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SUMÁRIO

3. O MICROCRÉDITO PRODUTIVO ORIENTADO: UM PANORAMA

3.2 A experiência de Bangladesh

Muhammad Yunus criou em 1976 o modelo de microcrédito que, embora não seja o pioneiro, é o modelo internacional de microcrédito: o modelo Grameen, praticado pelo banco de mesmo nome por ele fundado. Observando a exclusão do segmento mais pobre da população de Bangladesh do acesso ao sistema bancário tradicional daquele país, e o efeito das taxas de juros elevadas cobradas pelos agiotas, que perpetuavam a situação de pobreza, Yunus desenvolveu um modelo de empréstimos com um aval solidário, sem garantias reais, focado na população de baixa renda.

Além da concessão de empréstimos exclusivamente para o segmento de baixa renda, o modelo de Yunus prioriza o empréstimo as mulheres, como estratégia de empoderamento, e a melhoria da situação social das famílias: o modelo tem como premissa que o empréstimo às mulheres refletirá em melhores condições de vida para toda a unidade familiar (YUNUS e JOLIS, 2000, p.117).

O modelo Grameen utiliza um sistema de pagamento semanal, com parcelas reduzidas, e um aval concedido por um grupo de cinco pessoas com o mesmo status socioeconômico, denominado aval solidário. O empréstimo é concedido após um treinamento aos financiados sobre o sistema, de forma sequencial: na primeira fase, são concedidos empréstimos a dois membros do grupo; após seis semanas, tendo havido o pagamento semanal regular, o empréstimo é estendido a dois outros membros, e após mais seis semanas, tendo sido mantida a regularidade dos pagamentos pelos quatro membros, o empréstimo é concedido ao responsável pelo grupo (YUNUS e JOLIS, p.136-139). Uma parcela do empréstimo (cinco por cento) é direcionada para um fundo mútuo do grupo; além disso, em

cada empréstimo, os demais membros do grupo devem depositar uma pequena quantia fixa nesse fundo (YUNUS e JOLIS, p.139).

O não pagamento de uma parcela semanal por qualquer dos membros impede o acesso a novo crédito para todo o grupo. Como as parcelas são reduzidas, os demais integrantes do grupo se cotizam para realizar o pagamento em nome do membro com dificuldades, evitando o inadimplemento (YUNUS e JOLIS, p.139).

Yunus e Jolis (2000, p.141) relatam que as taxas de juros cobradas nos empréstimos concedidas pelo Banco Grameen são de vinte por cento ao ano – juros elevados para o sistema bancário tradicional30, porém mais reduzidos que os praticados pelos agiotas em Bangladesh. O custo administrativo das operações equivale a cinco por cento do valor dos empréstimos (YUNUS; JOLIS, 2000, p.142). O criador do sistema Grameen não nega que os custos administrativos do modelo são elevados no início das operações (YUNUS e JOLIS, 2000, p.181).

A sistemática adotada por Yunus exige, na prática, que a atividade desempenhada pelo financiado tenha um retorno imediato. Isto leva a dificuldades para o estabelecimento de investimentos que tenham um tempo de maturação maior, como as atividades industriais, e explica, em parte, a elevada concentração das atividades ligadas ao comércio no microcrédito. Além do tempo de maturação, um incentivo para o exercício de atividades comerciais é, de que nestas, a margem de lucro por unidade é, em geral, maior. Além disso, nas atividades do comércio, frequentemente inexistem equipamentos especializados, de maior custo. Também a diversidade dos estoques reduz o risco do empreendedor em atividades comerciais.

Yunus e Jolis (2000, p.153-154) afirmam que o Banco Grameen não se preocupa em conhecer a atividade econômica que seus financiados irão realizar, mas acompanha, com visitas semanais e mensais, as atividades desenvolvidas.

A focalização dos programas de microcrédito é um requisito necessário para que sejam alcançados os impactos sociais desejados. No caso do Banco Grameen, Yunus e Jolis (2000) destacam que a concessão dos empréstimos é feita apenas para os grupos compostos, exclusivamente, por pessoas pobres:

Misturar pobres com não pobres é precipitar o fracasso. [...] São tantos os critérios que estabelecemos que é muito difícil a entrada de alguém que não seja pobre(YUNUS e JOLIS, 2000, p.176).

30 Auwal (1996, p.27) relata que a taxa média de juros dos bancos comerciais de Bangladesh é de quinze por

O sistema desenvolvido por Yunus adota uma concepção liberal social de desenvolvimento econômico:

O Grameen é essencialmente voltado para o desenvolvimento econômico em escala individual, e quem fala em desenvolvimento fala em mudança. Quando um indivíduo consegue reverter sua situação financeira tudo se transforma, e então se produz uma mudança radical em sua vida. A melhoria do nível de vida é um processo intrínseco de mudança (YUNUS e JOLIS, 2000, p.190).

