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1. A QUESTÃO SOCIAL DO SOCIAL

1.4. A crise do social

A crise que abalou o sistema capitalista na década de 1930 repercutiu por algumas décadas na economia mundial e somente após a Segunda Guerra finalizou-se de fato, quando se inaugurou uma fase de prosperidade no sistema. Essa crise implicou o repensar dos fundamentos ideológicos do capitalismo e levou à ascensão teorias e políticas favoráveis a uma maior intervenção estatal no âmbito econômico e social, propostas por Keynes, o que coadunado à crescente pressão trabalhista, à ameaça do socialismo e à questão social que se fundara no advento e desenvolvimento do capitalismo industrial, favoreceram as circunstâncias sob as quais o Estado Social emergiu. Este Estado consolidou-se e predominou durante o período conhecido como “anos gloriosos”, que correspondem aos trinta anos seguintes ao término da Segunda Guerra Mundial, período no qual o capitalismo atingiu seu ápice. O Estado de Bem-Estar Social configurado nesse período representou, nas palavras de Esping-Andersen (1995, p.73):

(...) um esforço de reconstrução econômica, moral e política. Economicamente, significou o abandono da ortodoxia da pura lógica do mercado, em favor da exigência de extensão da segurança do emprego e dos ganhos como direitos de cidadania; moralmente, a defesa das ideias de justiça social, solidariedade e universalismo. Politicamente, o Welfare State foi parte de um projeto de construção nacional, a democracia liberal contra o duplo perigo do fascismo e do bolchevismo.

Logo, em última instância, o Estado Social foi um produto do pós-Guerra, advindo da necessidade de reconstrução social, política e econômica das sociedades capitalistas, ao término do conflito mundial.

De acordo com Marques (1997), o rápido e expressivo crescimento econômico que os países avançados alcançaram nesse período forneceu as bases materiais para o desenvolvimento e consolidação do próprio papel social do Estado, pois propiciou uma fonte crescente e sólida de recursos fiscais, mediante os quais as proteções puderam ser promovidas e ampliadas. Não apenas os benefícios garantidos pela seguridade como também aqueles ligados ao trabalho fundamentavam-se tanto em contribuições dos empregados e empregadores, com o concurso do Estado (a França é o país mais emblemático), como a partir de recursos fiscais (países nórdicos). Em um primeiro momento, tais benefícios dirigiam-se essencialmente aos trabalhadores urbanos. Porém, em função das pressões sociais e favorecidas pelo acelerado crescimento econômico da época, as proteções foram progressivamente estendidas, ampliando não apenas o leque de riscos cobertos como também o público abarcado, passando a incluir aqueles sem capacidade de contribuição ao sistema. Alcançava-se, assim, a universalização da cobertura na proteção social. Por isso, pode-se considerar que, se por um lado, o Estado Social favoreceu a condição de assalariamento, ao torná-la atrativa ao trabalhador por meio do estatuto jurídico do trabalho e das proteções sociais, por outro, tanto o Estado Social como as proteções sociais foram favorecidos pela expansão que o assalariamento auferiu, abrangendo o conjunto das atividades humanas, através do célere crescimento econômico e do elevado nível de emprego que as economias apresentaram no período dos anos gloriosos.

Todavia, um novo sismo estremeceu o capitalismo mundial na década de 1970, debilitando as economias e acarretando que as políticas econômica e social de caráter expansivo, implementadas pelo Estado Social, fossem perdendo sua eficácia, como também o seu espaço. Segundo argumenta Marques (1997, p.58), o determinante último dessa crise que abala o sistema capitalista, a partir dos anos setenta, é o “fim da onda larga”, isto é, o esgotamento do ciclo de expansão que caracterizou o período dos anos de ouro do capitalismo. Este esgotamento resultou da exaustão dos próprios mecanismos de acumulação do período, o que passou a exigir um novo paradigma tecnológico para sua superação. A produção e as atividades econômicas em geral serão, a partir daí, reestruturadas sob uma nova base tecnológica, cimentada precipuamente no desenvolvimento da microeletrônica e da informatização, que se constituirão como técnicas altamente poupadoras de mão de obra, principalmente na indústria.

