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Em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou, por 48 votos a zero, e 8 abstenções, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Ressalta Flavia Piovesan a importância histórica da votação:

A inexistência de qualquer questionamento ou reserva feita pelos Estados aos princípios da Declaração, bem como de qualquer voto contrário às suas disposições, confere à Declaração Universal o significado de um código e plataforma comum de ação. A Declaração consolida a afirmação de uma ética universal ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados.116

A Declaração não tem natureza de tratado internacional, pois não é um documento firmado pelo consenso entre Estados sujeito a ratificações, tendo sido adotada pela Assembleia Geral sob a forma de resolução. O propósito da Declaração, como mencionado anteriormente, é promover o reconhecimento dos direitos humanos e liberdades fundamentais a que se refere a Carta das Nações Unidas de 1945.

Por este motivo, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 tem sido

concebida como a interpretação autorizada da expressão “direitos humanos” contida na Carta

das Nações Unidas, apresentando, por este motivo, força jurídica vinculante, já que são documentos inter-relacionados, como explica Flávia Piovesan117.

115

Conforme informação disponível em: <http://nacoesunidas.org/conheca/paises-membros/>. Acesso em 27/08/2015.

116

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 1a ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 209.

117

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 1a ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 216-217.

A força jurídica vinculante da Declaração Universal de Direitos Humanos advém, ainda, do fato do documento integrar o direito costumeiro internacional ou os princípios gerais do direito internacional, o que pode ser comprovado: pela posterior incorporação de seus princípios e normas por Constituições de diversos Estados, pelas frequentes referências feitas por resoluções posteriores da ONU à obrigação legal de observância à Declaração Universal, e pelas decisões proferidas por Cortes nacionais referindo-se ao documento como fonte formal de direito.

Na Declaração, são enfatizados como princípios essenciais dos direitos humanos a universalidade e a indivisibilidade. A característica da universalidade significa sua aplicabilidade a todas as pessoas de todos os países, raças, sexos e religiões, seja qual for o regime político do território nos quais incide. Para a Declaração, o único requisito para a titularidade de direitos é a condição de pessoa.

Como explica Flávia Piovesan, a concepção universal dos direitos humanos é criticada pelos adeptos do relativismo cultural, que afirmam que o pluralismo cultural existente em todo o globo impede a formação de uma moral universal, sendo imperioso o respeito às diferenças. Criticam ainda a imposição das tradições ocidentais no contexto dos direitos humanos118.

Para Yash Ghai, tradicionalmente formulados como prerrogativas pela cultura ocidental, os direitos humanos são muitas vezes encarados como instrumento de retórica e dominação, em virtude das características de pretensão de universalidade, em detrimento de outras culturas e valores, de promoção de valores que favorecem a globalização econômica, como os direitos de propriedade e liberdade contratual e do fato das instituições e funcionários ocidentais manterem a supremacia na interprestação destes direitos. Por outro lado, os direitos humanos podem e têm sido usados de forma contra-hegemônica, por intermédio de movimentos independentes, com a afirmação do direito de autodeterminação dos povos, o desafio da noção pura de universalismo com as teorias de relativismo cultural, a procura de métodos mais democráticos para a formulação e aplicação dos direitos humanos, a ênfase nos direitos econômicos, sociais e culturais e a construção de redes internacionais119.

Como pontuam Boaventura de Sousa Santos e João Arriscado Nunes, a afirmação da igualdade com base em pressupostos universalistas não pode levar à descaracterização das identidades, das culturas e das experiências históricas de cada povo. Assim, a efetivação dos

118

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 1a ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 222.

119

GHAI, Yash. Globalização, multiculturalismo e direito. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Porto: Afrontamento, 2004, p. 562-564.

direitos humanos não pode desconsiderar a defesa da diferença cultural, da identidade coletiva, da autonomia e da autodeterminação, dando ênfase ao reconhecimento de uma

“cidadania multicultural”120

.

Assim, a afirmação do direito à diferença pode ser relevante para propiciar um efetivo combate à discriminação de grupos vulneráveis. De acordo com Boaventura de Sousa Santos,

é necessária a aceitação do seguinte imperativo transcultural: “temos o direito de ser iguais

quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos

descaracteriza”121

.

No mesmo sentido, Gustavo Gozzi ressalta que a pretensão de universalidade trazida com a Declaração Universal de Direitos Humanos é criticada, já que a interpretação de direitos expressa no documento pertence evidentemente à tradição ocidental, enquanto se trata de uma concepção jusnaturalista e de uma perspectiva individualista de direitos. De toda forma, afirma o autor que o próprio preâmbulo da Declaração, ao mencionar a dignidade inerente a todos os membros da família humana, deixa antever o respeito pelas particularidades culturais, sendo possível afirmar que a diversidade pertence à essência da universalidade122.

Para Antônio Augusto Cançado Trindade, os adeptos do relativismo cultural se esquecem que as culturas não são herméticas, mas sim abertas aos valores universais, e que diversos tratados de proteção aos direitos humanos já obtiveram aceitação universal, pelo consenso da comunidade internacional. Sem questionar a importância da diversidade cultural para se lograr a eficácia dos direitos humanos, o autor defende que a universalidade das normas relativas a tais direitos se constrói e se ergue sobre o reconhecimento, por todas as culturas, da dignidade do ser humano123.

