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1. A QUESTÃO SOCIAL DO SOCIAL

1.2. O compromisso social

Diante da questão social que se impunha, o desenvolvimento dos sistemas de proteção social ganhou ênfase no mundo do trabalho, como instrumentos de redução da situação precária em que viviam os trabalhadores. Tal desenvolvimento tem sua base na iniciativa dos próprios trabalhadores assalariados vinculados à indústria, que se “organizaram na forma de ‘ajuda mútua’, buscando promover a cobertura de riscos tais como: a doença, o desemprego, a morte e a velhice” (MARQUES, 1997, p.14), de maneira a amenizar a demasiada precariedade que lhes atingia. Nesse momento, nem o Estado e tampouco os empregadores contribuíam com mecanismos significativos de proteção. Os trabalhadores por seu poder organizativo, principalmente através dos sindicatos, promoviam sua “autoproteção”.

Como esclarece Marques (1997, p. 36), os mecanismos primários de proteção social desenvolvidos no âmbito das organizações sindicais procuravam realizar dois objetivos precípuos:

De um lado, tratavam de preencher o vazio ocasionado pela destruição das antigas formas de solidariedade, associadas às corporações de ofício e à vida no campo, provocado pelo rápido crescimento da indústria e das cidades. Naquele momento, dada a situação em que viviam os trabalhadores, mesmo a família e a vizinhança não conseguiam se colocar como efetiva rede de proteção. De outro lado, serviam como garantia mínima para que os trabalhadores não ficassem completamente à mercê das condições, de trabalho e salário, oferecidas pelos capitalistas.

Isto posto, tem-se que o grau do poder organizativo dos operários, expresso pelas organizações sindicais, refletia diretamente tanto a existência quanto a capacidade de cobertura promovida pelos instrumentos rudimentares de proteção social que puderam ser construídos pelos trabalhadores ainda nos estágios incipientes do capitalismo, nos séculos XVIII e XIX.

Segundo Marques (1997), o avanço e a expansão dessa ação organizada dos trabalhadores, através dos sindicatos e dos mecanismos de proteção, levam o Estado a progressivamente encarregar-se da incumbência de promover as proteções sociais, a partir do início do século XX. Por conseguinte, o papel social que o Estado passará a assumir, o que lhe valerá o adjetivo de “Social”, deriva essencialmente da pressão que a organização trabalhista e sua presença política exercem nas sociedades.

Ao atribuir-se um papel social crescente, o Estado é colocado como uma espécie de intermediador, do que Castel (2010) chama de “compromisso social”. Trata-se de um tipo de “pacto” implícito que se celebra entre capitalistas e trabalhadores. Este pacto se apresentou como uma opção reformista, não revolucionária (ou, ainda, antirrevolucionária), para equilibrar os interesses do capital e do trabalho. Tal pacto consistia na mudança do status do trabalho (que será então incorporado ao âmbito do direito) e na institucionalização da proteção social. Sendo assim, esse compromisso social que se engendra no interior do capitalismo, a partir do início do século XX e que se consolida no período dos “anos gloriosos”, nas sociedades europeias ocidentais, debilitou as forças revolucionárias, assim como enfraqueceu a dicotomia capital x trabalho, burguesia x operariado. A diferenciação entre grupos e segmentos sociais passou a centrar-se essencialmente nos diferenciais de salários e não mais em classes antagônicas (CASTEL, 2010, p.19).

Além disso, tal compromisso concorreu para a própria formação do assalariado, ao tornar o assalariamento “atraente” ao trabalhador – nas palavras de Marques (1997, p.38) – em função da mudança no status do trabalho e das proteções que passam a ser asseguradas pelo Estado, o que “possibilitou a transformação em massa da força de trabalho despossuída

em trabalho assalariado” (LENHARDT & OFFE, 1984, p.17). Estruturou-se, assim, uma sociedade salarial. Nas palavras de Castel (2011b, p.285), a sociedade salarial:

(...) não é somente uma sociedade na qual a maioria da população é assalariada, ainda que seja verdade. (...) Mas uma sociedade salarial é sobretudo uma sociedade na qual a maioria dos sujeitos sociais têm sua inserção social relacionada ao lugar que ocupam no salariado, ou seja, não somente sua renda, mas também seu status, sua proteção, sua identidade.

Segundo Castel (2010), o capitalismo, durante os referidos “anos gloriosos” (entre o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos de 1970), alcançou o seu apogeu e obteve êxito em promover este tipo de compromisso social, que fora capaz de amenizar o peso das desigualdades e controlar os abusos patronais. A essência das relações entre capitalistas e trabalhadores, todavia, não se alterou, mas passaram a ser mediadas por regras, direitos e deveres. Tal compromisso tornou-se possível pelo estabelecimento de uma nova condição salarial e laboral para os trabalhadores, consubstanciada no estatuto do emprego e na proteção social, que passava a lhes conceder garantias fundamentais.