Ainda de acordo com Marques (1997), diante dessa nova conjuntura econômica e tecnológica, as sociedades passaram a conviver com níveis elevados de desemprego, contrastando sobremaneira com a situação anterior vivida nos anos gloriosos. Ademais, em razão da própria natureza desse novo paradigma tecnológico, a persistência do desemprego em patamar elevado ameaça consolidar-se, conformando uma nova configuração contemporânea para o mundo do trabalho. Neste processo, as bases materiais de financiamento e promoção das proteções sociais começam a ser tolhidas.

Sobre o conjunto deste cenário adverso que se coloca com a crise do capitalismo, iniciada na década de 1970, avolumaram-se as críticas à proposta keynesiana, implicando o fortalecimento da ortodoxia, que se (re)estabeleceu enquanto pensamento hegemônico, sob a alcunha de neoliberalismo (BURGINSKI, 2013; GALLARDO & ANYUL, 2008; LIMA, SICSÚ & PAULA, 1999). Como o define Draibe (1993, p.86,88-90):

O neoliberalismo não constitui um corpo teórico próprio, original e coerente. Esta ideologia dominante é principalmente composta por proposições práticas e, no plano conceitual, reproduz um conjunto heterogêneo de conceitos e argumentos, “reinventando” o liberalismo mas introduzindo formulações e propostas muito mais próximas do conservadorismo político e de uma sorte de darwinismo social (...). As “teorizações” (...) neoliberais são geralmente emprestadas do pensamento liberal ou de conservadores e quase que se reduzem à afirmação genérica da liberdade e da primazia do Mercado sobre o Estado, do individual sobre o coletivo. E, derivadamente, do Estado mínimo, entendido como aquele que não intervém no livre jogo dos agentes econômicos. (...) Também no domínio das políticas sociais, o fôlego teórico neoliberal é bastante reduzido. Suas proposições compõem, negativamente, um conjunto de argumentos de ataque ao Estado de bem-estar social e, positivamente, um conjunto de propostas de reformas dos programas sociais, movendo-se sobretudo num campo mais prático de prescrições para as políticas públicas no setor social.8

Isto posto, com o revigoramento da doutrina ortodoxa, o ideário neoliberal passa a ocupar uma posição predominante na condução das políticas econômica e social, o que concorrerá diretamente para o processo de progressiva desconstrução do papel social do Estado, em vista do posicionamento ideológico e das “recomendações” práticas propagadas por esta vertente.

O discurso neoliberal, que passa a vigorar, defende um novo modelo de acumulação pautado sob um mercado de trabalho flexível. Segundo seus proponentes, esta seria a forma de equilibrar a procura e a demanda por trabalho neste mercado, o que contribuiria para a

redução do desemprego. No entanto, como já ressaltado, a própria natureza do paradigma tecnológico implica que mesmo as novas vagas que pudessem ser geradas não compensariam os empregos destruídos pela economia de mão de obra. Dessa forma, a flexibilização do mercado de trabalho, defendida pela ortodoxia, poderia propiciar uma recomposição dos lucros capitalistas, em uma tentativa de recuperar os níveis de lucratividade vigentes nos anos de ouro, mas não asseguraria infalivelmente a recuperação das condições e dos níveis de emprego.

A flexibilização do mercado de trabalho pretende tornar maleáveis as garantias sociais vinculadas a ele, o que, em outras palavras, significa derrogar o estatuto jurídico do emprego, erodir os direitos e proteções enleados ao trabalho. O estatuto do emprego vai sendo, assim, paulatinamente enfraquecido. Este enfraquecimento do estatuto do emprego reflete-se na crescente precarização do trabalho, nos obstáculos que têm se colocado para a seguridade e para as proteções diversas a ele vinculadas. Tal ameaça ao estatuto do emprego abala profundamente o principal sustento, o principal pilar, no qual a função protetora do Estado foi edificada.

