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SUMÁRIO

3. O MICROCRÉDITO PRODUTIVO ORIENTADO: UM PANORAMA

3.4 A crise do microcrédito

De forma paralela a seu crescimento, diversas pesquisas levaram ao questionamento do microcrédito como ferramenta de superação da pobreza. A focalização dos programas, as taxas de juros e o impacto dos programas de microcrédito têm sido tema de numerosas pesquisas internacionais, sem que um consenso tenha sido atingido.

O microcrédito tem como uma das suas características fundamentais o foco nas populações de baixa renda. Diversos autores sustentam que a busca de sustentabilidade por meio do crescimento não levou as instituições de microfinanças a desviar-se de sua missão institucional de buscar a melhoria econômica da população de baixa renda34. Todavia, a prática mostra que os programas de microcrédito frequentemente não têm a maioria de seus clientes abaixo da linha da pobreza. Husle e Mosley (1996, p.118-120), em estudo que incluiu 13 instituições de microfinanças na Ásia, África e América Latina, apontaram que apenas quatro possuíam a maioria de seus clientes abaixo da linha da pobreza: o Banco Grameen, o Bangladesh Rural Advancement (BRAC), e o Thana Resource Development and Employment Programme (TRDEP), todos de Bangladesh, e o Malawi Mudzi Fund (MMF), do Malawi. Quando da realização da pesquisa, o TRDEP afirmou que seu programa não tinha como objetivo atingir o segmento em situação de pobreza extrema.

Morduch (1998, p.4), tomando como base os dados da pesquisa realizada por Pitt e Khandker (1996) em 1798 famílias, em 87 aldeias de Bangladesh, nos anos de 1991 e 1992, verificou que 30% dos tomadores de crédito superavam o limite máximo de terras admitido para inclusão no programa do Banco Grameen. O elevado desvio do público-alvo é associado ao acelerado crescimento do Banco Grameen no período 1985-1991, quando o banco ampliou sua cobertura de 3.666 para 25.248 aldeias (MORDUCH, 1998, p.12).

Para Hulme e Mosley (1996), Morduch (1998, p.4) e para o Grupo Consultivo de Assistência aos Pobres (2001, p.1-2), as instituições tendem a concentrar seus esforços nos moderadamente pobres e a deixar de atender ao estrato de extrema pobreza. Os clientes com múltiplas fontes de renda teriam preferencia em razão de poderem assegurar o pagamento mesmo que as atividades financiadas não gerassem recursos suficientes para o pagamento. (CONSULTATIVE GROUP TO ASSIST THE POOR, 2001, p.1 - 2).

Um evento específico gerou uma crise de confiança nas instituições de microcrédito: a oferta pública de ações do Banco Compartamos, do México, em 2007. O processo da oferta

pública de ações revelou a elevada remuneração de seus executivos seniores, e os juros elevados - que atingiam 195% ao ano – cobrados de seus clientes de baixa renda, em sua maioria mulheres (ROODMAN, 2011). O episódio gerou severas críticas aos excessos praticados no modelo financeiro com fins lucrativos (BATEMAN; CHANG, 2012, p.15). Com o crescimento dos programas de microcrédito em alguns países da América Latina, cresceu a competição entre as instituições de microcrédito, com preços mais competitivos para seus serviços; contudo, também ocorreu um processo de superposição dos empréstimos, onde os clientes aderiam a múltiplas instituições de microfinanças, em uma situação de superendividamento, onde o pagamento de um empréstimo é financiado com o empréstimo de outra instituição financeira (CHRISTEN, 2001, p.22).

Em 2008, crises de superendividamento e inadimplência massiva levam à falência e à fusão de diversas instituições de microcrédito no Marrocos, na Nicarágua e no Paquistão. Em 2010, uma nova crise, de proporções ainda maiores: o governo do estado indiano de Andhra Pradesh - o maior mercado de microcrédito do mundo35 - responsabilizou as instituições de microcrédito pelo uso de práticas coercitivas na cobrança de dívidas que teriam levado 57 fazendeiros ao suicídio, e promulgou uma regulamentação estadual, que determinou que o pagamento das parcelas semanais deveria ser feito na presença de uma autoridade. O uso de práticas coercitivas na cobrança de dívidas de devedores ou suas famílias tornou-se ainda crime, punível com prisão por até três anos (SCHMIDT, 2010, p.3). Isto levou, na prática, a que muitos devedores de instituições de microcrédito não pagassem suas dívidas a estas instituições, causando uma grave crise de liquidez e a não-concessão de novos créditos (BANERJEE; DUFLO, 2011, p. 169). A intervenção do Banco Central indiano (Reserve Bank of India) assegurou a manutenção de fundos para evitar o contágio e o colapso do sistema financeiro (RESERVE BANK OF INDIA, 2010).

De Quidt, Fetzer e Ghatak (2012) apontam as seguintes causas para a crise do microcrédito na Índia:

a) o rápido crescimento levou a uma perda na qualidade do portfólio com a sobreposição de empréstimos, a concentração espacial de operações de empréstimo em uma mesma região geográfica e reduzidos incentivos para a educação financeira dos clientes;

35 Das dez maiores instituições de microcrédito do mundo, quatro são indianas, e destas, três estão no estado

indiano de Andhra Pradesh, inclusive a SKS, hoje considerada a maior instituição de microfinanças do mundo. (SCHMIDT, 2010, p.4) O mercado indiano de microcrédito é estimado 4.7 bilhões de dólares em 2013. (MIX MARKET, 2013).

b) a ausência de regulação deixou os tomadores de crédito sem proteção frente à [cobranças] coercitivas realizadas por algumas instituições [de microcrédito].

c) a regulação financeira em vigor leva a que as instituições de microcrédito não podem diversificar seu portfólio de produtos ou suas fontes de capital (por exemplo, receber depósitos de poupança), tornando-os altamente dependentes de empréstimos bancários e operações de financiamento de capital próprio que demandam retorno de curto prazo de seus investimentos; d) elevada rotatividade de pessoal e esquemas inadequados de incentivo [aceleraram] a substituição de um portfólio de qualidade [de clientes] por um portfólio de volume, negligenciando ações de capacitação (como por exemplo a educação financeira dos clientes);

e) O marco regulatório existente inibe o desenvolvimento das instituições de microcrédito para provedores integrais de serviços financeiros, enfatizando excessivamente o papel do microcrédito. (DE QUIDT; FETZER; GHATAK, 2012, p.5)

Os riscos provocados pela sobreposição de empréstimos ao sistema de microfinanças destacam a importância da regulação específica neste setor36. Um comitê do Banco Central da Índia (RBI) desenvolveu diversas recomendações para o setor. Todavia, as dificuldades para a supervisão levaram o RBI a recomendar, em novembro de 2013, uma estrutura de auto- regulação para o setor, realizada por associação do setor não-bancário acreditada e baseada em diretrizes e em um código de conduta (RESERVE BANK OF INDIA, 2013).

Segundo De Quidt, Fetzer e Ghatak (2012), as modificações no marco regulatório não enfrentam as principais dificuldades e fragilidades do setor de microfinanças, que sempre teve seu desenvolvimento inibido pelas restrições da regulação:

A forma da regulação das microfinanças na Índia implica hoje - e sempre implicou - em que as instituições de microfinanças na Índia simplesmente não poderiam se desenvolver de uma maneira semelhante, por exemplo, ao Banco Grameen de Bangladesh (DE QUIDT, FETZER; GHATAK, 2012, p.13-14).

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