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1. A QUESTÃO SOCIAL DO SOCIAL

1.1. O ideário liberal e o advento da questão social

A partir do século XVIII, as concepções liberais ganharam prevalência e tornaram- se dominantes no pensamento econômico. Estas concepções preconizavam a noção de um mercado autônomo, naturalmente regulado e regulador “natural” das relações produtivas e sociais. De maneira que a posição de cada indivíduo no conjunto social, assim como as relações entre eles estabelecidas, definiam-se pela forma como estes se encontravam inseridos no processo produtivo desse mercado. Ao Estado, apenas caberia o papel de garantir a ordem e a segurança, para a manutenção da propriedade privada (CUNHA & CUNHA, 2008, p.11).

O ideário liberal de então, pontificado pelos economistas clássicos (e que será retomado a partir da década de 1970 sob a alcunha de “neoliberalismo”), apregoava uma economia capitalista utópica, ideal, uma economia de pleno emprego dos recursos e da força de trabalho, autorregulável, geradora e propagadora de riquezas, mas que não encontrava respaldo na realidade.

Como considerou Keynes (2013, p.29), dois séculos mais tarde, referindo-se a esses economistas clássicos, como também aos seus coetâneos cujas análises econômicas fundamentavam-se na mesma matriz teórica clássica, eles eram:

(...) cândidos, que, tendo se retirado do mundo para cultivarem seus jardins, nos ensinam que tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis (...). Pode ser que a teoria clássica represente o caminho que desejaríamos que a nossa economia seguisse. Mas supor que na realidade ela se comporta desse modo é supor que todas as dificuldades foram afastadas.

Keynes, portanto, já no século XX, chama a atenção para algo que desde o princípio do capitalismo se mostrava patente, qual seja, que o pensamento ortodoxo, apesar de sua boa estética, não reflete a realidade do funcionamento econômico. Por isso, ao contrário do que

propunha a concepção liberal, no lugar da plena utilização dos recursos e do pleno emprego da força de trabalho, o que de fato se propagou, concomitantemente ao desenvolvimento da incipiente indústria capitalista, foram o pauperismo e a miséria da parcela da população sem posses, nas sociedades europeias ocidentais dos séculos XVIII e XIX.

O advento da Revolução Industrial implicara novas formas de produção e de participação no processo produtivo. Estas novas relações eram essencialmente opressoras, instigadas pelo espírito maximizador dos capitalistas e favorecidas pela falta de qualquer controle, por parte do Estado, das atividades produtivas e laborais. Infligia-se, desse modo, à população um grave estado de vulnerabilidade1 social. Como destaca Castel (2011, p.37), ao expor a situação do operariado na indústria nascente, havia naquele período:

1O termo “vulnerabilidade” aparece referenciado em diversos autores afins à temática do social, bem como

referido em documentos de política social e nas próprias definições adotadas por diversos programas no que concerne ao seu público-alvo e objetivos. O conceito de vulnerabilidade, porém, não encontra pleno consenso na literatura. Em vista disso, optou-se neste estudo por adotar uma abordagem mais ampla para tal conceito, consoante à Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, assumida pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em suas ações socioassistenciais. Para melhor esclarecimento acerca dessa concepção, segue trecho de documento elaborado pelo MDS:

“Não há um significado único para o termo vulnerabilidade. (...) Por esse motivo, diversas teorias, amparadas em diferentes percepções do mundo social e, portanto, com objetivos analíticos diferentes, foram desenvolvidas.

(...) As situações de vulnerabilidade podem decorrer: da pobreza, privação, ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, intempérie ou calamidade, fragilização de vínculos afetivos e de pertencimento social decorrentes de discriminações etárias, étnicas, de gênero, relacionadas à sexualidade, deficiência, entre outros, a que estão expostas famílias e indivíduos, e que dificultam seu acesso aos direitos e exigem proteção social do Estado. Com intuito de subsidiar a reflexão sobre o conceito de vulnerabilidade adotado pela PNAS/2004, seguem algumas considerações de diferentes autorias:

Kaztman: o autor elabora a concepção “ativos-vulnerabilidades” – a qual é utilizada pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe - CEPAL. Segundo essa compreensão, as vulnerabilidades resultam da relação entre duas variáveis: estrutura de oportunidades e capacidades dos lugares (territórios). Compreende-se por estrutura de oportunidades a composição entre: a) mercado; b) sociedade; e c) Estado. Já o conceito de capacidades dos lugares (territórios) diz respeito às possibilidades de acesso a condições habitacionais, sanitárias, de transporte, serviços públicos, entre outros - fatores que incidem diretamente no acesso diferencial à informação e às oportunidades e, consequentemente, no acesso a direitos. Nessa perspectiva, são as diferentes combinações entre ambas variáveis que originam tipos e graus de vulnerabilidade diferenciados. Os atores sociais, portanto, não dependem somente de sua capacidade de gerenciamento de ativos, mas de um contexto histórico, econômico e social formado de oportunidades e precariedades, bem como da intermediação/proteção da estrutura estatal para que consigam usufruir dos diferentes tipos de ativo necessários para responder às situações de vulnerabilidade.

