprimento destes requisitos (não adentrando no reexame do mérito da decisão)394. A ação de homologação de sentença estrangeira, por sua vez, é o mecanismo processual exigido para o reconhecimento da decisão proferida em outro Estado no território brasileiro. Nessa ação, também se exerce apenas o juízo de delibação, com a análise do cumprimento dos requisitos para o reconhecimento da decisão, não havendo reexame de mérito.

A Lei de introdução às normas do direito brasileiro (Decreto-Lei nº 4657/1942) prevê, em seu artigo 12, parágrafo 2º, que a autoridade judiciária brasileira cumprirá, concedido o

exequatur e segundo a forma estabelecida pele lei brasileira, as diligências deprecadas por

autoridade estrangeira competente.

No Código de Processo Civil brasileiro de 1973 (que será substituído quando da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil de 2015), não há um tratamento exaustivo e sistemático da matéria da cooperação judiciária internacional.

Seus artigos 202 a 210 disciplinam a carta rogatória ativa, através do envio dos requerimentos pela via diplomática, salvo no caso de existência de tratado prevendo de forma diversa, ao passo que o artigo 211 limita-se a estabelecer, para as cartas rogatórias passivas, que deve ser observado o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

O Supremo Tribunal Federal era o órgão competente para apreciar as cartas rogatórias e as ações de homologação de sentença estrangeira, nos termos da redação anterior do artigo

393

SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Anotações sobre o anteprojeto de lei de cooperação jurídica internacional. In: Revista de Processo, nº 129, ano 30, novembro de 2005, p. 141.

394

PINHEIRO, Érico Rodrigo Freitas. Cartas rogatórias passivas de natureza executória na ordem jurídica brasileira. In: ESCOLA DE MAGISTRATURA FEDERAL DA 1ª REGIÃO. I Jornada sobre cooperação judicial nacional e internacional. Brasília: Escola de Magistratura Federal da 1ª Região – ESMAF, 2014, p. 87- 88.

102, I, “h”, da Constituição Brasileira de 1998, o que sofreu alterações posteriormente pela

Emenda Constitucional nº 45/2004.

À época em que detinha tal competência, o STF regulamentou a matéria em seu Regimento Interno, nos artigos 225 a 229, além de ter desenvolvido, em sua jurisprudência, entendimento limitativo da cooperação judiciária para o cumprimento de atos de caráter executório. Para o STF, não era admitida a concessão do exequatur a cartas rogatórias cujo objeto fosse a solicitação do cumprimento de algum ato que afetasse a esfera patrimonial ou de liberdade do indivíduo, para o que se exigiria a prolação de decisão definitiva de mérito estrangeira, a qual deveria primeiramente ser homologada, para então poder ser executada. Com o passar do tempo, o entendimento foi abrandado, passando o STF a admitir a concessão de exequatur a cartas rogatórias executórias em caso de previsão expressa no tratado internacional que disciplinasse o pedido de cooperação395.

Com a Emenda Constitucional nº 45/2004, foi alterada a competência para o processamento da homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias, tendo esse papel sido assinalado, no artigo 105, I, “i”, para o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Em sua Resolução nº 9, de 4 de maio de 2005, o Superior Tribunal de Justiça regulamentou algumas questões decorrentes da competência acrescida pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Em seu artigo 7º, a Resolução prevê o seguinte:

Artigo 7º. As cartas rogatórias podem ter por objeto atos decisórios ou não decisórios.

Parágrafo único: Os pedidos de cooperação jurídica internacional que tiverem por objeto atos que não ensejem juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda que denominados como carta rogatória, serão encaminhados ou devolvidos ao Ministério da Justiça para as providências necessárias ao cumprimento por auxílio direto.396

395

PINHEIRO, Érico Rodrigo Freitas. Cartas rogatórias passivas de natureza executória na ordem jurídica brasileira. In: ESCOLA DE MAGISTRATURA FEDERAL DA 1ª REGIÃO. I Jornada sobre cooperação judicial nacional e internacional. Brasília: Escola de Magistratura Federal da 1ª Região – ESMAF, 2014, p. 90- 91.