Na presença desse quadro de hegemonia do neoliberalismo e das evidentes e crescentes dificuldades financeiras que o Estado Social enfrenta para sustentar as proteções sociais, em vista da ameaça de consolidação de níveis elevados de desemprego e precarização do trabalho, o que concorre diretamente contra a base contributiva que mantém parte da seguridade, acentua-se o debate em torno do futuro dos sistemas de proteção, assim como do próprio papel social do Estado (MARQUES, 1997). Neste cenário, emergem e ganham força as propostas de renda mínima garantida (RMG), como opção substitutiva ou suplementar (dependendo da vertente de pensamento que a defenda), para o conjunto de proteções, benefícios e serviços promovido pelo Estado. De acordo com Marques (1997, p.89), o entendimento da RMG e de sua necessidade, em função das diferentes correntes de pensamento, distinguem-se essencialmente do seguinte modo:

Entre os neoliberais [a RMG] está associada à ideia de Estado mínimo e às propostas de desregulamentação do trabalho e de redução ou extinção dos encargos sociais, como condição para que as taxas de desemprego recuem, e como requerimento da chamada globalização. No campo progressista, está associada à construção de um novo conceito de solidariedade, entendida como necessária para dar conta da situação criada pelo novo nível de produtividade e do novo mundo do trabalho.

A autora ressalta que vários defensores da RMG advogam sua necessidade e importância levando em conta uma tendência, que consideram inevitável, de superação da sociedade salarial. Esta tendência se confirmaria em vista da persistência das elevadas taxas de desemprego e da nova configuração que o mundo do trabalho tem tomado, através da crescente precarização do emprego e das tentativas de enfraquecimento de seu estatuto. Não obstante, aponta a autora, a pressuposição de um inevitável colapso da sociedade salarial desatenta à possibilidade de retomada do crescimento do trabalho, seja como resultado da mobilização trabalhista pela redução da jornada de trabalho e pela manutenção dos direitos conquistados, seja como resultado de um novo ciclo de expansão do sistema que venha a suscitar um aumento na demanda de mão de obra, ou seja ainda por intermédio de políticas públicas sociais de estímulo à geração de emprego. Deste modo, a derrocada da sociedade salarial não é um fato determinado, pelo menos não sob um ponto de vista dinâmico, que exceda a análise estática da conjuntura atual.

No entanto, o risco de tal colapso está colocado, o que não é sinônimo de sua inevitabilidade histórica. Entretanto, esse risco se agrava sob um cenário onde o Estado Social, principal promotor e garantidor dos direitos coletivos e sociais no capitalismo contemporâneo, encontra-se cada vez mais questionado e reprimido em sua função social. Como considera Castel (2010), o Estado Social, característico do apogeu dos anos dourados do capitalismo, tem sido combalido. Ele perde paulatinamente sua relativa autonomia ao inserir-se em uma dinâmica de competição internacional cada vez mais acirrada, que se avoluma com a intensificação dos processos globalizadores. Para seguir competitivo frente às exigências da globalização e dos mercados financeiros mundializados, o Estado precisa, diante da redução de suas receitas fiscais, eliminar custos, eleger prioridades e, neste ponto, são os salários, as proteções e as vantagens sociais a ele vinculadas que aparecem como as principais variáveis de ajuste.

Diante desse contexto, o Estado social perde sua força, vis-à-vis a robustez que alcançara no apogeu do capitalismo. A promoção do social, como também a oferta de bens e serviços públicos são coagidas, dando lugar para a crescente mercantilização que é instigada pela doutrina neoliberal. Desse modo, não apenas o Estado Social é elanguescido, mas o próprio papel social do Estado.

Concomitantemente à retomada da doutrina ortodoxa como pensamento hegemônico, e decorrente disso, um processo de descolectivização da sociedade, como Castel (2010) denomina, consolida-se de maneira progressiva. O caráter do “coletivo”, sob o qual o Estado Social embasara as proteções, rui ante o crescente rogo à individualização. “A exortação a ser um indivíduo se generaliza”9 (CASTEL, 2010, p.25). A sociedade coletivizada, sob o Estado Social, descoletiva-se, individualiza-se. Desponta uma “sociedade dos indivíduos” (ELIAS, 1994). Porém, a “exortação a ser um indivíduo” negligencia o fato de que sê-lo não é um dado. Tornar-se um indivíduo é o cerne do problema, pois o indivíduo não é algo acabado, uma “substância”, nas palavras de Castel (2010). O indivíduo é uma construção social e histórica, e que, portanto, precisa de alicerce, de recursos para construir- se enquanto tal.