As críticas à pretensão de universalidade foram devidamente consideradas pelas Nações Unidas que, em 1993, adotou a Declaração de Viena, na qual, reafirmando a universalidade, estabeleceu, em seu artigo 5º, que:

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SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Porto: Afrontamento, 2004, p. 43.

121

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Porto: Afrontamento, 2004, p. 458.

122

GOZZI, Gustavo. La dichiarazione universale dei diritti umani sessant’anni dopo: le “promesse mancate” dei diritti umani. In: GOZZI, Gustavo; FURIA, Annalisa (a cura di). Diritti umani e cooperazione internazionale allo sviluppo: ideologie, illusioni e resistenze. Bologna: Il Mulino, 2010. p. 17.

123

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e conquistas do direito internacional dos direitos humanos no início do século XXI. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/407- 490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf>. Acesso em 10/09/2015. p. 418.

Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter- relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de maneira justa e equânime, com os mesmos parâmetros e com a mesma ênfase. As particularidades nacionais e regionais e as bases históricas, culturais e religiosas devem ser consideradas, mas é obrigação dos Estados, independentemente do seu sistema político, econômico e cultural, promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

Assim, compreende-se que a universalidade é enriquecida pela diversidade cultural, mas esta não pode ser invocada para justificar violações aos direitos humanos reconhecidos internacionalmente, e consensualmente declarados pelos Estados membros da Organização das Nações Unidas.

A indivisibilidade dos direitos humanos, por sua vez, é ressaltada pelo fato da Declaração ineditamente conjugar o catálogo dos direitos civis e políticos (direitos humanos de 1ª geração) com os direitos econômicos, sociais e culturais (direitos humanos de 2ª geração).

Historicamente, era intensa a dicotomia entre os direitos de liberdade, relativos à primeira geração de direitos humanos, consagrados sob a ótica contratualista do Estado Liberal, e os direitos de igualdade, referentes à segunda geração de direitos humanos, cunhados sob a égide do Estado Social.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos combina o discurso liberal da cidadania com o discurso social, elencando tanto direitos civis e políticos, como direitos econômicos, sociais e culturais, afirmando a indivisibilidade e interdependência entre essas categorias de direitos. É esta a concepção contemporânea de direitos humanos, para a qual os direitos passam a ser considerados uma unidade interdependente e indivisível, afastando-se a visão de sucessão geracional de direitos, passando para uma compreensão de expansão, cumulação e fortalecimento entre as gerações de direitos humanos124.

A partir de então, as novas gerações de direitos humanos passam a ser reconhecidas já sob o entendimento da natureza indivisível e interdependente entre as categorias de direitos. Os direitos humanos de terceira geração, ou direitos de fraternidade ou solidariedade, correspondem aos direitos difusos, relacionados a uma titularidade indeterminável (por

124Parte da doutrina constitucional critica a utilização do termo “gerações” de direitos humanos, que daria uma noção de superação e substituição de uma geração por outra, preferindo a adoção do termo “dimensão”, no sentido de que fazem parte de uma mesma realidade dinâmica, em múltiplas dimensões, sob a perspectiva evolutiva, como ensina Gabriela Neves Delgado (Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006, p. 58). No presente trabalho, adota-se a expressão “geração de direitos humanos” exatamente por melhor expressar o caráter de historicidade do reconhecimento das categorias de direitos humanos.

exemplo, os direitos ambientais). Há quem identifique, ainda, a quarta, a quinta e a sexta gerações de direitos humanos, relacionadas a direitos decorrentes da biotecnologia e do desenvolvimento tecnológico (cibernética e informática), do direito à paz e oriundos da globalização125.

A Declaração Universal de Direitos Humanos menciona, desde o seu preâmbulo, que

“o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus

direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Além disso, referindo-se à Carta das Nações Unidas de 1945, recorda que

... os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla.

Os seus artigos I e II declaram que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em

dignidade e direitos” e possuem “capacidade para gozar os direitos e as liberdades

estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.

Além disso, o artigo VII menciona expressamente o direito a não ser discriminado, ao dispor:

Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

No campo do trabalho, são importantes as previsões do artigo XXIII, in verbis:

1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.

125

3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.

4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses126.

O item 1 deste artigo, ao se referir a “condições justas e favoráveis de trabalho”, pode

ser visto como indicativo de um ambiente de trabalho sem discriminação. Por sua vez, o item 2 trata expressamente da vedação à discriminação salarial para trabalhos de igual valor, sendo importante dispositivo para o combate às discrepâncias remuneratórias entre homens e mulheres.

Como visto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos já consagra vários dispositivos que vedam a discriminação, que podem ser aplicados em diversos aspectos da vida social, inclusive no trabalho. Para reforçar a proteção contida nesta declaração, a ONU editou dois Pactos complementares, especificando os direitos humanos civis e políticos, e os direitos humanos econômicos, sociais e culturais.

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