Dieese – Unicamp: segundo o DIEESE, o termo vulnerabilidade define a zona intermediária instável que conjuga a precariedade do trabalho, a fragilidade dos suportes de proximidade e a falta de proteção social. Assim, se ocorrer algo como uma crise econômica, o aumento do desemprego e a generalização do subemprego, a zona de vulnerabilidade dilata-se, avança sobre a zona de integração e gera a desfiliação. As situações de vulnerabilidade social devem ser analisadas a partir da existência ou não, por parte dos indivíduos ou das famílias, de ativos disponíveis e capazes de enfrentar determinadas situações de risco. Logo, a vulnerabilidade de um indivíduo, família ou grupos sociais refere-se à maior ou menor capacidade de controlar as forças que afetam seu bem-estar, ou seja, a posse ou controle de ativos que constituem os recursos requeridos para o aproveitamento das oportunidades propiciadas pelo Estado, mercado ou sociedade: a) físicos – meios

(...) uma vulnerabilidade de massa que afeta grandes camadas populares. Em particular, a maior parte dos assalariados de então era condenada a uma precariedade permanente e a uma insegurança cotidiana pela ausência de um mercado organizado de trabalho. Os mais vulneráveis desses vulneráveis oscilavam entre a mendicância e a vagabundagem (...).

Segundo o autor, a doutrina da Revolução Francesa, que se seguiu à Revolução Industrial, servindo-lhe de aparato ideológico, difundia a tese de que o livre acesso ao trabalho (isto é, a um mercado de trabalho não regulado) melhoraria a condição de vida dos trabalhadores, permitindo que todos encontrassem trabalho e, ainda, possibilitaria que o capitalismo incipiente se desenvolvesse de forma livre pela própria dinâmica de funcionamento do mercado. Entretanto, no que concerne aos trabalhadores, isto não ocorreu (CASTEL, 2010, p.65-66).

Deste modo, no limiar do capitalismo2, no lugar da promessa dos clássicos ou da esperança propagada pela Revolução Francesa, o que se assistia era a uma deterioração das já antes deterioradas condições de trabalho dos trabalhadores urbanos da época. A diferença

para o bem-estar – moradia, bens duráveis, poupança, crédito; b) humanos: trabalho, saúde, educação (capacidade física e qualificação para o trabalho); e c) sociais – redes de reciprocidade, confiança, contatos e acessos à informação. Assim, a condição de vulnerabilidade deve considerar a situação das pessoas e famílias a partir dos seguintes elementos: a inserção e estabilidade no mercado de trabalho, a debilidade de suas relações sociais e, por fim, o grau de regularidade e de qualidade de acesso aos serviços públicos ou outras formas de proteção social.

Marandola Jr. e Hogan: o termo vulnerabilidade é chamado para compor estudos sobre a pobreza enquanto um novo conceito forte, na esteira dos utilizados no passado, tais como: exclusão/inclusão, marginalidade,

apartheid, periferização, segregação, dependência, entre outros. Enfatiza-se também que o termo vulnerabilidade tem sido empregado para tratar do cerceamento dos bens de cidadania – seja em função de uma diminuição de renda ou de perda de capital social.

A partir desse breve percurso sobre a concepção de vulnerabilidade, pode-se afirmar que a abordagem adotada pela PNAS, ao dialogar com as análises mencionadas, possibilita à assistência social uma visão menos determinista e mais complexa das situações de pobreza, pois dá um sentido dinâmico para o estudo das desigualdades, a partir da identificação de zonas de vulnerabilidades, possibilitando um maior poder explicativo de uma realidade social, composta por uma heterogeneidade de situações de desproteção social. Nessa direção, pode-se afirmar: a) A vulnerabilidade não é sinônimo de pobreza. A pobreza é uma condição que agrava a vulnerabilidade vivenciada pelas famílias; b) A vulnerabilidade não é um estado, uma condição dada, mas uma zona instável que as famílias podem atravessar, nela recair ou nela permanecer ao longo de sua história; c) A vulnerabilidade é um fenômeno complexo e multifacetado, não se manifestando da mesma forma, o que exige uma análise especializada para sua apreensão e respostas intersetoriais para seu enfrentamento; d) A vulnerabilidade, se não compreendida e enfrentada, tende a gerar ciclos intergeracionais de reprodução das situações de vulnerabilidade vivenciadas; e) As situações de vulnerabilidade social não prevenidas ou enfrentadas tendem a tornar-se uma situação de risco” (MDS, 2012, p.12-15).