396

BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 9, de 4 de maio de 2005. Dispõe, em caráter transitório, sobre competência acrescida ao Superior Tribunal de Justiça pela Emenda Constitucional nº

45/2004. Disponível em:

<http://www.stj.jus.br/SCON/legislacao/doc.jsp?numero=%229%22&norma=%27RES%27&&b=LEGI&p=true &t=&l=20&i=1>. Acesso em 12/09/2015.

Com base no referido artigo, o STJ efetuou alterações importantes no entendimento jurisprudencial em relação ao cumprimento das cartas rogatórias executórias, além de prever a nova modalidade de cooperação judiciária, consistente no auxílio direto.

Com efeito, ao mencionar que a carta rogatória poderia ter como objeto atos decisórios e não decisórios, passou-se a admitir essa modalidade para requerer o cumprimento de decisões que demandassem atos executórios, mesmo que não se tratasse da decisão definitiva de mérito. Segundo Érico Rodrigo Freitas Pinheiro, considera-se possível a prática desses atos quando a medida requerida também for admitida segundo as normas brasileiras, mesmo que ainda na fase instrutória do processo397.

No mais, o parágrafo único previu, expressamente, a modalidade do auxílio direto para os casos em que não era necessário juízo de delibação, em que pese a ausência de dispositivos legais sobre o tema. O objetivo foi simplificar os procedimentos, deixando a cargo do Superior Tribunal de Justiça apenas a apreciação das decisões estrangeiras que realmente necessitam de homologação para produzir efeitos no Brasil, e das cartas rogatórias em que se faz necessária a concessão do exequatur. Nos demais casos, o STJ optou por devolver os requerimentos ao Ministério da Justiça, para que desse encaminhamento às providências necessárias.

A possibilidade de utilização do auxílio direto, como solução alternativa de cooperação judiciária internacional, corresponde à necessidade de responder à velocidade com que as relações transfronteiriças ocorrem em um mundo globalizado398. A morosidade dos procedimentos tramitados no Superior Tribunal de Justiça, assoberbado pela enorme quantidade de processos, bem como a existência de mais requisitos formais a serem cumpridos na ação de homologação de sentença estrangeira ou na carta rogatória fizeram com que se buscasse uma nova forma de dar vazão aos requerimentos de cooperação internacional, valendo-se de um modelo mais horizontal de cooperação já presente em alguns tratados internacionais.

O auxílio direto, portanto, foi concebido para lidar com várias espécies de requerimento de cooperação judiciária internacional, desde a simples solicitação de informações ou outras medidas administrativas (isto é, que não demandam necessariamente

397

PINHEIRO, Érico Rodrigo Freitas. Cartas rogatórias passivas de natureza executória na ordem jurídica brasileira. In: ESCOLA DE MAGISTRATURA FEDERAL DA 1ª REGIÃO. I Jornada sobre cooperação judicial nacional e internacional. Brasília: Escola de Magistratura Federal da 1ª Região – ESMAF, 2014, p. 94. 398

MENDONÇA, Luzia Farias da Silva. Aspectos teóricos e pragmáticos do auxílio direto. In: ESCOLA DE MAGISTRATURA FEDERAL DA 1ª REGIÃO. I Jornada sobre cooperação judicial nacional e internacional. Brasília: Escola de Magistratura Federal da 1ª Região – ESMAF, 2014, p. 148.

de um juízo decisório), até pedidos de atos judiciais a serem realizados no país, a serem conhecidos como se, na verdade, o procedimento fosse interno399.

Entre os anos de 2004 e 2005, o Ministério da Justiça do Brasil instituiu uma Comissão para Elaboração de Anteprojeto de Lei de Cooperação Jurídica Internacional, composta por vários estudiosos do tema, motivado pela necessidade de criar uma nova legislação para o combate ao crime organizado transnacional e para a efetividade das decisões civis em processos internacionais400.

O Anteprojeto dispõe tanto sobre a cooperação judicial em matéria civil, trabalhista, previdenciária, comercial, tributária, financeira e administrativa, quanto sobre a cooperação em matéria penal, prevendo em seu artigo 1º que a cooperação se dará especialmente por intermédio dos procedimentos da carta rogatória, da ação de homologação de decisão estrangeira, do auxílio direto, da transferência de processos penais, da extradição e da transferência de pessoas apenadas.