O economista de Bangladesh afirma que o microcrédito contribui não somente para a superação da pobreza, mas para a emancipação política, em sentido contrário ao paternalismo, proporcionando a seus financiados a conjugação de capital humano e capital monetário para a melhoria das condições de vida (YUNUS e JOLIS, 2000, p.190-191).

Conjugando a melhoria das condições de vida com o empoderamento e com a emancipação, o modelo de microcrédito proposto por Yunus e Jolis (2000) alinha-se com o conceito de desenvolvimento como liberdade proposto por Sen (2000). A inserção socioeconômica dos microempreendedores pode contribuir para a expansão de suas capacidades, influenciando suas habilidades produtivas e possibilitando sua participação no processo de crescimento econômico (SEN, 2000, p.170-171).

O acesso ao crédito proporcionado pelo Grameen está associado a taxas de juros mais altas que o sistema bancário tradicional. Yunus e Jolis (2000) afirmam que a concessão de empréstimos, em operações de microcrédito, abaixo dos juros que permitam a sustentabilidade das operações, inviabiliza as organizações independentes de microcrédito:

Se um governo propõe empréstimos subsidiados ou sem juros e critica as taxas de juros adotadas pelos bancos para os pobres, torna-se impossível implantar um programa de microcrédito autônomo. Estruturas independentes como a nossa têm, nesse caso, grande dificuldade em dar prosseguimento às suas atividades e garantir empréstimos a um nível de rentabilidade suficiente, aquém do qual elas não poderiam existir (YUNUS e JOLIS, 2000, p.196).

O modelo Grameen se sustenta com base em um paradoxo: a extrema exclusão dos pobres do sistema financeiro tradicional viabiliza o sucesso de empréstimos com taxas de juros elevadas, mesmo com o elevado custo administrativo das operações de microcrédito. Yunus e Jolis (2000, p.232) relatam – embora não reconheçam isto de forma explícita – que nos países onde há uma rede de bem-estar social (welfare state) o microcrédito se desenvolve

com menor velocidade, e citam exemplos onde seu modelo foi adaptado com sucesso a formas distintas de funcionamento de instituições de microcrédito31.

Embora o modelo criado por Yunus seja a referência mundial em microcrédito, de reconhecido sucesso em Bangladesh e outros países, a prática mostrou que o sucesso na adoção do aval solidário guarda vínculos com as características de cada sociedade. Um exemplo é dado pela transposição do modelo aos Estados Unidos: o Good Faith Fund, fundo criado no Estado de Arkansas com base na transposição do modelo de Yunus na década de 80, não conseguir manter suas operações. Algumas razões apontadas para o insucesso do Good Faith Fund são o público-alvo limitado (10% da população do Arkansas encontrava-se na situação de pobreza relativa, que, em 1988, correspondia a uma renda inferior a doze mil dólares anuais, conforme estabelecido pelo Internal Revenue Service estadunidense), em contraste com a pobreza extrema que atinge mais de 60% da população de Bangladesh, e o ambiente concorrencial, que limita a possibilidade dos micronegócios concorrer em um ambiente dominado por grandes corporações. (MONDAL e TUNE 1993, p. 223-234). Para alguns especialistas do setor, a dificuldade em estabelecer vínculos de confiança suficientes, que permitissem a um membro do grupo ser avalista dos demais, se constitui em uma barreira adicional ao sucesso da metodologia do aval solidário aplicada pelo Good Faith Fund. (FAIRBANKS, 2008).

O modelo de microcrédito desenvolvido por Yunus é controverso. O discurso de Yunus e Jolis (2000), no que se refere à ação do Estado, é tipicamente neoliberal:

[O] Estado, em sua forma atual, deveria se obrigar quase integralmente (com exceção da fiscalização para o cumprimento da lei e da ordem, da defesa nacional e da política externa) de sua função, para deixar o setor privado – um setor privado organizado de acordo com o modelo Grameen, quer dizer, animado por uma preocupação de bem-estar social – desempenhar seu papel. (YUNUS e JOLIS, 2000, p. 262)

Yunus e Jolis (2000, p.263) acreditam que os programas de assistência social privam os pobres do espírito de iniciativa, e que o seguro-desemprego não é uma solução eficaz. Para Bornstein (1995), a abordagem de Yunus não tem uma identidade clara, e agrega elementos do pensamento conservador e do pensamento liberal:

