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1. A QUESTÃO SOCIAL DO SOCIAL

1.3. O papel do social

A partir do compromisso social, o Estado é levado a assumir um crescente papel social que se solidifica por meio de regulações do trabalho e das proteções, de maneira a assegurar o caráter universal e incondicional da cidadania ao conjunto da população, concorrendo para a manutenção do elo da sociedade. Manutenção essa que fora um resultado de todo o processo e não a sua motivação. Por este papel que lhe é colocado, o Estado desloca o social para o domínio do público, alçando-o ao patamar de política. Em consequência, a proteção social angaria a configuração de política pública, descolando-se da esfera da benevolência primária e familiar de assistência aos necessitados.

Sabe-se que todas as sociedades humanas desenvolveram formas, em diferentes épocas e sob distintas concepções, de enfrentar e lidar com as vicissitudes e riscos de natureza biológica ou social da vida. Estas formas representam os sistemas de proteção social, de menor ou maior grau de institucionalização, existentes nas diferentes sociedades e períodos históricos (SILVA; YAZBEK; GIOVANNI, 2012, p.17).

Um primeiro gênero de tais sistemas equivale às proteções primárias e locais, cujo encargo cabe ao entorno social imediato e adjacente, no qual instâncias especializadas, de

caráter público (o Estado) ou privado (o mercado), não intervêm. Neste sentido, quando não plenamente institucionalizada, a proteção social corresponde, segundo Castel (1995, p.34), ao conceito de sociabilidade primária (sociabilité primaire), que corresponde a:

(...) sistemas de regras que ligam diretamente os membros de um grupo à base de seu pertencimento familiar, de vizinhança, de trabalho, tecendo redes de interdependência sem mediação de instituições específicas.5 (Tradução nossa). Como o autor pontifica, a partir do conceito de sociabilidade primária, seria lícito pensar a existência de sociedades sem o social. Em outras palavras, sociedades onde instituições especializadas de proteção social estivessem ausentes e o Estado, embora existente, não exercesse a função de agente protetor (CASTEL, 2010, p.146). Neste caso, a proteção dos membros mais vulneráveis dependeria tão somente da generosidade e filantropia de seus próximos. Ao longo da história, a sociabilidade primária foi mantida pela tradição e exercida pela família, vizinhos e amigos.

Posteriormente, o desenvolvimento das sociedades e a complexificação das relações sociais levaram a proteção a exceder os vínculos primários, pois ela adquire um caráter social mais amplo e a sociedade passa a agir sobre si mesma para proteger-se das contingências. Neste sentido, como aborda Castel (1995, p.41), pode-se falar de uma sociabilidade secundária (sociabilité secondaire), uma vez que se tratam de sistemas desalinhados dos vínculos familiares e de proximidade. Assim, emerge o caráter social das entidades religiosas e filantrópicas que também passam a encarregar-se das proteções em diversas sociedades.

Pode-se considerar que os sistemas de proteção social desenvolvidos através da organização dos trabalhadores nas primeiras etapas da indústria capitalista situam-se entre a sociabilidade primária e a secundária, pois originam-se nas relações de proximidade do trabalho, mas também as excedem por meio da progressiva expansão da cobertura das proteções aos trabalhadores de cada setor industrial, via sindicatos e organismos coletivos, segundo o grau de desenvolvimento organizativo dessas entidades.

5 “(...) les systèmes de règles liant directement les membres d’un groupe sur la base de leur appartenance

familiale, de voisinage, de travail, et tissant des réseaux d’interdépendances sans médiation de institutions spécifiques.” (CASTEL, 1995, p.34).

Atualmente, as sociabilidades primária e secundária se configuram na atuação da sociedade civil (uma sociabilidade terciária, poder-se-ia dizer), que engloba as entidades de generosidade primária (familiar e de proximidade), mas também aquelas de generosidade privada ou mercantil (instituições sociais privadas, com ou sem fins lucrativos).

De acordo com Castel (1995), a partir do desprendimento dos vínculos primários de generosidade, formas de proteção cada vez mais complexas vão se desenvolvendo e engendrando estruturas assistenciais mais sofisticadas. Deste modo, nas sociedades contemporâneas capitalistas, a proteção social adquire uma crescente formalização, através de “sistemas e organizações complexas totalmente dedicadas a prever e sanar riscos de natureza biológica (...) bem como riscos de natureza social”, como expressam Silva, Yazbek e Giovanni (2012, p.18).

A formalização e institucionalização do social retira-o, portanto, do puro domínio da generosidade e passa a incluí-lo, progressivamente, no âmbito do direito. Este processo ocorre sob a condução do Estado, que ao assumir o caráter de provedor e garantidor de direitos e proteções, a partir do compromisso social que se consolida nos anos gloriosos, encarrega-se da promoção do social nas sociedades. Deste modo, o Estado em seu papel social assegura para cada indivíduo o direito coletivo adquirido.

O Estado Social que se solidifica nos anos de ouro do capitalismo, tendo por função fundamental, segundo a abordagem de Castel (2010), zelar pela coesão da sociedade, busca rechaçar os riscos que a ameaçam de fratura, mediante a proteção a seus membros mais vulneráveis. Contudo, para exercer devidamente esta função, promovendo proteções aos indivíduos diante das eventualidades de ordem natural ou social da vida, foi preciso que instrumentos específicos fossem desenvolvidos, aptos a atender as diferentes necessidades sociais. Estes aparatos concorreram tanto para formalizar e institucionalizar o social, quanto decorreram de sua própria complexificação.