A menção expressa ao auxílio direto como modalidade de cooperação judiciária é relevante, pois representa o intuito de simplificação dos procedimentos e de conferir mais celeridade na tramitação das solicitações recebidas de Estados estrangeiros. Segundo o artigo 35, os pedidos de auxílio direto seriam encaminhados diretamente à autoridade central, que poderia inclusive efetuar de imediato atos que não necessitem de prestação jurisdicional, consoante o artigo 36. Se o auxílio direto demandar prestação jurisdicional, seria competente o juiz federal do local em que deva ser executada a medida, devendo a autoridade central encaminhar o pedido à Advocacia-Geral da União para requerer em juízo a medida solicitada, salvo se a autoridade central for o Ministério Público, que poderá requerê-la diretamente, conforme o artigo 37.

No artigo 4º do anteprojeto restou estipulado que, na ausência de tratado, o pedido de cooperação pode ser atendido com base na reciprocidade de tratamento, a critério da autoridade central. Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva critica a exigência de reciprocidade, afirmando que isso deveria ocorrer apenas nas relações de direito público, já que os indivíduos, titulares de relações de direito privado, não poderiam ser privados do exercício de seus direitos em função de omissão do Estado estrangeiro, sob pena de ofensa ao direito de

399399

MENDONÇA, Luzia Farias da Silva. Aspectos teóricos e pragmáticos do auxílio direto. In: ESCOLA DE MAGISTRATURA FEDERAL DA 1ª REGIÃO. I Jornada sobre cooperação judicial nacional e internacional. Brasília: Escola de Magistratura Federal da 1ª Região – ESMAF, 2014, p. 149-150.

400

SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Anotações sobre o anteprojeto de lei de cooperação jurídica internacional. In: Revista de Processo, nº 129, ano 30, novembro de 2005, p. 133.

acesso à justiça401. Ademais, como recorda Nádia de Araújo, a tradição jurídica no Brasil nunca foi a de exigência da reciprocidade402.

Foi prevista a possibilidade do reconhecimento de decisão judicial estrangeira de natureza cautelar, assim como a antecipação de tutela nos procedimentos de reconhecimento de decisão estrangeira, medidas inerentes ao princípio da inafastabilidade da jurisdição403.

Interessante a previsão contida no artigo 16 do anteprojeto do reconhecimento automático, independentemente de homologação, das decisões relativas ao estado e capacidade das pessoas, das decisões proferidas por tribunais internacionais de que o Estado brasileiro reconheça a jurisdição e outras decisões previstas em tratado.

Na visão de Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva, não haveria qualquer risco de ofensa à soberania com a adoção do sistema de reconhecimento automático de decisões judiciais estrangeiras, já que a soberania somente seria sacrificada se fosse vedado o poder jurisdicional. Para o autor, a admissão voluntária de decisões judiciais estrangeiras, enquanto necessárias à efetividade da jurisdição nacional e, portanto, do Estado de Direito, seriam legítimas e fortaleceriam ainda mais a soberania interna, ressaltando a manutenção da possibilidade do controle judicial sobre a compatibilidade das decisões judiciais estrangeiras, em relação aos princípios fundamentais do Estado brasileiro404.

O anteprojeto de lei de cooperação jurídica internacional não foi transformado em lei especial. Segundo Nádia de Araújo, a conclusão dos trabalhos da comissão especial sequer chegou a ser remetida ao Congresso Nacional405.

Entretanto, a maior parte dos seus dispositivos referentes à cooperação jurídica em matéria cível foi incorporada ao projeto de lei que deu origem ao novo Código de Processo Civil brasileiro, editado em 2015, com algumas importantes diferenças (vide item infra).

Para além desse projeto, encontros promovidos pelo Instituto Iberoamericano de Direito Processual, entre 2005 a 2008, culminaram na elaboração de uma Proposta de Código

401

SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Anotações sobre o anteprojeto de lei de cooperação jurídica internacional. In: Revista de Processo, nº 129, ano 30, novembro de 2005, p. 142.

402

ARAÚJO, Nadia de. A importância da cooperação jurídica internacional para a atuação do Estado brasileiro no plano interno e internacional. In: BRASIL. SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria civil. 4. ed. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. p. 32.