Em face desta nova configuração de uma sociedade individualizada, as relações de trabalho alteram-se sobremaneira. Segundo Castel (2010), cada vez mais são exigidas do trabalhador mobilidade, adaptabilidade, responsabilidade, autonomia, tanto no que concerne à atividade laboral e ao seu percurso profissional, quanto à sua própria vida. Daqui em diante, cada indivíduo deve valer-se por seu mérito. A meritocracia torna-se a medida da trajetória pessoal, profissional e social de cada um.

Sob a guarida do mérito, como o autor também ressalta, alguns indivíduos saem-se bem, livres das “amarras” coletivas e do “peso” dos regimentos. Mas outros tantos, não possuindo os recursos necessários para enfrentar as novas exigências, não conseguem se inserir e, não havendo mais o coletivo (promovido pelo Estado Social) que os favorecia, acabam por tornarem-se inválidos sociais, sem papel, sem função a exercer. Há, portanto, um contingente amplo de indivíduos que não consegue responder adequadamente às novas exigências impostas pelo processo de crescente individualização da sociedade.

Pode-se considerar, mesmo a partir de uma perspectiva liberal respaldada na abordagem de Sen (2005), que tais indivíduos não possuem os “funcionamentos” necessários para atender a esses requisitos. Os funcionamentos correspondem aos estados e ações do indivíduo, como, por exemplo, a condição de nutrição, de educação ou mesmo seu comportamento social. Segundo esta abordagem, é o conjunto de funcionamentos que

determina se um indivíduo tem ou não capacidade para adquirir ou participar de algo, pois a disponibilidade de um bem ou serviço não significa que a pessoa tenha capacidade de adquiri-lo ou de participar dele. Deste modo, a ausência ou insuficiência de determinados funcionamentos implica menor capacidade de resposta dos indivíduos às demandas sociais, inclusive e principalmente do mercado laboral. Por tal perspectiva, os mais desvalidos socialmente constituem-se em “incapacitados” a possuir ou participar de determinados bens e serviços vinculados à vivência da sociedade. O Estado Social, enquanto promotor de bens e serviços públicos, promove a formação desses funcionamentos ao conjunto desses indivíduos desvalidos, tornando-os “capacitados” à tal participação social. Mas ao ter sua função social enfraquecida, o Estado deixa de agir sobre tais sujeitos, que passam a ter que atender por si mesmos às exigências da nova configuração do mercado.

Como argumenta Castel (2010), ao propiciar recursos e direitos basilares aos indivíduos desprovidos de propriedade privada, o Estado, no apogeu do capitalismo, edificou uma espécie de propriedade social, que proveu tais sujeitos de cidadania, ao valer-lhes inserção social pela via do trabalho e das proteções e serviços sociais. Contudo, a emergência desta “sociedade dos indivíduos” tem cada vez mais destruído a propriedade social, gerando assim não mais indivíduos cidadãos, mas indivíduos “por defeito”, posto que são indivíduos em termos fisiológicos e psicológicos, mas não o são no sentido social pleno, uma vez que carecem dos recursos necessários para inserirem-se de modo adequado nas exigências do novo regime. Logo, a sociedade dos indivíduos “maximiza as possibilidades de uns e invalida as de outros”10 (CASTEL, 2010, p.27).

Perante esse processo, a própria questão social se metamorfoseia. Originalmente fundada sobre a indagação acerca da capacidade da sociedade em manter-se coesa, ante os problemas sociais que emergiam, a questão social de então teve como resposta a integração social dos desprovidos por intermédio do emprego, alterando o status do trabalho, embasando-o sobre direitos e garantias e promovendo a proteção social de caráter universal. Neste sentido, o trabalho exerce o papel de ente integrador, pois através dele os sujeitos puderam auferir um conjunto de direitos que lhes fornece garantias fundamentais, integrando-os e habilitando-os à participação na sociedade, por meio da cidadania que passaram a dispor. Contudo, com a fragilização do estatuto do emprego e, por consequência,

a crescente precarização do trabalho, segundo Castel (2011b, p.281), a nova questão social “parece ser o questionamento dessa função integradora do trabalho na sociedade”. Porém, cabe interrogar se haveria “outros suportes da utilidade social e outros fundamentos legítimos de reconhecimento social fora do trabalho”11 (CASTEL, 2010, p.70).