A consolidação e consistência dessa nova condição laboral, doravante apoiada e assegurada pelo estatuto do emprego e pela proteção, basearam-se na estruturação coletiva dos trabalhadores. Ocorrera um processo de “desindividualização”, ou “coletivização”, como nomeia Castel (2010, p.24). O “coletivo” era o seu alicerce: os coletivos sindicais, as convenções e regulações coletivas, e, principalmente, o Estado Social, o “coletivo por excelência”, nas palavras do autor, orquestrando tal aparato, concedendo um aspecto legal ao equilíbrio que então se estabelecia entre os distintos interesses do capital e do trabalho e constituindo-se em peso favorável ao trabalho para nivelar tal relação.

Como considera Castel (2010), o trabalhador isoladamente, assim como o seu trabalho, não possuía qualquer importância frente ao poder do capital.Por isso, a organização coletiva dos trabalhadores foi o elemento crucial na transformação que sua própria condição de trabalho alcançou no período dos anos gloriosos. A partir desse período, ao inserir-se “nos sistemas de garantias coletivas do estatuto do emprego e da proteção social”4, o trabalhador deixava de estar em absoluta desvantagem ante sua relação com o capitalista. Portanto, por intermédio do direito do trabalho que então lhe embasara, o trabalhador extravasava o domínio do mero utilitarismo econômico infligido pelos capitalistas e ascendia à esfera da

cidadania social, através das proteções e direitos aos quais se encontrava doravante vinculado.

O compromisso social estabelecido, portanto, alcançava repelir a ameaça de fratura da sociedade, equilibrando os interesses em disputa. Sendo assim, ao Estado, enquanto intermediador desse pacto, fora incumbido o papel de assegurar a coesão da sociedade, diante da questão social com a qual se defrontava. Tal papel é exercido pelo Estado pela via do direito, ao inserir o trabalho e a proteção social neste âmbito. Desta forma, o Estado Social que se consolida nesse compromisso fundamenta-se sob um princípio universalista, da promoção incondicional de direitos (CASTEL, 2010).

Este compromisso social, que possibilitou ao trabalho e à proteção social tornarem- se matéria de direito, teve sua intermediação e consolidação sob incumbência do Estado. Tal tarefa concedeu a ele a atribuição de principal agente econômico e social nos países capitalistas. Logo, outorgou-se ao Estado uma função cada vez maior na determinação das trajetórias da economia e da proteção social nas sociedades modernas. O econômico e o social tornaram-se, em consequência, objetos de política.

A maior determinação nos rumos da economia e da proteção social encontravam respaldo teórico na influência do pensamento keynesiano. A construção teórica de Keynes defendia um papel-chave para a atuação estatal no estímulo ao crescimento econômico e na geração de empregos, como saída para o colapso no qual o sistema capitalista entrara após a Crise de 1929. Tal evento e suas consequências no cenário mundial colocaram a credibilidade da doutrina liberal ortodoxa em xeque. Diante da ineficácia do ideário ortodoxo em propor respostas a tais problemas, as propostas de Keynes ganharam espaço, por fornecer uma solução para a crise tanto na esfera teórica da economia quanto no campo político. Assim, sob a validade das propostas keynesianas, o Estado e sua função social ganharam força, consolidando-se através do compromisso social no período que se seguiu ao término da Segunda Guerra (BURGINSKI, 2013).

Assim, por recapitulação, infere-se que o compromisso social, que se estabelece a partir do início do século XX e que se consolida nos anos de ouro do capitalismo, tendo o Estado por intermediário, tem sua gênese nos conflitos entre capital e trabalho na defesa de seus distintos interesses. Como produto do processo histórico de lutas e mobilização dos trabalhadores, o trabalho alcançará um novo status, assim como as proteções sociais serão

progressivamente institucionalizadas, ao serem assumidas pelo Estado. De maneira que o estatuto do emprego e os sistemas de proteção social, que se firmarão sob a tutela do Estado Social, devem ser considerados como conquistas dos trabalhadores e dos movimentos sociais em prol de melhores condições de vida e de trabalho (MARQUES, 1997, p.46).

Contudo, importa frisar que apesar de constituir-se como resultado de embates entre as classes burguesa e proletária e dos movimentos e organização dos trabalhadores, os produtos gerados pelo compromisso social – quais sejam, a mudança do status do trabalho e a institucionalização da proteção social – prestar-se-ão a favorecer o desenvolvimento tanto do capitalismo industrial quanto do assalariado. Assim, o direito do trabalho e as proteções sociais institucionalizadas serão, simultaneamente, “produtos” da mobilização dos assalariados da indústria e também “insumos” da própria condição laboral e legal que concorrerá para a consolidação da sociedade salarial e do desenvolvimento da indústria.