403

SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Anotações sobre o anteprojeto de lei de cooperação jurídica internacional. In: Revista de Processo, nº 129, ano 30, novembro de 2005, p. 165.

404

SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Reconhecimento de decisão judicial estrangeira no Brasil e o controle da ordem pública internacional no regulamento (CE) 44: análise comparativa. In: Revista de Processo, ano 29, n. 118, nov/dez 2004. p. 184.

405

ARAÚJO, Nadia de. A importância da cooperação jurídica internacional para a atuação do Estado brasileiro no plano interno e internacional. In: BRASIL. SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria civil. 4. ed. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. p. 41.

Modelo de Cooperação Interjurisdicional para Iberoamérica, difundida pela Rede Iberoamericana de Cooperação Jurídica Internacional (IberRed)406.

Nota Adriana Beltrame que a opção pela utilização do termo “interjurisdicional” foi

justificada pela comissão elaboradora do código modelo por entendê-la como a mais adequada à tutela judicial transnacional, já que não seria correto utilizar o termo “judicial”,

que restringiria a cooperação a atos judiciais, nem “jurídica”, por ser demasiadamente

extensiva, uma vez que a cooperação deve estar adstrita aos atos judiciais, administrativos ou legislativos que sirvam concretamente à jurisdição407.

A comissão elaboradora da proposta foi composta por representantes do Brasil, Panamá, Uruguai, Portugal, Espanha, Colômbia e Argentina, e registrou, na exposição de motivos, que o tratamento diferenciado dispensado à cooperação interjurisdicional em cada Estado é um sério obstáculo para a efetividade da tutela judicial transnacional, sendo necessário buscar uniformidade no tratamento do tema. Assim, a busca pela construção de um espaço judicial Iberoamericano depende de um consenso sobre os princípios que norteiam essa cooperação, que sejam passíveis de aplicação em todos os sistemas jurídicos envolvidos408.

Ainda, ficou consignado que a Proposta do Código Modelo não é um projeto de tratado internacional a ser ratificado, mas sim uma proposta de normas nacionais a serem incorporadas internamente pelos países iberoamericanos, destinada à cooperação interjurisdicional com qualquer Estado, iberoamericano ou não409.

É digna de nota a previsão do artigo 2º, IV, da Proposta de Código Modelo, que estabelece como princípio a não dependência da reciprocidade de tratamento entre os Estados. O objetivo dessa sugestão, que rompe com a tradição internacional de exigência de reciprocidade, foi o de assegurar, em um contexto transnacional, o exercício dos direitos pertencentes aos indivíduos, de modo a não sacrificá-los por culpa de um Estado que não oferece a promessa de reciprocidade. Essa omissão deverá resultar em uma restrição apenas aos interesses exclusivos desse Estado, sob pena de se configurar uma ofensa à tutela judicial, no entendimento da comissão410.

406

A IberRed será examinada no capítulo seguinte. 407

BELTRAME, Adriana. Cooperação jurídica internacional. In: Revista de Processo, nº 162, ano 33, agosto de 2008, p. 194.

408

Código Modelo de Cooperación Interjurisdicional para Iberoamérica. In: Revista de Processo, nº 166, ano 33, dezembro de 2008, p. 203-204.

409

Código Modelo de Cooperación Interjurisdicional para Iberoamérica. In: Revista de Processo, nº 166, ano 33, dezembro de 2008, p. 206.

410

Código Modelo de Cooperación Interjurisdicional para Iberoamérica. In: Revista de Processo, nº 166, ano 33, dezembro de 2008, p. 207.

No mais, registre-se que a proposta dividiu a cooperação interjurisdicional em duas modalidades: entre os atos de mero trâmite e probatórios que não reclamem uma decisão judicial do Estado requerido, em que o procedimento a ser adotado seria o do auxílio mútuo; e os atos que reclamam uma decisão, que exigiriam os procedimentos da carta rogatória e ações ou incidentes de reconhecimento da decisão estrangeira411.

Essa proposta não foi transformada em lei no Brasil, mas alguns de seus dispositivos inspiraram as propostas de alteração da legislação processual civil que resultaram no novo Código de Processo Civil editado em 2015.

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