31 Yunus e Jolis (2000, p.231-232) citam como exemplo de microcrédito na França a Adie (Association pour le

droit à l’initiative économique), que, embora tenha foco prioritário na camada de baixa renda (42% de seus clientes são beneficiários de programas de assistência social), realiza empréstimos também às pequenas empresas. A metodologia empregada pela Adie é fortemente baseada em capacitação continuada dos

microempreendedores, antes, durante e após a concessão do empréstimo, que se baseia, entre outros aspectos, na análise do plano de negócio do pretendente ao microcrédito. (ASSOCIATION POUR LE DROIT À

[O] Grameen é um camaleão político: ele tem a habilidade de afirmar crenças caras a conservadores e liberais. [Em uma visão] da direita, o Grameen pode ser visto como uma instituição empresarial que defende menos governo; [em uma visão] da esquerda, parece ser uma programa de bem-estar social iluminado que contesta o valor do envolvimento do governo. Muhammad Yunus não concorda. Ele vê seu banco como um exemplo de capitalismo reinventado; na verdade, ele o chama de “empresa capitalista com consciência social” (BORNSTEIN, 1995, p.46).

O discurso de Yunus é hibrido, com elementos socialistas e neoliberais:

Somos a favor de um intervencionismo estatal reduzido ao mínimo. Apoiamos o mercado livre e preconizamos a criação de empresas. Com isso estaríamos nos colocando bem à direita. Contudo, o Grameen defende objetivos sociais: eliminar a pobreza, fornecer para todos educação, assistência médica e emprego, atingir a igualdade dos sexos, permitindo às mulheres se sustentarem e por fim garantir o bem-estar das pessoas idosas. O Grameen sonha com um mundo livre de pobreza e de esmola dada pelo Estado na forma de um seguro social. O Grameen desaprova o quadro institucional existente e as empresas baseadas na busca de lucro. O Grameen não é adepto do liberalismo econômico. Nós acreditamos na intervenção social, mas sem que o Estado se envolva nas empresas e em serviços de promoção. Sua intervenção deveria se limitar a um conjunto de medidas que incentivasse as empresas a se empenharem na direção socialmente desejada. Essas características permitem ao Grameen reivindicar um lugar à esquerda. (YUNUS e JOLIS, 2000, p.264-265.).

A ideia de desenvolvimento econômico de Yunus é claramente a de um desenvolvimento econômico inclusivo:

A essência do desenvolvimento é a melhoria da qualidade dos cinquenta por cento da população que estão em situação menos favorecida. Mas, para ser mais rigoroso, eu definiria o desenvolvimento me concentrando nos vinte e cinco por cento da população em situação mais desfavorecida ainda. [...] O microcrédito levará a dar a partida nos minúsculos motores econômicos da classe rejeitada da sociedade e com isso preparar o terreno para projetos mais amplos. (YUNUS e JOLIS, 2000, p.266)

O economista reconhece que o microcrédito sozinho não é uma solução que permita a continuada ascensão social das classes de baixa renda, em especial no que tange à saúde, à educação e à previdência social:

Garantir a sobrevivência com microcrédito não oferece dificuldade, mas para as etapas seguintes é indispensável instalar um sistema de saúde eficaz, educação, plano de pensão, e bons meios e comunicação e informação sobre o mercado. Na ausência desse sistema de ajuda, os progressos realizados pelos financiados correm o risco de atolar ou retroceder. [...] O microcrédito

não pode por si só resolver todos os problemas da sociedade (YUNUS e JOLIS, 2000, p.276 e p. 297).

Para o sucesso de um empreendimento, há uma escala mínima de produção; operar abaixo desse nível mínimo, torna impossível a sobrevivência dos empreendimentos a médio/longo prazo. Yunus e Jolis (2000) não negam a importância da organização dos microempreendimentos no sentido de alcançar uma economia de escala: em suas palavras, “a produção familiar pode muito bem chegar a uma produção em massa32, embora não seja realizada sob o mesmo teto, nem através do assalariado” (YUNUS; JOLIS, 2000, p.269).

O enfoque social é uma característica marcante do Banco Grameen. Em 2002, o banco iniciou uma modalidade de empréstimos para mendigos, onde não há o pagamento de juros, e é fornecido a cada participante um seguro de vida sem custo. O pagamento do principal se dá em parcelas reduzidas por um longo período, e o participante é estimulado a assumir outras atividades geradoras de renda além da mendicância. O programa possuía mais de 80 mil membros em novembro de 2013 (GRAMEEN BANK, 2013).

Em novembro de 2013, o Banco Grameen possuía mais de 8,5 milhões de membros, dos quais 8,1 milhões eram mulheres. Mais de 5,2 milhões de operações de microcrédito foram realizadas pelo Banco Grameen desde sua fundação. (GRAMEEN BANK, 2013).

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