A ética do trabalho, enquanto construção histórica do capitalismo, pontifica que o trabalho é a principal via de integração social (MARQUES, 1997, p.99). Ele não perdeu sua centralidade social, apesar do processo de deterioração ao qual os fundamentos da sociedade salarial têm sido submetidos. O significado de deterioração, neste sentido, implica justamente que a estrutura deste tipo de sociedade se mantém, enquanto que seu sistema de regulações se debilita, como explica Castel (2010, p.78). Sendo assim, ainda segundo o autor, embora a sociedade salarial em sua configuração contemporânea mostre-se globalmente deteriorada, as sociedades humanas atuais permanecem ao abrigo de seu marco teórico, prático e político, pois a maior parte da vida social cotidiana segue-se exercendo em torno da consistência do trabalho assalariado.

Diante da configuração vigente das sociedades capitalistas modernas, cada vez mais individualistas, meritocráticas e mercantilizadas, a atuação do Estado deve ser reorientada, para que seu papel social não seja completamente suprimido. A partir desta reorientação, novos imperativos são colocados para o Estado. Segundo Castel (2010, p.164), o primeiro deles é o da proximidade, que pontifica que a atuação do social deve ocorrer em nível mais próximo ao beneficiário das proteções e serviços. Em outras palavras, isso equivale a retirar o social do Estado e legá-lo à esfera do localismo. É o argumento da descentralização da gestão e promoção do social, enquanto, teoricamente, a forma mais eficiente de promovê-lo.

O segundo imperativo é o da participação do usuário. Este imperativo defende a atuação conjunta do beneficiário em relação ao benefício que lhe é concedido. Significa que o Estado não deve mais atuar como um distribuidor de recursos incondicionais. Ao contrário, ele deve exigir uma contraprestação do beneficiário do social (quando este não for pertencente ao grupo dos isentos do trabalho), de modo a torná-lo responsável por si e por seu desenvolvimento, por sua “recuperação”. É a lógica da condicionalidade, da

contrapartida, do “toma lá, dá cá” (CASTEL, 2010). Assim, uma espécie de mercantilização alcança a esfera do social.

Além de não mais distribuir recursos e proteções de maneira incondicional, o Estado não deve, igualmente, fazê-lo de modo universal. É preciso distinguir os usuários, não apenas por suas posições em relação ao trabalho, mas em suas necessidades e nas causas destas. Contudo, ao diferenciar os beneficiários, o social torna-se seletivo, em oposição ao universal. O critério de atendimento progressivamente deixa de ser a cidadania e passa a ser a necessidade ou o mérito. O social, cada vez mais, abandona o domínio do universal e migra para o campo do focalizado. A focalização avulta-se em detrimento da universalidade.

Deste modo, ao ter que se adaptar às exigências impostas pelo novo regime pautado no predomínio da doutrina ortodoxa e na crescente individualização da sociedade, o Estado Social tem sua própria natureza abalada. Originalmente erigido sob uma vocação universalista, almejando a universalidade de direitos e proteções sociais incondicionais a todo o conjunto da sociedade, o Estado Social tem sua atuação reorientada para uma postura seletiva, centrada na focalização, nas condicionalidades e no localismo, que doravante devem, crescentemente, pautar o social e suas ações.

Em resumo, a crise do social perpassa diferentes âmbitos. Compreende, em última instância, a crise da própria sociedade salarial onde as raízes da função social do Estado foram plantadas. Diante das dificuldades que esta crise impõe e das novas exigências que passam a figurar no ideário dominante e na conformação das sociedades, o Estado Social é impingido a adaptar-se, assumindo gradativamente novas premissas para sua atuação. Não obstante, nessa adaptação acaba por alterar muito de sua própria natureza.