2 O limiar do capitalismo, enquanto sistema hegemônico, equivale ao advento da indústria, a partir do século

XVIII. A indústria capitalista comanda o capitalismo durante os séculos XVIII e XIX. Ao fim do século XIX, será o capital a juros que predominará no capitalismo, até a Crise de 1929. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, como próprio resultado do pós-Guerra, o capitalismo industrial retomará a dominância no sistema, atingindo seu ápice nos trinta anos seguintes ao término da Segunda Guerra, período conhecido como os “anos gloriosos” ou “anos de ouro” do capitalismo.

é que, como alega Castel (2010, p.66-67), com o advento da indústria capitalista e do livre mercado de trabalho, passava a existir o contrato de trabalho, uma ordem contratual, que legitimava a exploração do trabalhador por parte do capitalista, sem conceder nenhum estatuto jurídico ao trabalho.

A liberdade do então novo livre mercado de trabalho do capitalismo nascente submetia a população a um estado de precariedade inexorável, implicando sua crescente exploração, pauperização e miséria. Sob este cenário, emerge a questão social, que, nas palavras de Castel (1995, p.18), trata-se de:

(...) uma aporia [dilema] fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. Ela é um desafio que interroga, que põe em questão a capacidade de uma sociedade de existir enquanto um conjunto ligado por relações de interdependência.3 (Tradução nossa)

A questão social, portanto, coloca-se diante do risco de fratura social, da ameaça de rompimento da coesão de uma sociedade, quando esta se encontra abalada em seu alicerce, enquanto um conjunto de pessoas vinculadas por interdependências. Desta maneira, o problema da questão social passa a se evidenciar quando a existência crescente de indivíduos não incorporados (ou mal incorporados) ao mercado de trabalho engendra pressões sociais, ameaçando a estabilidade do corpo social (CODES, 2008, p.7).

Uma das formas pelas quais tais pressões se manifestavam consistia nas frequentes greves e conflitos que tiveram lugar nas sociedades da Europa Ocidental, quando da indústria capitalista emergente. Marx e Engels (2002, p.37) descrevem a natureza dos embates que então ocorriam:

Inicialmente, operários entram em luta isoladamente; em seguida, operários de um setor industrial, em um mesmo local, contra um mesmo burguês, que os explora diretamente. Dirigem seus ataques não somente contra as relações burguesas de produção; dirigem-nos também contra os próprios instrumentos de produção; destroem as mercadorias estrangeiras concorrentes, quebram máquinas, incendeiam fábricas (...).

Sob este contexto, e por ele, surgiram e se desenvolveram os movimentos revolucionários de caráter socialista, ameaçando a recém-conquistada hegemonia do

3“(...) une aporie fondamentale sur laquelle une société expérimente l’énigme de sa cohésion et tente de

conjurer le risque de sa fracture. Elle est un défi qui interroge, remet en question la capacité d’une société à exister comme un ensemble lié par des relations d’interdépendance.” (CASTEL, 1995, p.18).

capitalismo, colocando a sociedade diante do risco de sua fissura, ao questionar-se de sua capacidade em sustentar os vínculos de interdependência das relações que a fundamentam.

Todas as sociedades repousaram no antagonismo entre classes opressoras e oprimidas. Mas, para se oprimir uma classe, é necessário assegurar-lhe condições para que possa, no mínimo, prolongar sua existência servil. (...) O operário moderno em vez de elevar-se com o progresso da indústria, decai cada vez mais, abaixo das condições de sua própria classe. O operário transforma-se em indigente, e a miséria cresce mais rápido do que a população e a riqueza. Evidencia-se, assim, que a burguesia é incapaz de permanecer por mais tempo como classe dominante (...). É incapaz de dominar, pois é incapaz de assegurar a seu escravo a própria existência no âmbito da escravidão, porquanto é compelida a precipitá-lo numa situação em que tem que alimentá-lo em vez de por ele ser alimentada. (MARX & ENGELS, 2002, p.44)

Em suma, a questão social tem seu âmago na questão laboral. Emerge da exploração do capitalismo sobre a classe trabalhadora urbana, ao imprimir-lhe uma forte degradação, não apenas no que concerne aos aspectos do trabalho, mas também de sua condição social e humana, situando-a em uma posição de profunda vulnerabilidade, ampliando seu pauperismo e sua miséria.