De acordo com Castel (2010), a complexidade do social se corrobora pela heterogeneidade das populações atendidas. Tais populações se definem, essencialmente, pela forma como se vinculam ao trabalho, distinguindo-se em duas categorias basilares: válidos e inválidos.

Todos aqueles impossibilitados de trabalhar, por limitações físicas, etárias ou mentais – os inválidos – encontram-se isentos desta obrigação, por possuírem motivos socialmente considerados legítimos. A estes, a proteção social se coloca como um imperativo moral da sociedade, que entende a necessidade de protegê-los, desde seus mais remotos sistemas de proteção. Assim, a emergência do Estado Social, para este segmento de assistidos, não fez mais que institucionalizar a proteção, que formalizar a assistência, legalizando no âmbito do direito (retirando-a, por conseguinte, da esfera da mera generosidade e da dependência) o que já se encontrava desde antes socialmente legitimado.

Por outro lado, no que concerne a todos aqueles que apesar de não possuírem restrições (físicas, etárias ou mentais) para trabalhar, não conseguem fazê-lo ou o fazem sob condições extremamente precárias – os válidos – e que, por isso, não possuem recursos suficientes para subsistirem por si mesmos e tampouco para fazerem frente às vicissitudes da vida, tal legitimidade social não se verifica. Por esta razão, a promoção do social para os pobres e indigentes aptos ao trabalho se revelou uma tarefa de árdua concretização para o Estado Social. Para esse segmento da população, precisou-se desenvolver uma nova categoria de social, com mecanismos diferentes de proteção, distintos da assistência clássica destinada aos inválidos. Tais mecanismos fundaram-se nas proteções e direitos sociais vinculados ao trabalho, consubstanciados no estatuto do emprego e nos sistemas de proteção social, que foram o alicerce do compromisso estabelecido no apogeu do capitalismo.

Entretanto, esta então nova modalidade do social, ao incorporar o trabalho, toca em um ponto nevrálgico do ideário liberal capitalista, que é a premissa de livre funcionamento do mercado. Não por outro motivo, a tarefa de institucionalizar esta modalidade foi muito mais laboriosa ao Estado Social e, por isso, de realização mais tardia que a modalidade clássica de assistência. Afinal, a assistência clássica – direcionada aos inválidos – não detinha qualquer dificuldade maior à sua implantação, pois, além de moralmente legitimada, não se imiscuía ao econômico, uma vez que seus beneficiários tratam-se justamente daqueles isentos da obrigação de trabalhar (CASTEL, 2010). Portanto, aos assistidos desprendem-se diferentes tratamentos, em virtude das distintas maneiras como estejam colocados em relação ao trabalho.

Ainda de acordo com Castel (2010), a despeito da objeção capitalista quanto à nova categoria do social, o Estado conseguiu promover as proteções para a totalidade da

população. Foi possível realizar tal feito em função da força que o Estado Social adquiriu em sua construção. Ele se constituiu, no auge do capitalismo, enquanto um Estado-nação6 sólido e autônomo, responsável pelo desenvolvimento econômico e social da sociedade.

Semelhante responsabilidade assumida pelo Estado Social, imputa-lhe um papel social mais amplo, que extravasa a promoção das proteções e assistências sociais. Por este motivo, o Estado Social incumbe-se também da oferta de bens e serviços públicos, que, pela sua própria natureza, são indispensáveis ao desenvolvimento social e de interesse geral da sociedade, cuja execução plena escapa à esfera privada, por esta dedicar-se a interesses particulares. Tais bens e serviços são tradicionalmente identificados nas áreas de educação e de saúde e constituem elementos de alta relevância no que tange, para além do desenvolvimento socioeconômico, à função do Estado de manutenção da coesão social. Ao promover um sistema de bens e serviços públicos, o Estado exerce um importante papel social, pois complementa o sistema de proteção que oferece. Pela proteção social, os indivíduos têm proteções vinculadas ao seu trabalho, a seu ciclo de vida e à assistência. Pela oferta pública, os indivíduos têm acesso a bens e serviços coletivos, de crucial importância social. Tanto o sistema de proteção social como os bens e serviços públicos funcionam, conjunta e complementarmente, como elementos fundadores da cidadania social (CASTEL, 2010, p.157).

O Estado Social, assim configurado (enquanto mediador do pacto do capitalismo e promotor de proteções, bens e serviços sociais), encontrou sua primeira e mais acabada expressão nas sociedades europeias ocidentais, em virtude do desenvolvimento industrial pioneiro, da mobilização e organização trabalhista que os operários alcançaram e da posição política e econômica privilegiada em que se encontravam em relação ao mundo. Tal configuração do Estado Social, contudo, não é uma regra para todos os continentes e regiões do planeta. Do mesmo modo como é possível pensar em sociedades sem o social, anteriores ao advento do Estado de Bem-Estar, baseadas unicamente em sociabilidades primárias, há ainda hodiernamente sociedades onde não se manifesta a presença ou mesmo a existência deste modelo de Estado, como em alguns países africanos, conforme Castel (2010). Na América Latina, alguns países, como Argentina e mesmo o Brasil, desenvolveram sistemas

6 O Estado Social apoia-se no Estado-nação construído no auge do capitalismo, mas, do ponto de vista do

de proteção social mais complexos7, embora não equiparáveis aos europeus. Por conseguinte, pode-se inferir que o Estado Social se edifica por um processo histórico, vinculado às especificidades sociais, políticas, econômicas e até culturais sob as quais ele é erigido, possuindo, por esta razão, estrutura, força e amplitude distintas entre as diferentes sociedades.